Imagem de Rosalia Ricotta. Licença Creative Commons

A barreira de cor como antinomia universal do capital

Imagem de Rosalia Ricotta. Licença Creative Commons

Márcio Farias – Para o Universidade à Esquerda– 16/10/2020

Márcio Farias é doutor e mestre em Psicologia Social na PUC-SP e graduado em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2011). Em pesquisa, desenvolve estudos sobre Pensamento social latino americano e relações raciais; Questão racial e lutas de classes na América Latina; Trabalhadores imigrantes negros em São Paulo e Buenos Aires. Márcio discutiu lutas de classe e raça no Brasil como convidado do Circulação da Balbúrdia, o vídeo da atividade pode ser acessado no canal do YouTube da EFoP.

Em 1903 W.E.B. Du Bois lançou seu mais importante trabalho: Almas da Gente Negra, que logo se tornou um clássico sobre o tema das relações raciais. Neste livro, temos alguns ensaios em que este grande intelectual discorre sobre os dilemas centrais dos EUA da época, um país que já nos marcos do século XX era modelado por relações que barravam a plena inclusão da população negra. Alicerçada numa sólida formação intelectual, Du Bois, quase como um adágio, sentencia nesse livro qual é a característica que considerava elementar de uma das maiores antinomias da modernidade nos EUA e, consequentemente, uma das contradições centrais do capitalismo: “O problema do século XX é o problema da barreira racial – a relação das raças mais escuras com as raças mais claras na Ásia e na África, na América e nas ilhas oceânicas” (Du Bois, 1999, p. 64).

Apesar das diferenças imputadas em grande medida pelas condições nacionais e regionais, existem alguns elementos que unificam a experiência negra no continente africano e na diáspora: a discriminação racial, nas suas variadas vertentes, foi um dos elementos constitutivos desse período da história contemporânea da humanidade. De tal forma que a modernidade capitalista e o seu projeto ideológico de universalidade encontrou na “barreira racial” um entrave que, ao longo dos séculos XIX e XX, não conseguiu superar.

A rigor, a primeira negação da modernidade capitalista – precedendo inclusive os movimentos cartistas na Europa – foi a Revolução do Haiti. Deflagrada em 1791 e encerrada em 1804, teve como resultado a vitória dos colonos, o fim da escravidão e a independência do país. Sob a liderança de uma elite negra fortemente influenciada pelo ideário da Revolução Francesa, mas também contando com uma base forte de escravizados organizados cultural e politicamente, os haitianos levaram a cabo o projeto humanista que vinha se desencadeando na grande metrópole. O revés que se efetivou no tempo se explica pelo fato de que a Revolução Haitiana foi a primeira expressão social , primeira efetivação na história, em que se explicitou a contradição do ideário revolucionário de base humanista da revolução burguesa europeia, uma vez que na verdade se tratava de um projeto particular de sociedade, que garantia os interesses e anseios de uma classe, a burguesia, e dos setores que a apoiavam.

As leis de Jim Crow, no país de origem de Du Bois, são outros exemplos da “barreira de cor” como contradição na perpetuação da sociedade do mercado livre. Perpetrada nos estados sulistas e limítrofes nos Estados Unidos, entre 1876 e 1965 são amostras patentes desse processo de exclusão de um grupo baseada na ideia de raça.  A segregação escolar patrocinada pelo Estado foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte em 1954 no caso Brown vs. Board of Education. Todas as outras leis de Jim Crow foram revogadas pela Lei de Direitos Civis de 1964 (Muse, 1966).

Ainda nos E.U.A, tivemos o desabrochar de movimentos negros como o Black Power e os Panteras Negras no meio dos anos 60, o clamor da sociedade negra por igualdade racial acabou aumentando seu pleito para a dignidade racial, igualdade econômica, autossuficiência política. Este movimento tornou-se um dos maiores entraves internos da nação imperialista que se tornou o E.U.A do pós-segunda guerra mundial. Um país que propunha saídas democráticas para o restante do globo enquanto segregava e impedia o pleno acesso às beneficies do novo mundo a vários grupos estigmatizados em seu próprio território.

