Capa: Montagem produzida com imagens do UFSC à Esquerda e Gitit-WMIL/Wikicommons.
Thiago Zandoná* – Redação UFSC à Esquerda – 30/09/2021
O Conselho Universitário (CUn) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) começou os debates para tratar do processo eleitoral para a escolha do próximo dirigente máximo da instituição, que deve ocupar a reitoria entre 2022 e 2026. Com as discussões, é retomada novamente a disputa pelo sentido e caráter do processo, em especial, sobre sua paridade ou não. Mas desta vez com uma particularidade conjuntural: o medo de uma intervenção.
A disputa pela paridade dos votos por categoria é uma das principais pautas no interior das universidades brasileiras nas últimas décadas. Nos últimos anos, a partir de uma forte disputa no interior das universidades, a maior parte das instituições modificaram seu processo de escolha para acatar a paridade de votos, ou seja, cada categoria da universidade (professor, estudante e técnico) tem o mesmo peso nos votos para a escolha do reitor.
Essa disputa esteve presente em praticamente todas as universidades e, na grande maioria, o movimento a favor da paridade conseguiu emplacar vitória. Em 2019, cerca de 62% das universidades federais adotavam a consulta paritária, enquanto apenas 30% mantinham o formato antigo 70/30 — outros 7% adotavam outra forma ou um formato desconhecido pelo levantamento. A informação foi coletada e disponibilizada pela Assufrgs (Sindicato dos técnicos-administrativos da UFRGS, UFCSPA e IFRS).
O antigo modelo 70/30, superado pela maioria das universidades federais, prevê um peso para o voto docente muito superior ao das demais categorias. Enquanto o voto dos docentes têm peso de 70%, os dos estudantes e técnicos teriam cada um 15%.
Há setores na universidade que nunca aceitaram a paridade dos votos nas consultas informais, realizadas pela UFSC desde 1983, e que, em cada oportunidade, voltam a defender a proporção 70/30. Mas dessa vez, a defesa da não paridade aparece ancorada no argumento do medo.
O argumento básico apresentado na sessão do Conselho Universitário do dia 28 de setembro é que para que a UFSC não sofra uma intervenção na nomeação do reitor, o CUn precisa realizar as eleições de acordo com a lei.
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O que diz a lei?
Em linhas gerais, a legislação vigente mantém o entulho autoritário e antiuniversitário da ditadura empresarial-militar: tanto lista tríplice quanto a proporção 70/30.
A legislação remonta à Lei nº 5.540/1968, implementada durante a ditadura, que estabelece um processo formal de escolha na proporcionalidade de 70% para docentes e 30% para as demais categorias de estudantes e técnicos. A norma sofreu algumas alterações nas leis nº 9.192/1995 e nº 9.394/1996 mas mantendo intacta a proporcionalidade 70/30.
Segundo a Lei nº 9.192/1995, que dá nova redação ao art. 16 da Lei nº 5.540/1968, há três pontos que devem ser seguidos na escolha dos dirigentes universitários: primeiro, o reitor deve ser nomeado pelo Presidente da República entre os nomes que figurem em lista tríplice organizada pelo colegiado máximo da instituição. Segundo, o colegiado máximo, que formula a lista tríplice, deve ser composto por pelo menos 70% de professores. Terceiro, “em caso de consulta prévia à comunidade universitária, nos termos estabelecidos pelo colegiado máximo da instituição, prevalecerão a votação uninominal e o peso de setenta por cento para a manifestação do pessoal docente em relação à das demais categorias”.
O Decreto nº 1.916/1996, que regulamenta o processo de escolha específico das instituições federais de ensino superior, mantém a mesma interpretação da lei.
Segundo o parágrafo 4º do Art. 1º, “o colegiado máximo da instituição poderá regulamentar processo de consulta à comunidade universitária, precedendo a elaboração das listas tríplices, caso em que prevalecerão a votação definida no § 2º [votação uninominal, onde cada eleitor vota em apenas um nome] e o peso de setenta por cento dos votos para a manifestação do corpo docente no total dos votos da comunidade”.
Ou seja, em caso de consultas prévias à comunidade, regulamentada pelo Conselho Universitário ou similar, estas devem reservar 70% do peso dos votos para o corpo docente. Por discordarem da consulta não paritária e a fim de exercer o direito constitucional de autonomia universitária, diversas universidades adotaram a consulta paritária sem relação direta com o colegiado máximo. Na prática, diversas universidades realizavam consultas “informais” por associações dos quadros que compõem a universidade ou entidade equivalente, com votação paritária. Havia um acordo tácito de que o conselho acataria o resultado da consulta realizada pelas entidades no momento de compor a lista tríplice.
Esse método tem sido adotado pela UFSC e dezenas de outras universidades que optaram por consultar (informalmente) a comunidade universitária através do voto paritário. Esse movimento das universidades levou o MEC a validar, em 2011, tal formato através da Nota Técnica nº 437/2011 – CGLNES/GAB/SESu/MEC.
Segundo a nota, no item 23, é “importante salientar ainda que a realização por associações dos quadros que compõem a universidade ou entidade equivalente de consultas informais à comunidade universitária com a configuração dos votos de cada categoria da forma que for estabelecida, inclusive votação paritária, não contraria qualquer norma posta”.
Essa nota técnica, entretanto, foi substituída em 2018 e consignou que mesmo nas consultas organizadas informalmente não deveria ser autorizada a votação paritária.
