Foto: Professora Sara Granemann – ANDES-SN.
Luiz Costa – Redação UàE – 21/03/2019
No dia 20 de fevereiro, Jair Bolsonaro apresentou ao presidente da câmara, a Proposta de Emenda à Constituição que desmonta o sistema de previdência social (PEC 6/2019). O projeto do economista Paulo Guedes prevê mudanças substanciais para as condições de sobrevivência da classe trabalhadora brasileira, reduz substancialmente o valor dos benefícios previdenciários, retarda o início da aposentadoria e restringe o alcance da assistência social.
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Sara Granemann, pesquisadora da área previdenciária, concedeu entrevista à Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pelotas (ADUFPel-SSind). A Assessoria ADUFPel-SSind, que realizou a entrevista, autorizou a publicação no Jornal UàE.
A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) falou ao jornal da associação, Voz Docente, que “a PEC 6/2019 é um ataque do grande capital e de seu governo à classe trabalhadora em seu conjunto”.
No fundo, essa proposta “quer ‘resolver’ de uma vez por todas a existência constitucional da previdência social como um direito da classe trabalhadora […] retirar da Constituição o direito de definir o que é previdência social, o que é previdência pública”, de acordo com Sara.
Sobre a justificativa que há um risco de quebrar as contas do país, Sara afirma que “mesmo com tanta isenção de impostos aos capitais, mesmo que tantos grandes capitais não cumpram suas obrigações com as aposentadorias da classe trabalhadora, mesmo com a desvinculação das receitas da União (DRU), que com Temer chegou a 30% do orçamento da seguridade, não há um risco de quebra”.
De acordo com a pesquisadora, a previdência privada “é uma não-previdência porque não é algo do mundo previdenciário, mas sim do mundo do capital bancário, do mercado dos capitais”.
Confira a íntegra da entrevista:
Voz Docente (VD): Quais são as principais diferenças entre esta Contrarreforma da Previdência apresentada pelo Bolsonaro e a de Temer? Ela é mais dura que a de Temer? Por quê?
Sara Granemann (SG): Sim, é mais dura. Primeiro, é importante que se diga que essas contrarreformas não seriam tão duras como são se elas já não tivessem tido o terreno aplainado pela Emenda Constitucional (EC) 20/1998 e pela Emenda Constitucional 40/2003, dos governos anteriores de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva. Por quê? Porque se não tivessem ocorrido essas duas contrarreformas previdenciárias anteriores, o nível dos direitos previdenciários, políticos, sociais e trabalhistas estaria num plano mais alto e a redução não poderia ser tão dramática quanto a que está em causa. Antes da EC 20/98, não havia a possibilidade de “previdência privada”, complementar e por capitalização, no âmbito da proteção previdenciária constitucional.
Segundo, sim, a Proposta de Emenda Constitucional 6/2019 proposta pelo governo de Bolsonaro é a pior de todas; chega a ser pior do que a do governo golpista de Temer, que também prejudicava com seletiva perversidade as mulheres e tinha um claro direcionamento misógino que parecia expressar um ódio quase militante contra nós mulheres. A PEC de Bolsonaro aprofunda essa terrível direção e agrega mais perversão contra nós mulheres, talvez porque as mulheres foram a principal força na oposição a sua eleição e tenham feito aquela bela campanha do #EleNão.
Penso ainda ser importante não perder de vista: a PEC 6/2019 é um ataque do grande capital e de seu governo à classe trabalhadora em seu conjunto. É a materialização da luta entre as classes sociais fundamentais, de um lado os grandes capitais e seus governos e, de outro, a classe trabalhadora em todas as suas fases de vida (jovens e idosos), em seus diferentes empregos (no Estado e pelos capitais), no campo e na cidade, homens e mulheres.
Entretanto, os homens não tiveram a idade mínima elevada pela PEC 6/2019 de Bolsonaro; e a proposta não deveria mesmo ter elevado a exigência de idade mínima dos homens; não somos nós as mulheres quem defendemos que os trabalhadores homens trabalhem até morrer; nós não defendemos menos direitos para os homens. Mas também não queremos que nós mulheres, que temos até três jornadas de trabalho, tenhamos nossa idade mínima para o alcance da aposentadoria elevada para além do que podemos viver e que se desconheça nosso trabalho porque, no Brasil, a classe trabalhadora morre muito mais cedo do que idosas e idosos da burguesia. Nascer e morrer em nosso país está determinado pela classe social, pelo gênero e pela cor.
Ao elevar a idade mínima para a aposentadoria das mulheres a PEC 06/19 demonstra a concepção que o governo tem das trabalhadoras em nosso país. Ao punir as mulheres de modo decidido desnuda sua misoginia e estimula a oposição entre homens e mulheres por não reconhecer a enorme responsabilidade nos trabalhos invisíveis de reprodução social da vida e da classe que toca às mulheres: da gestação, concepção, maternidade e do cuidado das crianças, das tarefas da casa acrescidas daquelas que dizem respeito ao cuidado das pessoas idosas e das pessoas doentes da família.
No “conjunto da obra” a PEC de Bolsonaro é ainda mais dura do que a de Temer porque, no campo da retirada dos direitos, pretende modificar para pior também os direitos trabalhistas ao aprofundar o ataque ao PIS e ao PASEP, ao modificar a saúde do trabalhador e pretende à política de assistência social. Esta carga de ataques aos direitos da classe trabalhadora constituem, de forma mediada e sem rodeios, um sério aumento da exploração da classe trabalhadora.
Mas ela é uma PEC mais dramática por duas razões, que são as razões determinantes para esta contrarreforma existir. A primeira é que essa PEC não quer “apenas” realizar uma contrarreforma das políticas sociais de seguridade social (previdência social, saúde pública e assistência social) com ênfase na destruição dos direitos à aposentadoria e à pensão públicas; ela quer “resolver” de uma vez por todas a existência constitucional da previdência social como um direito da classe trabalhadora. De que modo? A PEC 06/19, e esta é uma diferença profunda com relação a todas as outras anteriores EC, quer banir da Constituição os assuntos previdenciários e os transformar em leis elaboradas pelo executivo de plantão, sem que a classe trabalhadora tenha a oportunidade de debater as mudanças propostas para a previdência social. Desconstitucionalizar os assuntos previdenciários, os temas da política social de assistência, o debate da saúde pública constitui inaceitável ataque à democracia e à vida da classe trabalhadora. Essa é uma das fortes razões: retirar da Constituição o direito de definir o que é previdência social, o que é previdência pública.
A outra é a capitalização. Esta é a razão da existência desta contrarreforma. Se na contrarreforma do Temer já existia, na contrarreforma de Bolsonaro a capitalização é o horizonte, mesmo que ela não apareça para todos os trabalhadores imediatamente, mas essa contrarreforma foi proposta para que a capitalização seja a forma de pensar, de fazer, e de destruir a previdência pública, social, no Brasil. Ocorre que a capitalização não é previdência, capitalização não é política social. Capitalização, como o próprio termo o indica vem de capital. Capitalizar é a tentativa de aumentar os capitais, mas a previdência não é um capital. Se os capitais nos quais esta “previdência” foi investida tiverem êxito e se multiplicarem a “previdência privada” a ser repartida com trabalhadores e trabalhadoras receberá uma pequena parte do que rendeu; somente uma pequena fração desta enorme lucratividade será devolvida para a classe trabalhadora e isto no melhor dos cenários, se aqueles negócios nos quais esta “previdência” foi investida não quebrarem.
VD: Quais os pontos mais críticos da Reforma de Bolsonaro?
SG: Além dos já mencionados, são: a redução dos valores previdenciários e a elevação para receber aposentadoria para 62 anos se mulher e 65 anos se homens; a redução dos valores dos benefícios assistenciais cuja a elevação da idade mínima para receber os benefícios assistênciais a PEC 06/19 quer passar para 70 anos. É também muito grave a alteração na forma de contribuição para a agricultura familiar, a que produz alimentos em pequena escala, comida saudável e livre dos agrotóxicos do agronegócio. Altera a forma de pensar a aposentadoria, de calcular a aposentadoria para todos os trabalhadores e trabalhadoras e eleva as exigências de tempo de contribuição para se ter a aposentadoria integral para 40 anos para alcançar a integralidade que pode ser apenas de um salário mínimo para a maioria da classe trabalhadora. Isso não é dito de forma explícita, mas quando se faz o cálculo você percebe que o que está em questão não são mais 30 e 35 anos de trabalho, mas são 40 anos de trabalho para todos.
Todavia o mais grave é que o tempo de contribuição deve ser combinado com outros quatro requisitos e que todos devem ser alcançados cumulativamente. Então não basta alcançar a idade ou o tempo de contribuição, há que se cumprir todos os diferentes requisitos. Quantos e quantas conseguirão chegar ao cumprimento dos diferentes requisitos em um país no qual em muitos lugares, do Norte ao Sul, do Leste ao Oeste, a expectativa de vida é inferior ou muito próxima à exigência da idade mínima para alcançar a aposentadoria; este é um ponto muito dramático.
VD: Bolsonaro afirma que é necessário equilibrar as contas do país para que o sistema não quebre. Isso se justifica?
SG: Não há risco de quebra do sistema previdenciário público no Brasil se se respeitar o ditado pela Constituição da República Federativa do Brasil. Mesmo com tanta isenção de impostos aos capitais, mesmo que tantos grandes capitais não cumpram suas obrigações com as aposentadorias da classe trabalhadora, mesmo com a desvinculação das receitas da União (DRU), que com Temer chegou a 30% do orçamento da seguridade, não há um risco de quebra. O que ocorre? Ocorre que previdência é uma contribuição de largo prazo porque a classe trabalhadora contribui por décadas, todos os meses, renovando esta imensa massa de riqueza.
Nas contas do governo e dos mercados de capitais estas contrarreformas que retiram direitos e estabelecem mais sacrifícios para as/os trabalhadoras/es, em apenas 10 anos, podem propiciar uma economia de mais de R$1 trilhão e 100 bilhões – uma massa incrível de dinheiro, de riqueza – que se subtrai das aposentadorias da classe trabalhadora para repassá-la aos capitais e, em especial, ao capital bancário.
O que está em questão é retirar esse dinheiro das aposentadorias públicas para que ele seja drenado para as formas de “previdência privada”, que eu sempre costumo alertar é uma não-previdência porque não é algo do mundo previdenciário, mas sim do mundo do capital bancário, do mercado dos capitais. Drenar essa quantidade enorme de dinheiro para que isso alimente investidores em busca de juros (o capital portador de juros e fictício), alimente o capital bancário, para que se alimentem os lucros financeiros enquanto empobrece a classe trabalhadora não pode ser algo denominado por previdência.
A massa de dinheiro gerada pela previdência social e também pela “previdência privada” nesta última baseada na ilusão do nome, é gigantesca, razão pela qual os capitais não desejam que tais fortunas destinem-se à proteção da classe trabalhadora. Querem-na para si para que seus lucros voltem a crescer e que este montante de riqueza resolva suas crises, as crises de seus capitais às custas da classe trabalhadoras brasileira.
VD: Bolsonaro também afirmou que a Reforma pretende fazer a “equiparação” da aposentadoria, para que as pessoas de todas as classes se aposentem com a mesma idade. No entanto, há uma imensa desigualdade social no Brasil. Nem todos trabalham nas mesmas condições. Por que essa equiparação é problemática?
SG: Com relação ao que o presidente tem disseminado, que ele quer uma equiparação das previdências públicas dos dois regimes públicos para alcançar a igualdade, é mais uma das afirmações bem estranhas que, se não fosse inverossímil seria ao menos espantosa já que a ideia de equiparação é por achatamento dos mais bem postos na escala salarial isto é, para alcançar a igualdade a PEC quer reduzir as condições de vida de todos à mais degradada das condição e a isto dirá igualdade e equiparação de condições de aposentação.
A igualdade, no caso da proposta presidencial, não é alcançada elevando os que estão abaixo para cima, mas reduzindo os que estão um degrau acima para um degrau mínimo. Então é uma falácia que isto seja equiparação com o objetivo de promover justiça social. É uma pretensa igualdade construída pela via do aumento brutal da desigualdade social, deixando todos mais empobrecidos e mais explorados. É uma menção à equiparação sem o reconhecimento de que mulheres e homens são muito desiguais, que homens brancos e homens negros têm condições desiguais, que mulheres negras e homens negros têm condições desiguais, que há em todos os campos de trabalho e em todos os momentos da vida da classe trabalhadora no Brasil, muita exploração. É dizer que o salário mínimo é a base e que todo mundo deveria ter, do público, um salário mínimo. Significa, na nossa crítica, que a PEC ao estabelecer um salário mínimo como referência desta (des)igualdade ela acaba por revelar a profunda exploração da classe trabalhadora imputada à classe trabalhadora brasileira.
Quando a aposentadoria começa a ser cogitada pelos governantes para ter o valor de um salário mínimo, isso está a falar da péssima condição de remuneração da classe trabalhadora ativa no Brasil. Se é “digno” pensar uma aposentadoria de um salário mínimo como o valor máximo público para a classe trabalhadora brasileira, significa dizer que a potencialização da exploração da classe trabalhadora está a níveis para além do suportável. Significa dizer que o valor da classe trabalhadora no Brasil é um dos mais baixos de todo o mundo, quiçá da classe trabalhadora no modo de produção capitalista, porque a aposentadoria não está apartada do salário; a aposentadoria é a continuidade do salário que nos dias ativos a classe trabalhadora reserva para poder viver nos dias da velhice. No Brasil, aposentadoria e salários é um só caminho que a classe trabalhadora trilha. Ao mesmo tempo que ela trabalha e recebe seu salário, ela contribui para aposentadoria. Então é algo ligado ao trabalho formal. Estamos falando de um trabalho formal muito pouco remunerado.
VD: Qual a importância de fazer frente a esta proposta?
SG: A importância é a de sempre. Somos classe trabalhadora e nada temos a comercializar senão nossas energias ao darmos aulas, escrevermos artigos, ao pesquisarmos e tantas outras atividades típicas da vida laboral docente, em troca de um salário que nos permita repormos nossas energias a cada dia e a reproduzirmos nossa prole. Neste caso, ao ataque aos nossos já combalidos direitos nos resta a mobilização de nossas energias de classe para lutarmos contra esta barbárie que nos querem impor. Os direitos sociais no modo de produção capitalista, a história já mostrou – tanto no centro do mundo, na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá – para existirem dependem do protagonismo de trabalhadoras e trabalhadores.
Se não estivermos vigilantes, atentos e forte para defendermos a manutenção de nossos direitos tais direitos deixam de existir. Os direitos no modo de produção capitalista não são concessão já que toda a riqueza existente é produzida pela classe trabalhadora. Todo dinheiro da aposentadoria é produzido pela classe trabalhadora, por sua contribuição, por seu esforço, por seu trabalho, pelo seu desgaste, por suas doenças. Mesmo os impostos resultantes da contribuição previdenciária dos capitalistas e dos estados foi produzida pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores.
As sucessivas contrarreformas sobre nossos direitos que temos enfrentado, desde 1991, demonstram que no capitalismo nossos direitos não estão uma vez alcançados garantidos por todo o sempre. Sua permanência como direito ou como espaços novos de negócios dos capitais depende do pulsar das disputas entre capitais e trabalho, depende das mobilizações daqueles que não possuem as grandes indústrias, os grandes bancos, o grande comércio, os latifúndios e que portanto precisam de aposentadorias para sobreviverem depois do período de vida laboral ativa porque não possuem lucros para proteger-lhes na velhice. A classe trabalhadora sairá, caso não consiga se levantar e derrotar essa proposta – mais explorada, mais empobrecida e com menos direitos, muito menos!
A Grécia foi posta em situação semelhante a que nos acenam nos anos de 2012, 2013 e 2014; foram anos de tamanho ajuste, de tanta austeridade imposta aos trabalhadores pelos governos e capitais que ao período se convencionou chamar austericídio, quando a austeridade é tão profunda que ela não apenas miserabilidade, ela produz a morte por fome e desalento. Na Grécia a austeridade (o austericídio) provocou muitas mortes, muito sofrimento, muita fome, muita precariedade e muita ausência de condições mínimas para a vida. Então estamos diante de um quadro de necessidades dos grandes capitais que nos leva céleres para o austericídio; neste caso, nossa única saída é impedirmos a realização deste horizonte. Como dizia um importante chamado à luta de trabalhadores em um outro país em dias recentes, somos nós por nós.