Outro momento da história contemporânea em que a linha de cor foi um entrave para consolidação do projeto de universalização do capital foi o regime de apartheid na África do Sul.  A segregação racial na África do Sul teve início ainda no período colonial, mas o apartheid foi introduzido como política oficial após as eleições gerais de 1948.  A partir de finais da década de 1970, os negros foram privados de sua cidadania, tornando-se legalmente cidadãos de uma das dez pátrias tribais autônomas chamadas de bantustões. Nessa altura, o governo já havia segregado a saúde, a educação e outros serviços públicos, fornecendo aos negros serviços inferiores aos dos brancos.

No território europeu, os problemas raciais acompanham a história dos mais variados povos que constituíram posteriormente as nações desse continente. O antissemitismo foi um dos baluartes da discussão das situações limites da modernidade capitalista. Baseado na ideia de raça, o nazismo e o fascismo foram momentos em que a Europa observou em seu próprio território a utilização de métodos de colonização e barbárie operados outrora pelos próprios europeus nas mais variadas regiões do mundo onde se perpetuou o regime colonialista orquestrado pela elite europeia (Cesaire, 1978).

 Na história recente, a xenofobia que uma parcela da população europeia perpetrou contra imigrantes africanos e mulçumanos – com a conivência de alguns Estados – foi um primeiro golpe no Estado de Bem Estar Social Europeu que marcou a era da estabilidade capitalista naquele continente. As imagens dos protestos de rua protagonizados por imigrantes, em sua maioria africana, na França contra o desemprego e as más condições de vida as quais estavam submetidos apresentam novamente a força analítica de Du Bois.

Em outros momentos da história esse processo também de discriminação baseado na linha de cor se mostrou um entrave. Mesmo em países que forjaram uma ruptura com o capitalismo e implantou um regime socialista, a “linha de cor” que penetrou na formação do ethos de nacionalidade de vários povos, foi um entrave para execução de um processo de socialização menos emblemáticos.  Cuba, por exemplo, não conseguiu eliminar o racismo nos pós-revolução.

Quando da eclosão da revolução, em 1959, Fidel e as lideranças negras incentivaram fortemente as políticas antirracistas na ilha, apoiando iniciativas que eliminassem o privilégio de brancos no acesso a serviços e bens que o estado disponibilizava. O retrocesso veio a partir de 1963, quando do avanço da campanha de setores prejudicados com as políticas sociais e raciais do governo revolucionário. Em 1962, cedendo a pressões externas e internas, Fidel declarou que o racismo acabara em Cuba, desautorizando a existência de grupos, núcleos e entidades que reivindicavam alguma pertença racial. Daquele momento em diante não existiria mais raças em Cuba, sendo o povo cubano uma só etnia e, portanto tendo uma composição monocrática: a cor cubana (Gates Jr, 2014).

É preciso fazer uma análise mais acurada sobre o processo revolucionário em Cuba e o conjunto dos problemas que no pós-revolução não foram solucionadas de maneira a não tratar questões de ordem estruturais de forma superficial e maniqueísta. A mencionado ideia de cor cubana, por exemplo, remete se à um ideário revolucionário e humanista quando ainda da independência cubana, muito bem elaborado por José Martí. Não podendo aprofundar a discussão merecida para este caso neste momento, proponho, em primeiro lugar a leitura do livro “El negro em Cuba: Colônia, República, Revolución” de Tomás Fernández Robaina, que faz uma análise acurada, precisa sobre os desafios revolucionários , erros e acertos:

Todo processo revolucionário, ao menos assim se demonstra a história, passa por diferentes etapas de intolerâncias, incompreensões , em que as vezes se cometem erros e injustiças, ao tomar-se como inimigos aos que apoiam e buscam melhorar o sistema com propostas diferentes das assumidas oficialmente, e os colocam no mesmo saco com os que sim buscam destruir a mudança política (Robaina, 2012, p. 97).  (Tradução livre)

Nesse mesmo sentido, o próprio Fidel Castro fez um balanço de folego sobre os êxitos e as dificuldades do processo revolucionário na magistral entrevista concedida ao renomado jornalista franco espanhol Ignacio Ramonet Fidel Castro : biografia a duas vozes.

