[Opinião] Eles estão debochando da nossa cara

Imagem: Lama em Brumadinho. Foto de Diego Baravelli. Licença Creative Commons.

Beatriz Costa – Redação UàE – 15/03/2021

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

Lira Itabirana, poema de Carlos Drummond de Andrade publicado em 1984

 

Em 25 de janeiro de 2019 a barragem próxima à Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho-MG se rompeu, causando 272 mortes imediatas e incontáveis danos, incluindo poluição do rio Paraopeba, perda de renda das famílias da região e degradação do ambiente de maneira geral.

O crime acontece quando muitos achavam que não viveríamos algo pior do que o que havia acontecido próximo à cidade de Mariana-MG, em novembro de 2015. Os impactos ambientais do rompimento em Mariana são considerados maiores, com a destruição do Rio Doce, mas a quantidade de pessoas mortas em Brumadinho foi 20 vezes maior. Além disso, as estimativas iniciais indicam que mais de 240 mil pessoas em 26 cidades ao longo da bacia do rio Paraopeba tenham sido diretamente afetadas pelo colapso da barragem da Vale em Brumadinho. As famílias ainda aguardam a localização de onze vítimas que sumiram na lama.

Muitas coisas aconteceram ao longo desses mais de dois anos. Logo após o rompimento da barragem, diversas ações solicitaram o bloqueio de parte do dinheiro da Vale para que fosse utilizado no atendimento às vítimas, entre elas, as impetradas pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Naquele momento foram bloqueados 11,8 bilhões em contas da Vale.

Parte desse dinheiro foi sendo usado para pagar um auxílio emergencial às famílias que comprovaram perda de renda decorrente do rompimento da barragem, arcar com os custos de funeral e sepultamento dos mortos e contratar assessorias técnicas independentes que teriam a função de catalogar os atingidos e mensurar os danos causados, ou seja, estabelecer a chamada matriz de danos.

A experiência com rompimento na bacia do Rio Doce, na qual as empresas Vale, BHP Billiton e Samarco criaram a Fundação Renova teoricamente para executar as ações de reparação e atuar como mediadora das relações com os atingidos, está se mostrando totalmente inadequada, como era de se esperar. A situação, que é equivalente a colocar o criminoso para mediar a reparação com a vítima, tem gerado denúncias de intimidação por parte de advogados da Renova, confusões deliberadas no sentido de atrapalhar a reparação de danos, inexplicáveis perdas de informações, entre outras circunstâncias que levaram o MPMG a exigir a extinção da Fundação Renova. De acordo com a ação civil pública deste ano, a Fundação Renova dificulta as reparações e age com desvio de finalidade.

Por causa da experiência desastrosa da mediação feita pela Fundação Renova em Mariana, em Brumadinho parecia que as instituições do Estado estavam mais atentas, para evitar interferências indevidas da companhia Vale, travestidas de ações independentes.

As assessorias técnicas independentes foram consideradas uma vitória e envolveram movimentos sociais, igrejas, ONGs e universidades. Apesar da dificuldade de receberem o pagamento por seus serviços executados, o trabalho foi sendo desenvolvido ao longo dos últimos dois anos.

Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por exemplo, pelo menos 67 pesquisas estão sendo desenvolvidas para avaliar os impactos no meio ambiente, na saúde da população, socioeconômicos e na infraestrutura do rompimento da barragem em Brumadinho. Os estudos planejados em parceria com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), serviriam para subsidiar decisões a serem tomadas nos processos judiciais que dizem respeito à reparação de danos. O chamado Projeto Brumadinho foi viabilizado através de recursos bloqueados da Vale.

Parte do levantamento dos danos estava sendo feito pelo Instituto Guaicuy, ligado à UFMG. A entidade, escolhida pelo Ministério Público estadual para fazer esse diagnóstico junto aos atingidos por sua capacidade técnica e científica, faz parte das assessorias técnicas independentes, contratadas para diagnosticar todos os impactos socioambientais em tipos, extensão e formas adequadas de reparação.