No item 2.16 da Nota Técnica n. 400/2018/CGLNES/GAB/SESU/SESU fica expresso que é “importante salientar ainda que a Lei nº 5.540/1968 e o Decreto nº 1.916/1996 não diferenciam consultas à comunidade como ‘formais’ ou ‘informais’, de modo que todo procedimento de consulta deverá se pautar nas regras acima expostas”.
Em outras palavras, enquanto a nota de 2011 validava as consultas informais com peso paritário, a nota de 2018 retifica a interpretação anterior e obriga a manter a proporção 70/30 mesmo nas consultas informais.
Mas logo no ano seguinte, em 2019, a Consultoria Jurídica junto ao MEC elaborou o Parecer nº 416/2019/CONJURMEC/CGU/AGU, o qual conclui que tanto a lei quanto o decreto que tratam da escolha dos reitores efetivamente disciplinam apenas a consulta prévia organizada pelo colegiado máximo da instituição, e não as consultas “informais”.
E, segundo o parecer, “a votação paritária nas consultas à comunidade universitária tem fundamento constitucional nos princípios da gestão democrática do ensino público e da autonomia administrativa”.
Esse parecer se contrapõe à interpretação da nota técnica de 2018 e expõe a necessidade de sua correção.
É com base neste parecer que a vigente Nota Técnica nº 243/2019/CGLNES/GAB/SESU/SESU expressa a possibilidade de realizar consulta formal (com peso 70-30) ou informal (paritária) à comunidade universitária, desde que tais consultas possuam caráter meramente indicativo e não caráter impositivo entre o seu resultado e a decisão soberana do colegiado máximo na elaboração da lista tríplice.
Segundo a nota de 2019, item 27, “a ilegalidade não se encontra no processo de consulta à comunidade universitária com a adoção da votação paritária, mas sim, na vinculação do resultado da consulta à comunidade universitária na composição da lista tríplice, por usurpação da competência do colegiado máximo da universidade ou de colégio eleitoral que o englobe”.
Em conclusão, o material mais recente que trata sobre a interpretação jurídica defende a possibilidade de consultas informais e paritárias.
Mas a discussão, no seio da universidade, não deve se prender apenas à lei. Na verdade, a análise das disputas legais nos últimos anos nos mostra apenas um reflexo dos enfrentamentos travados no interior das universidades que, independente da lei e até mesmo contrários a ela, encamparam a luta pela consulta paritária.
É importante ressaltar que boa parte do que hoje é considerado legal um dia foi ilegal — e este processo de legalização de procedimentos e criação de leis só surge porque muitos se dispuseram a cometer o que então era ilegalidade. É preciso lembrar que direitos extremamente caros a nós como o direito à greve só se tornou direito legal com muita greve que era então considerada fora da lei. De igual forma, no interior das universidades, a própria consulta à comunidade só entrou na lei porque inúmeras instituições, inclusive com a UFSC entre uma delas, se opuseram à legislação vigente e atuaram como achavam melhor.
É muito comum entre os defensores da consulta não paritária o argumento de que ser democrático é atuar conforme a lei. De certa maneira, o que é legal expressa o que, em um dado período histórico, a sociedade ou quem a dirige entende como correto.
Mas não é porque é legal ou está na lei que devemos seguir e nos resignar. Ainda mais se tratando de uma instituição que serve para pensar a realidade social e, munida de autonomia, criticar a tudo e a todos, inclusive o Estado, a constituição e o aparato legal.
De igual forma, atualmente o Brasil permite que o Presidente da República intervenha na escolha do dirigente máximo das universidades. É permitido, legal, que haja intervenções e nem por isso as comunidades universitárias ficam resignadas quando isso acontece.
É legal que exista um mecanismo que permita a prisão preventiva de investigados, mas nós denunciamos isso quando representa um abuso de poder, como aconteceu em 2017, com a prisão do reitor Cancellier.
Esse argumento revestido de legalidade apenas busca reviver uma derrota que até hoje os setores mais reacionários da UFSC não engoliram. É importante lembrar que não foi pequeno o número de professores que resistiram a essa mudança. Bastaria lembrar que há alguns anos cerca de 800 professores assinaram um abaixo-assinado defendendo a proporção 70/30. A própria entidade sindical dos docentes, a Apufsc, em 2015, se negou a aceitar a consulta paritária, não compôs a comissão eleitoral e ainda realizou uma consulta paralela (com proporção 70/30), na véspera das eleições.
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A defesa do 70/30 agora se apresenta sob o argumento do medo. Como se para evitar uma intervenção federal fosse necessário pisar em ovos evitando qualquer margem para judicialização. Mas é preciso lembrar que as intervenções não ocorrem por que há desvio na lei ou irregularidades. Esse é apenas o argumento apresentado pelo governo federal como justificativa de suas intervenções políticas e autoritárias nas instituições.
Na verdade, a melhor forma de se munir contra uma intervenção é fortalecer a democracia e a participação da comunidade universitária. Sabemos, pelos inúmeros exemplos recentes, que um reitor não empossado não pressiona o governo federal sozinho. Ao contrário, os recuos do governo só acontecem quando há uma mobilização da comunidade universitária contra a intervenção. Não se trata de uma disputa pela verdade com governo, mas da mais simples disputa de força. E para a UFSC ser forte, precisa estar ancorada num movimento de base forte e preparado.
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O melhor remédio para o momento em que vivemos é fortalecer as estruturas democráticas da universidade defendendo com unhas e dentes uma eleição que ouça os segmentos que compõem a sua comunidade no mínimo de forma paritária.
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