Um segundo ponto de consideração sobre Cuba diz respeito a distinção entre capitalista e capital, tal como o filosofo húngaro István Mészaros nos esclarece. Segundo ele, o capital antecede ao capitalismo e é a ele também posterior. O capitalismo, por sua vez, é uma das formas possíveis de realização do Capital, uma de suas variantes históricas, como ocorre na fase caracterizada pela subsunção formal do trabalho ao capital. Assim sendo, houve em Cuba, como na maior parte dos processos revolucionários do século XX não houve uma ruptura com o complexo do Capital, mas sim uma ruptura apenas com eixo objetivo da forma capital, o capitalismo.

O próprio Du Bois, ainda na década de 1930, experimenta uma radicalização do seu pensamento. Ou seja, não se tratava mais de apenas diagnosticar o racismo como um entrave moderno, uma antinomia, mais entendê-lo com substância do capitalismo.  Em 1933, pública no periódico The Crises, que era comandado por ele, o texto O marxismo e a questão do negro.   Lê se um artigo que ao debater a especificidade negra nos EUA, absorve criticamente o marxismo. Para ele, o proletário negro estadunidense da época era duplamente explorado e aviltado, tanto pela burguesia dominante branca, mas pela aceitação tácita da sua condição pelo trabalhador branco beneficiado com essa condição de pauperização e subemprego da massa negra. Ainda que pequena, a pequena burguesia negra e o empresariado negro emergem, para ele, como força menos hostil ao trabalhador negro:

Sob essas circunstâncias, o que podemos dizer sobre a filosofia marxiana e sua relação com o negro americano? Nós só podemos dizer como me parece, que a filosofia marxiana é um diagnóstico acertado da situação na Europa no meio do século XIX, apesar de algumas de suas dificuldades lógicas. Mas ela precisa ser modificada nos Estados Unidos da América, e especialmente ao considerarmos o grupo negro. O negro é explorado em um nível que significa pobreza, crime, delinquência e indigência. E essa exploração vem não de uma classe capitalista preta mas dos capitalistas brancos e igualmente do proletariado branco. Sua única defesa é uma organização interna que seria capaz de protegê-lo de ambas as partes, e uma compreensão econômica dentro da raça negra que previna qualquer grande desenvolvimento (Du Bois, 1933, s/n).

Essa tese terá maiores consequências posteriormente com a publicação do livro Black Marxism escrito por Cedric Robison. Ainda que com maior densidade, Robison não supera certas simplificações ainda existentes nesse giro radical de Du Bois.  Sobre esses pontos Alex Callinicos comenta: “O racismo oferece aos trabalhadores brancos o conforto material de acreditarem que são parte do grupo dominante” (1993, p.33) (Tradução livre).

Mas Du Bois em sua genialidade avançará ainda mais na proposição do enfrentamento ao racismo. Já um nonagenário, se filia ao Partido Comunista , e na carta de filiação comenta:

O comunismo é o esforço para satisfazer as necessidades de todos os seres humanos, e requisitar de cada um o melhor que pode contribuir. Esse é o único modo de vida verdadeiramente humano. É um objetivo difícil e duro de se alcançar; erros foram e serão cometidos, mas hoje avança triunfantemente na educação e na ciência, no lar e na alimentação, com maior liberdade de pensamento e libertação de dogmas. No fim, o comunismo triunfará. Quero contribuir para fazer esse dia chegar (Du Bois , 2020, s/n).

Agora, de todas as experiências locais e nacionais, a linha de cor no Brasil é a mais sui generis. Maior sociedade escravista moderna, realocou a dinâmica das relações coloniais quando da emergência do trabalho livre assalariado, tornando o negro de bom escravo a mau cidadão, a partir do branqueamento do trabalho, consolidando no campo das relações sociais de produção um “lugar de negro”, cuja mobilidade do trabalho foi praticamente inexistente no arco da revolução burguesa brasileira , ocorrida entre as décadas de 1930 e 1980.