O objetivo do relatório é descrever toda a relação de perdas e danos que podem receber indenização, com sua respectiva valoração, ou seja, o seu valor. Esse levantamento é feito de acordo com a percepção das pessoas atingidas – e não da empresa que causou toda a tragédia, no caso, a Vale. “Esse documento é muito importante, pois ele vai guiar a reparação integral em todo seu processo”, explica o instituto Guaicuy.

Pra quem vê assim, até parece que de fato os danos serão valorados e a reparação será feita de maneira integral, ou da melhor forma que for possível, garantido por nossas instituições de Estado como o Ministério Público. Só que não.

O acordo

Em novembro último, funções-chave no MP de Minas, que encabeçava muitas ações judiciais, foram trocadas. A nova coordenação seguiu as negociações sob sigilo até o acordo ser anunciado.

No dia 4 de fevereiro de 2021, Vale e o governo de Minas Gerais anunciaram um acordo negociado entre eles e instituições de justiça do estado. O acordo não só não contou com a participação ativa dos atingidos e de instituições como a UFMG, como também, por ter sido negociado de forma confidencial, os maiores interessados só ficaram sabendo dos seus termos quando ele veio à público.

Agora, após o acordo entre Vale, estado e instituições de Justiça ter sido fechado, ainda não está claro se aquele relatório que todos estavam falando, chamado de matriz de danos, terá algum efeito prático.

Ao longo desse tempo, também foram realizados estudos pela Fundação João Pinheiro (órgão oficial de pesquisa em políticas públicas, estatísticas e ensino em administração pública do Governo do Estado de Minas Gerais) e pelo MPMG que estabeleceram o valor de R$54,6 bilhões, apresentado pelo governo do estado em audiências preliminares. A Vale inicialmente propôs o valor de 16,5 bilhões, e o acordo foi fechado na quantia de R$ 37,68 bilhões, 32% menor do que o estipulado para financiar as medidas de reparação.

Entidades que apoiam as famílias atingidas só tiveram acesso ao teor do acordo após sua publicação e fizeram um levantamento de sete pontos centrais que são prejudiciais para as comunidades impactadas pela tragédia. Entre eles, a falta de participação das comunidades atingidas e que a maior parte do dinheiro que será destinado ao Estado não será investida na região atingida, mas em obras de infraestrutura viária, como a construção do Rodoanel e do Metrô na capital Belo Horizonte.

Para Andrea Zhouri, professora da UFMG e coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta), trata-se de uma “jogada política e de negócios”, com objetivo maior do que de fato “resolver problema de reparação das vítimas do desastre”. “O orçamento do estado de Minas é precário. Romeu Zema viu no desastre a possibilidade de fazer uma política de apelo eleitoral por meio das obras”, opina Zhouri.

As ações civis públicas que foram extintas com a homologação do acordo não previam a construção de um rodoanel como forma de compensar e reparar o desastre. O que ele tem a ver com o território impactado de Brumadinho? O projeto é antigo e vinha sendo bloqueado porque, dentre outros motivos, corta duas unidades de conservação ambiental: Parque Estadual da Serra do Rola Moça e Serra da Calçada – além de comunidades históricas. Além disso, a zona que receberá o rodoanel tem uma grande concentração de mineradoras, inclusive a Vale. Essa obra é, de quebra, algo pleiteado pelas mineradoras, que precisam escoar seus produtos. A Vale também lucra com esse acordo porque não vai precisar gastar para construir infraestrutura para escoar o minério dela.

Como forma de ir contra o absurdo que é o acordo, foi elaborada uma Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF), ação passível de análise pelo Supremo Tribunal Federal em casos de violação da Constituição Federal. O documento foi assinado por diversas entidades, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), e por alguns parlamentares estaduais e federais.

A ação foi encaminhada ao STF, mas este negou o pedido por decisão do ministro Marco Aurélio, que julgou a ação inviável, negando seu seguimento. Assim, o mérito nem chegou a ser discutido em Plenário no STF e o acordo ficou mantido.

