Ana Zandoná – Redação do UFSC à Esquerda – 22/05/2023* – atualizado às 22h04min.
Na tarde de ontem, em mais uma ação descabida, racista e violenta contra a cultura popular em Florianópolis, a Polícia Militar (PM) de Santa Catarina (SC) coibiu a realização de uma atividade do grupo de Maracatu Arrasta Ilha no campus Trindade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Na “abordagem”, a PM alegou ter recebido uma denúncia de “perturbação ao sossego”, por parte de alguém que estaria próximo ao local onde o grupo se reunia em uma oficina de Maracatu. Ainda, reafirmando sua truculência, a PM ameaçou tomar os instrumentos musicais caso a atividade não fosse encerrada, acusando a mesma de criminosa.
O grupo Arrasta Ilha realiza seus ensaios e suas atividades periodicamente na universidade há 21 anos, inclusive como projeto de extensão da mesma, sendo um dos grupos mais tradicionais de percussão existentes na cidade de Florianópolis.
A atividade que ocorria no momento da abordagem se tratava de uma oficina de dança ministrada por Alexandra Alencar.
Em suas redes sociais, o Arrasta Ilha denunciou a abordagem violenta da PM, a restrição de uso do espaço da Universidade pela comunidade e a ação do Governo Estadual contra a cultura popular.
Em contato com o UFSCàE, o grupo ressaltou:
“Vale destacar que o Arrasta Ilha é um projeto de extensão dessa Universidade, nossos ensaios acontecem aos domingos há 21 anos nesse local e que a atividade de ontem especificamente era uma aula de dança ministrada pela própria professora Alexandra (que sofreu ameaça direta do policial que nos abordou)”.
Durante o dia de hoje (22), a professora Alexandra Alencar esteve em reunião com a Reitoria para tratar da abordagem truculenta da PM.
Ao final da tarde, a Reitoria publicou uma nota de esclarecimento sobre o ocorrido, afirmando ter sido surpreendida com a ação da PM com relação à atividade. Confira a nota na íntegra:
Nota de esclarecimento sobre interrupção de atividade cultural na UFSC
A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) esclarece que o projeto de extensão “Coletivo Afro-Floripa: práticas percussivas e corporais da cultura de matriz africana e afro-brasileira na Grande Florianópolis” está cadastrado no Sistema Integrado de Gerenciamento de Projetos de Pesquisa e de Extensão (Sigpex) desde janeiro de 2021. E que desde 2002 o Maracatu Arrasta Ilha, uma das entidades envolvidas, realiza atividades de aulas práticas de dança e percussão no espaço público da Universidade.
O projeto está plenamente integrado aos objetivos e atividades-fim da Universidade, já tendo originado artigos científicos (pesquisa), colaborado para formação de estudantes de graduação (ensino) e levado arte e cultura para a comunidade (extensão), além de apresentar a Universidade a centenas de pessoas.
Por isso, a Universidade foi surpreendida e viu com estranheza a ação de policiais militares de interromper a aula de dança do Maracatu Arrasta Ilha que se realizava no domingo, 21 de maio, na área central do campus. A ação da PM, segundo os policiais, teria sido motivada por reclamações de perturbação do sossego feitas por moradores da vizinhança da Universidade.
Em vista do ocorrido, a UFSC está solicitando reunião com o comando da Polícia Militar para que o atendimento dessas ocorrências seja pautado pelo diálogo e busca de equilíbrio entre o direito ao sossego dos cidadãos e o direito coletivo de participar de manifestações culturais.
A UFSC reafirma que respeita a comunidade da vizinhança e apoia muitas de suas demandas e interesses, além de seguir as leis. No entanto, defende sua autonomia e liberdade para realização de atividades que também trazem benefícios à sociedade, como a valorização da cultura de matriz africana e da própria cultura brasileira, que é o caso do mencionado projeto de extensão.
Na noite desta segunda (22), o grupo Arrasta Ilha publicou em seu instagram uma nota de repúdio à ação da PM, confira abaixo:
NOTA DE REPÚDIO
O Maracatu Arrasta Ilha fundado em 2002, tem por objetivo estudar, pesquisar e desenvolver ações de ensino e aprendizagem sobre a cultura e prática do Maracatu de Baque Virado nas dependências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em Florianópolis / SC.