No campo da superestrutura, a fascinação da intelectualidade local pelo mito da democracia racial em suas várias vertentes e variações, posicionou as ciências sociais brasileiras no âmbito da ordem e, com frequência, da cumplicidade na manutenção de situações de injustiça. Essa ciência abordava as temáticas que surgiam nos países do primeiro mundo, utilizavam seus pressupostos teóricos e metodológicos, gerando explicações que estavam de acordo com território alheio, mas sistematicamente distantes da realidade do país, isto é, criavam explicações dominantes que pouco contribuía para entender e explicar as experiências dos explorados e oprimidos no Brasil. Ou seja, a linha de cor brasileira foi ratificada teoricamente e reproduzida enquanto ideologia sofisticada que mistificava as relações sociais, produzindo uma lenda da modernidade encantada no Brasil.

No caso brasileiro, um dos autores que caminhou no sentido de superar a mistificação das relações raciais, efetuar um diagnóstico de tempo e horizontar uma apreciação estrutura com horizonte revolucionário foi Clóvis Moura. A obra desse intelectual piauiense se encontra em oposição a explicações hegemônicas, usualmente elaboradas por pensadores com fortes conotações eurocêntricas e que são apologistas do capitalismo. Moura nos deu explicações feitas a partir da exclusão, formuladas com a falta de poder da população negra, depuradas no desejo e na luta para conquistar um mundo equitativo e humano.

O que caracteriza a proposta de ciência social feita por Clóvis Moura é estar orientada para a realidade, daí provém o enquadre epistemológico do entendimento das relações sociais, assim como da finalidade de fazer científico. Nesse sentido, a realidade deve ser ponto de partida e chegada de todo intelectual, caso se pretenda produzir um saber que visa transformação, sendo coerente com sua proposta de ciência social, distanciando de um cientificismo que reduz os objetos a explicação em si e que desconsidera a totalidade que permeia as relações.

As características que fazem da produção mouriana uma teoria libertária, no sentido de almejar a emancipação humana, se inscrevem da seguinte forma: ela se norteia pela ação humana em suas circunstâncias.

Clóvis Moura rompe o impasse existente nos círculos acadêmicos de sua época, dando um salto qualitativo no estudo da formação nacional, a partir da análise dos fenômenos nas circunstancias operadas pela população negra. Desse modo, o autor opera uma intensa influência no curso do fazer histórico dos anos 1950 aos dias de hoje.

Moura deu grandes contribuições para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Aliás, tomando-o como pensador complexo que elabora sua obra com certa compreensão de mundo e ser humano, seu trabalho foi – e permanece – fundador, uma vez que se debruçou sobre a investigação dos paradigmas científicos, no geral, e para alcançar a especificidade nacional, no particular.

Moura permaneceu fiel à tarefa científica de investigar a natureza da formação nacional, recorrendo aos princípios do marxismo. De modo efetivo, também foi um pensador marxista que apoiou seu pensamento prático em visões de mundo que miravam a transformação radical das estruturas sociais.

Em Moura, ainda que os elementos estruturais do capital internacional tenham sido determinantes do processo de abolição da escravidão no Brasil e nas Américas e que tenhamos, de fato, uma importância substancial das revoluções burguesas na Europa; a partir de seus levantes, fugas e quilombos, os africanos escravizados no Novo Mundo tiveram um papel relevante no processo de abolição, eles se apresentaram como uma característica constante, logo, dinamizadora da sociedade escravocrata. Essas questões culminaram na compreensão do processo das relações de classe e raça como partes orgânicas do modo de ser capitalista, no pós-abolição. Neste ponto, é fundamental que a esquerda ligada ao debate sobre a revolução brasileira incorpore a nossa compreensão da nossa barreira de cor, mas numa leitura da dialética radical de um Brasil que é, essencialmente, negro. Caso contrário, continuaremos por séculos com a necessidade de escrever a história dos vencidos.

  Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *