Flora Gomes – Redação UàE – 28/02/2019
Apesar de ser uma instituição que preconiza a educação formal – antes estimulada à produção de conhecimento científico, artístico e filosófico, mas hoje cada vez mais voltada para a lógica profissionalizante e de mercado – a Universidade é um lugar que nos lega lições pedagógicas diariamente. Em seus diversos espaços, que transcendem apenas a transmissão de um conhecimento específico requisitado em uma dada disciplina, essa instituição ensina sobre valores diariamente.
Em uma disciplina de Cálculo I, por exemplo, além do aprendizado acerca de derivadas e integrais, os professores ensinam aos alunos do Centro Tecnológico “como funciona a vida”; estimulam seus estudantes a adaptarem-se à regras autoritárias e arbitrárias, muitas vezes infundadas, porém “necessárias à transmissão desse sagrado conhecimento da matemática”; reprovam diversos estudantes para transmitir-lhes que é preciso adaptar-se a uma determinada forma de aprender: atencioso e calado. Os alunos não podem recorrer à nota e nem questionar. É necessário estudar mais até que sua forma de apreender esteja em conformidade com o que espera o professor.
Mesmo que a matemática seja exata, o exercício pedagógico não o é. Eventualmente podem existir questões à argumentar. Todavia, não há espaço para questionar; afinal, “contra os números não há dúvidas”. Os alunos são rapidamente silenciados e aprendem como funcionam as coisas. É assim que os alunos do CTC aprendem que não se pode sonhar com outras realidades; antes, é necessário obedecer e adaptar-se às autoridades.
É possível escutar dos alunos da área tecnológica que do outro lado do rio é diferente; que no Centro de Filosofia e Ciências Humanas as coisas são mais fáceis. Os professores até criticam o atual governo, o corte das políticas públicas e, quando muito descolados, bebem uma cerveja com seus alunos. Entretanto, ao olhar de perto, é a outra face da mesma moeda.
Na sala de aula o professor defende as cotas e tem uma década de estudos voltados para compreender a desigualdade social; entretanto, ao debater em gabinete acerca das questões de permanência de alunos, afirma que em cursos integrais o discente tem que ser capaz de dedicar-se em sua totalidade, independente da sua conta bancária. Uma pena ele ter que trabalhar ou ter pressa para se formar: “não é possível fazer concessões ou adaptações”. Dizem que são contra os cortes na universidade pública – defendem ela ferozmente – mas votam em caráter unânime em um projeto ilegítimo que impõe o empresariamento da educação. Fazem acordos e trocam favores em nome da “boa convivência” – o famoso corporativismo.
No CFH, como muitos estudos – supostamente – dedicam-se à alterar essa difícil realidade, a face da impossibilidade de mudança é vestida de cinismo: “eu até gostaria de ajudar, mas não posso”.
Assim como os professores do CTC, no CFH eles ensinam aos seus alunos que não é possível transformar a realidade, afinal, as “coisas funcionam assim”, “é a burocracia, não há nada a fazer”. Utilizam-se dessas desculpas superficiais – nem sequer esforçam-se para buscar algum fundamento que legitime de fato suas decisões – para não assinar um documento, não alterar uma ementa, não ensinar determinado autor, não legitimar as decisões em assembleia de curso… Entre outros “nãos”. O fato é que a lógica é a mesma: “conforme-se”.
Grande parte daqueles que se identificam como a esquerda do movimento estudantil também lega seus tristes ensinamentos. Utilizam-se da pobreza e do “trabalho de base” – seja lá o que esse conceito significa para essa esquerda – para afirmar seu caráter popular. Entretanto, votam a favor de regimentos injustificados e burocratizam espaços – arrancando a radicalização das lutas – com a desculpa de que “é preciso fazer, o atual momento político exige isso”, sem grandes preocupações em responder ao corpo estudantil qual elemento concreto é explicativo para tal posição. Ensinam para os estudantes que a burocratização dos espaços é condição indispensável para a luta revolucionária. Aqueles que questionam logo aprendem que: 1) serão silenciados ou 2) são muito ignorantes e portanto não compreendem que a terrível conjuntura leva a essa decisão específica. Mais uma vez os estudantes são ensinados a não questionar, a não serem curiosos com o processos e, logo, a adaptarem-se a uma forma desonesta de fazer política.
A conjuntura de fato é difícil, mas não é possível confiar naqueles que transmitem em suas práticas o ensinamento de que é preciso matar a vontade de transformá-la ou administrá-la com doses de mera indignação retórica.
Aqueles que acham que a universidade é apenas a instituição responsável pela formação de mão de obra para o mercado de trabalho ou – como tende a pautar o atual movimento estudantil – que é um local para a reprodução de cartilhas de militância de seus partidos, acabam esquecendo-se que essas atitudes políticas deixam um legado pedagógico, podendo representar um peso histórico para nós: o fardo de arrancar brutalmente a nossa capacidade de sonhar e construir outras realidades.
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