Nossas atividades são formalizadas como projeto de extensão desta instituição denominado Coletivo Afro-Floripa: práticas percussivas e corporais da cultura africana e afro-brasileiro na Grande Florianópolis e está cadastrado no Sigpex sob o número 202101040. Tal projeto ainda abrange as ações dos grupos de percussões e danças africanas Abayomi e o grupo de capoeira angola Ginga Erê que vem fomentando a cultura de matriz africana no espaço público da UFSC.
Ao longo desses 21 anos o Maracatu Arrasta Ilha, em particular, e o Coletivo Afro-Floripa de forma mais abrangente vem executando a extensão, fazendo com que centenas de pessoas conheçam a UFSC por meio desta prática de ensino e aprendizagem da cultura negra, possibilitando aos participantes o intercâmbio com os saberes e fazeres de mestres e mestras desta prática cultural negra ancestral existente no Brasil há mais de 300 anos. O projeto também contribui para pesquisa com a publicação de artigos sobre as ações do projeto de autoria de seus integrantes. No que tange ao ensino, por meio da Bolsa Cultura da Secarte o projeto vem há três anos consecutivos formando estudantes de graduação.
Por fim, nesse tempo de atuação sempre estivemos em parceria com a UFSC desde o zelo pelo seu patrimônio, sendo flexíveis em nossas atividades quando da realização de concursos públicos, bem como estivemos presentes em ações desta instituição de divulgação científica como em várias edições da Semana de Ensino, Pesquisa, Extensão e Inovação da UFSC (Sepex/UFSC) e Experimenta – Festival de Arte e Cultura da UFSC, além da realização de eventos próprios, junto com os demais grupos que compõe o projeto de extensão Coletivo Afro-Floripa, com apoio do edital Procultura da UFSC, a exemplo do 1º e 2º Encontro Alapalá: encontro de mestres da cultura popular e de matriz africana, realizado em 2017 e 2018 na UFSC.
E deste lugar manifestamos nosso TOTAL REPÚDIO diante da interrupção de nossas atividades formativas pelos representantes da Polícia Militar de Santa Catarina ocorrida no último domingo, dia 21/05/2023, alegando acusação de perturbação, sem a possibilidade no diálogo, de tentarmos uma alternativa que pudesse mitigar a emissão de ruídos atendendo o desejo de ambas as partes envolvidas.
Entendemos a existência dos direitos individuais, mas também a existência de direitos coletivos, inclusive esses últimos resguardados pela Constituição Federal de 1988 de expressão, formação e difusão sobretudo de manifestações culturais negras constituintes daquilo que entendemos como cultura brasileira. Além de uma série de legislações em âmbito federal, estadual e municipal que garantem a implementação da História e Cultura Afro-brasileira em instituições de ensino em todos os níveis de formação. E nesse sentido estamos no diálogo com a gestão da UFSC para criarmos estratégias de assegurar a continuidade das atividades do Maracatu Arrasta Ilha neste espaço público de ensino.
Aproveitamos também essa nota para expressar nossa profunda gratidão a todas as pessoas, entidades e representantes do poder público, que por meio de mensagens externaram o reconhecimento do nosso trabalho ao longo desses anos e a importância de sua continuidade a serviço da visibilidade e valorização da cultura e população negra sobretudo no sul do país que tem um reconhecido processo histórico de invisibilidade negra.
Nossos tambores ecoam e nossos corpos se movem a serviço de uma ancestralidade negra que viveu e vive para ser respeitada, não tolerada, em sua forma de ser, estar e agir no mundo. Um mundo estruturado por várias formas de opressões destacando aqui o racismo que se sofistica, se complexifica e por vezes, se atualiza no discurso de “pertubação por barulho”.
Nesta lógica é possível inferir sobre a importância de se colocar em prática as legislações da ordem educacional, sob o ponto de vista de refleti-las sob a ótica emancipatória no sentido de combater sequelas históricas de uma dominação secular com lugares marcados ou reflexões destinadas na qual todas/os perdem.
Assim o Maracatu Arrasta Ilha, no âmbito das atividades formativas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) se coloca de forma pedagógica de trazer essa herança ancestral negra, lutando por sua continuidade, no intuito de aprendermos por meio dela a SER/ESTAR/AGIR no mundo de forma mais empática e afetiva.
Nossos tambores não vão se calar, porque ecoam vidas e ancestralidades negras que devem ser respeitadas!