Allan Kenji Seki e Marcos Meira* – Redação UàE – 26/10/2018
Já são incontáveis os atos estudantis nas universidades, centros de ensino, faculdades, institutos e escolas. Esses atos contra o ascenso do ódio como forma política tomaram o fascismo como chave que permite a identificação fácil do risco real e eminente de que nos confrontemos contra um regime totalitário novamente escancarado.
Vários estudantes em todo o país deliberaram paralisar as atividades acadêmicas. Esses movimentos, absolutamente espontâneos e auto-organizados, seguem movidos por um espírito renovado de independência e de participação política no destino da vida nacional como há muito não víamos nas próprias universidades, carcomidas por uma dinâmica que burocratizou o cotidiano da vida acadêmica na maioria dessas instituições.
Qualquer conversa rápida com estes estudantes permite perceber o vigoroso sentido nas suas demandas. Uma estudante do curso de psicologia da UFSC, o expressou de forma sublime: “Tipo, não há nada mais violento do que sentir que existe algo realmente perigoso logo ali na esquina e termos que sentar nas salas de aula discutindo temas e textos que não tenham nada a ver com essa catástrofe que está por vi. Quando a professora entrou na sala, na segunda-feira [após o primeiro turno das eleições] e começou a escrever no quadro, como se nada de grave estivesse acontecendo, eu senti uma solidão imensa, tive que sair dali, mas encontrei vários colegas lá fora e, de repente, começou a acontecer [as mobilizações] e eu não estava mais sozinha”.
Obviamente, nunca será fácil paralisar as atividades acadêmicas. Só quem nunca participou de uma experiência política deste tipo pode pensar que se trata de uma folga. Há enormes desgastes na ordem das relações pessoais e políticas, as atividades que antes restringiam-se ao turno de estudos, passam a ocupar todo o dia dos estudantes mais mobilizados. Mesmo na hora do almoço, podemos encontrar dezenas deles em reuniões. Além disso há o assédio daqueles que discordam das paralizações e que se recusam a construir assembleias decisórias, preferindo espalhar boatarias e outras formas de sabotagens.
A rápida passagem por uma ou mais instituições mobilizadas logo nos faz chegar a conclusão de que algo de muito importante está acontecendo. Porque à despeito de todas as dificuldades, estes estudantes resistem e assumem a coragem de tomar nas mãos seus próprios destinos e o destino do país. O que há de renovado aí é o senso de que as instituições falharam, que a democracia no Brasil é frágil demais e que aqueles que deveriam ter agido para impedir que as coisas chegassem a este termo, mostraram-se inertes e, talvez, façam mais parte do problema do que da solução. Há um senso importante de que a democracia no Brasil não resiste ao ascenso do ódio como forma política e que será preciso empurrar o Brasil à uma democracia verdadeiramente radical, na qual as pessoas tenham maior espaço para protagonizar as grandes decisões sobre suas vidas.
É assustador, portanto, que justo neste momento os tribunais regionais eleitorais tenham agido para coibir essas manifestações, determinando mandados de busca e apreensão de materiais, faixas, cartazes e bandeiras contra o fascismo, o autoritarismo ou em defesa da democracia. E que tenham feito isso sob o pretexto de que a justiça passaria a entender que tudo aquilo que se dirige contra um candidato, beneficiaria o outro e, assim, poderia ser propaganda ilegal.
Assusta que neste gesto a nata da justiça eleitoral brasileira reconheça que a luta contra o fascismo se dirige realmente contra um candidato à Presidência da República e que a partir desta premissa, dirija-se contra os estudantes das universidades públicas. Não seria de se esperar que se a justiça reconhece que um candidato é fascista – aliás como todos os grandes jornais europeus, norte-americanos e latino-americanos – não seria razoável e justo que ela agisse contra o candidato? Não seria de se esperar que a justiça coibisse o fascismo, o autoritarismo, as ameaças reais ao frágil regime liberal-democrático brasileiro?
Estas instituições que querem nos convencer de que estão fortes e independentes, na realidade não cessam de oferecer sinais invertidos. Ontem (quinta-feira, 25), pelo menos 32 instituições universitárias sofreram intervenções. A Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB), em nota, teve que vir à público para afirmar o que deveria ser auto-evidente: “A manifestação livre, não alinhada a candidatos e partidos, não pode ser confundida com propaganda eleitoral. Quaisquer restrições nesse sentido, levadas a efeito, sobretudo, por agentes da lei, sob o manto, como anunciado, de “mandados verbais”, constituem precedentes preocupantes e perigosos para a nossa democracia, além de indevida invasão na autonomia universitária garantida por nossa Constituição”.
A educação não pode ser orientada pelo apassivamento dos debates políticos. Todos os acontecimentos importantes na vida nacional vibram no interior das instituições educativas e isto é absolutamente necessário, pois a defesa das instituições brasileiras e a reformas destas em direção a uma verdadeira radicalização da democracia exige a formação de sujeitos capazes de pensar criticamente, com liberdade de pensamento e de manifestação.
No caso das universidades brasileiras é necessário que se tenha clareza de que isto não só é possível e necessário por se tratar de uma instituição educacional (educação é muito mais do que apenas ensino), como faz parte do papel histórico das mesmas. É parte fundamental do papel histórico e universal das universidades que elas sirvam de contrapeso aos governos autoritários e às ameaças aos poucos avanços democráticos experimentados pela sociedade brasileira. Não por acaso, estas são as instituições as quais as sociedades transmitiram a função de realizar a crítica contra tudo e contra todos, mesmo quando entre eles se possa contar o governo, a religião, o Estado e qualquer outra instituição nacional ou estrangeira. As universidades precisam conviver, portanto, com absoluta defesa de suas autonomias, não podendo ser constrangidas em suas manifestações.
Cabe a cada um de nós defender que as universidades não se confundem com instituições que realizam a mera formação de profissionais (ou seja, não se restringem ao ensino), elas são verdadeiras guardiãs do espírito crítico da civilização brasileira. A luta contra os governos autoritários não prescinde de instituições livres e independentes para que a crítica se insurja contra todas as formas de tiranias (à direita ou à esquerda do espectro político).
Socialistas, liberais, republicanos, democratas têm na defesa da autonomia das universidades e de suas funções precípuas quanto a liberdade uma dívida ética e política. Nenhum de nós será digno de viver em uma sociedade livre, sem defender a qualquer custo as próprias condições necessárias e caras a esta liberdade. Não podemos ceder quanto ao direito às livres manifestações e isso prescinde de nossas próprias convicções sobre o teor político das mesmas ou do mérito de suas reivindicações. Qualquer ato em contrário, fere o que ainda havia de comum e positivo entre todos os que defendem uma sociedade livre e contra todas as formas de tiranias.
De volta ao chão das universidades, quando olharmos de perto para aqueles que se colocam contrários a essas manifestações livres, vemos que há uma reivindicação em sentido inverso: não querem que suas aulas sejam atrapalhadas. Eles vestem, então, certa roupagem de liberalismo, exigem o respeito às suas liberdades pretensamente individuais, exigem formas de participação política que sirvam melhor aos seus propósitos pessoais de impedir que os outros se manifestem ou manifestem também suas liberdades de opiniões. Esses pretensos liberais, convivem muito bem com o ambiente de rechaço às liberdades de manifestações e se calaram solenemente – quando não comemoraram entre os seus – sobre as investidas da justiça eleitoral contra as universidades. São justamente esses “liberais” que nada falam sobre a ameaça de um novo tirano, contra o ascenso da violência como forma política, nada falam contra o racismo e outras formas de violências de classe. Reclamam porque querem que tudo se passe na universidade como se nada estivesse realmente acontecendo, portanto, querem que esses que não se satisfazem com o bom caminho do matadouro calem a boca e não atrapalhem com seus arroubos por liberdades democráticas. Afinal, não é estranho que alguém como Bolsonaro consiga falar tão bem com certa parcela de estudantes “liberais” e com aqueles que representam o que há de pior entre os conservadores. É uma situação completamente estapafúrdia e imbecil.
São tempos realmente funestos estes nos quais caiba justamente aos socialistas ensinar a estes autoproclamados liberais que quando alguém está para fazer da cadeira presidencial o seu trono e reinvestir a sociedade brasileira das piores formas de tiranias, esse é o momento em que, no jogo político, todos nós nos encontraríamos à esquerda – deste ou de qualquer candidato à ditador do Brasil.
A esquerda é a última trincheira contra o autoritarismo (e contra a imbecilidade como projeto de vida).
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