Depois do acordo

Dias após o fechamento do acordo, a Polícia Federal apresenta o laudo sobre a causa da tragédia, na qual vem trabalhando por mais de dois anos. O documento revela que a “tragédia” em Brumadinho foi causada pelas perfurações que a Vale vinha fazendo na barragem. E não pelo peso próprio da barragem, pelas chuvas, por uma detonação usual na mina próxima ou qualquer outro fator alheio à vontade da companhia.

De acordo com a PF, a Vale contratou, em outubro de 2018, uma empresa para identificar as condições de resistência de diferentes seções da barragem. A empresa contratada entregou à mineradora um diagnóstico em dezembro do mesmo ano, mas, antes de processar e analisar os resultados, a Vale deu início a perfurações verticais na barragem.

A empresa começou a perfurar uma área crítica da barragem cinco dias antes da ruptura. Ainda de acordo com o laudo, em uma barragem com condição de estabilidade aceitável, a perfuração não seria suficiente para provocar o rompimento.

De acordo com a PF, a partir do laudo pericial apresentado, as investigações continuam, e ainda não há definição sobre possíveis indiciamentos.

Providencialmente finalizado logo após a conclusão do acordo, o laudo que atesta que se tratou de um crime da Vale surge para nos mostrar de que lado se encontra o Estado. Será que o acordo seria fechado da mesma forma à luz dessas informações? Será que ele foi fechado dessa forma por causa dessas informações?

No mesmo dia da notícia da finalização do laudo, outra salta aos olhos para completar o quadro: A Vale está pagando R$ 22,5 bilhões em dividendos aos seus acionistas.

O conselho de administração da Vale aprovou a distribuição do total de R$ 4,26 por ação na remuneração aos acionistas com relação ao desempenho da companhia no segundo semestre do ano passado. Segundo a empresa, a continuação da política de dividendos visa devolver aos acionistas uma parcela “relevante” da geração de caixa da companhia, em um padrão previsível e alinhado com o pilar estratégico da companhia de disciplina na alocação de capital.

Às vezes, por não ter familiaridade com grandes valores, pode nos parecer que o fechamento de um acordo de R$ 37,68 bilhões com certeza será o suficiente para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem em Brumadinho. Alguns jornais alardearam que este foi o acordo de maior valor realizado na história do Brasil. De fato, não é um valor desprezível. Porém, quando comparamos com o valor de R$ 22,5 bilhões que a Vale está pagando para seus acionistas na forma de dividendos em relação aos lucros do segundo semestre do ano passado, tomamos mais conhecimento do tamanho dos montantes envolvidos.

O valor dos dividendos é cerca de 60% do valor do acordo. Mas a Vale não precisava pagar dividendos neste momento. A Vale vai continuar pagando dividendos anualmente ou até com frequência inferior à anual para seus acionistas. Provavelmente serão valores semelhantes a este, senão maiores. Isto significa que é uma atividade usual, recorrente. bem diferente do estabelecimento de um acordo de reparação do maior crime ambiental do mundo. Mesmo assim os valores são comparáveis e isso é um absurdo.

Numa clara demonstração de força, a Vale está dizendo: não importam os 272 mortos, não importa que alguns corpos nem tenham sido encontrados ainda, não importa que uma população de centenas de milhares de pessoas esteja passando por imensas dificuldades devido ao rompimento da barragem em Brumadinho. Não importa nada disso. Importa que os acionistas estejam felizes, que o mercado esteja feliz, que o sistema continue funcionando, moendo corpos e almas dos trabalhadores deste país.

Hoje, os acionistas da Vale estão recebendo sua remuneração pelos dividendos da companhia. Hoje os atingidos pelo crime continuam a lutar tentando reestabelecer sua dignidade.

Permanece questionamento que Drummond fez, há quase 40 anos:

“Quantas toneladas exportamos

De ferro?

Quantas lágrimas disfarçamos

Sem berro?”

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