[Debate] As consequências do stalinismo: a burocratização da Revolução Russa

Ana Júlia e Caio Sanchez* – Redação – 19/12/2019

Publicado originalmente no Universidade à Esquerda 

No presente texto pretendemos aprofundar no debate acerca da burocracia stalinista (1), apresentando elementos de como esse termo, a princípio vago e abrangente, expressou-se na história precedente da esquerda, mas se atualiza hoje no interior dos partidos, nas propostas à saída dessa crise apresentadas por determinado setor da esquerda e nas próprias análises de conjuntura apresentadas por  alguns partidos da esquerda.

Leia também: As consequências do stalinismo: o culto ao indivíduo e As consequências do stalinismo: o campo se abre à burocratização 

Por que debater stalinismo em pleno século XXI?

Uma parte daqueles que dispensam a necessidade e atualidade do debate sobre o stalinismo sustentam sua defesa sob a égide do anacronismo. Segundo esses setores, seria equivocado nesse momento histórico resgatar as divergências entre trotskistas e stalinistas, já que esses debates perduraram fortemente no campo da esquerda pelo menos desde a década de 1930 e teriam sido superados com o tempo e desgaste. Afirmamos em outros textos e reiteramos os equívocos desse argumento que 1) parte do princípio de que as críticas ao stalinismo estão resguardadas ao campo dos reacionários e 2) nega a forte presença de práticas stalinistas absolutamente antimarxistas nos partidos ditos “comunistas”.

Não há possibilidade de que este debate tenha sido esgotado, tendo em vista que uma das tarefas dos socialistas é compreender quais os processos revolucionários são possíveis hoje. Ainda que a discussão sobre as possibilidades revolucionárias atualmente seja repetidamente reduzida ao apelo estratégico, ou pior, tático, há questões históricas na disputa do movimento comunista precedente que, apesar de não serem abertamente pautadas, aparecem como pano de fundo teórico. Portanto, esse é um debate que ainda não está resolvido e cuja complexidade é minimizada aos aspectos superficiais. 

Além disso, a dificuldade dessa discussão apresenta-se não só pelos aspectos da suposta a-historicidade das disputas, mas também por grande parte das respostas situarem-se no campo do deboche, o que impede o debate político e o rebaixa a um debate de paixões; os stalinistas parecem tomar como princípio a defesa irrestrita da experiência soviética, deixando pouco ou nenhum espaço para qualquer contestação dos processos. Essa ridicularização atinge proporções absurdas: há aqueles inclusive que sentem-se confortáveis em afirmar que “stálin matou foi pouco” e os que fazem menção positiva e recorrente ao machado foi utilizado para o assassinato de Leon Trotsky. Ao que parece, os stalinistas muitas vezes colocam-se acima do debate, esquivando-se de responder com história e teoria revolucionária às críticas. Enquanto a história e o marxismo forem tratados com tamanho desdém, parece-nos que o debate sobre o stalinismo será pertinente. 

O desafio maior ao olhar para as experiências precedentes socialistas, marcadas em sua grande maioria pela influência soviética stalinista, é admitir que corremos o risco de nos depararmos com o abismo da nossa falha. A história não é cronológica ou sequencial, visto que o presente pode não só ressignificar, mas sobretudo reorientar o passado. É como chegar ao final do filme “O mistério de duas irmãs”, de Thomas e Charles Guard (2009) na qual a descoberta do final reorienta todo o conteúdo do que se passou até então. A sensação ao descobrir que a protagonista foi responsável pela morte da própria mãe e que possuía alucinações com a presença da irmã nos coloca para revisitar toda a narrativa sob a ótica dessa nova descoberta, mudando toda a interpretação possível da história até então. Uma hipótese pode ser formulada nesse sentido em relação ao stalinismo:  há um grande temor de encontrarmos algo desestabilizante naquela experiência que tanto resguardamos como nossa, na experiência em que “o socialismo triunfou” e que assim “há de triunfar novamente”. 

O debate sobre o stalinismo, revistando aspectos traumáticos – omitidos porque dolorosos demais – da nossa história, representa portanto a coragem de admitir que aquilo que tanto admiramos como experiência socialista fracassou antes do que imaginávamos. Só a partir do reconhecimento dos erros e da correta interpretação da história e conjuntura daquele período poderemos, não somente propor novas saídas que de fato superem os erros do passado e correspondam com os reais anseios da classe trabalhadora, mas também poder admitir onde estão nossos erros nesse processo e para sabê-los corrigir. Por isso insistir nesse debate parece-nos um aspecto tão fundamental nos dias de hoje: fazer da memória, ao invés de um apreço estático nostálgico, um campo para a construção de novas saídas. 

Além disso, considerando que Lukács, em seus escritos políticos de 1956-1971, escrevia que a conservação da tradição staliniana seria um forte obstáculo à integração dos esforços para obter o renascimento do autêntico método marxista, através do qual seria possível desvendar tudo o que, no mundo atual, avançaram desde Marx, Engels e Lênin, esse debate nos parece fundamental porque significa o esforço de não deixar que a nossa geração se perca em desvios simplistas do marxismo.

 

O que significa debater o stalinismo?

Será necessário, pela terceira vez, afirmar que  as críticas amarradas aos aspectos psicológicos do ex-dirigente soviético não interessam ao debate sério. Primeiro porque seria equivocado utilizarmos das análises de teóricos e colegas do partido, já que nos soa no mínimo pretensioso que esses possam ser capazes de traçar as características psicológicas de Stálin. Segundo – e principalmente – porque corremos o risco de não encontrar nada de tão asqueroso assim. Em grande medida, uma das principais falhas do relatório Krushev foi sustentar parte dos argumentos em características pessoais de Stálin. A tese de que o Stálin era um “gênio do mal”, cruel e frio é somente a face oposta daqueles que defendem que ele tinha magníficas características pessoais. Essa defesa, vinda de todos os setores stalinistas, recorre ao recurso de desidentificação/identificação pouco producente do ponto de vista socialista. Saber das dificuldades precedentes de um dirigente político nos coloca de fato diante de uma ressignificação de sua figura? Ou é apenas mais uma maneira de recorrer a estratégias morais para justificar o absurdo? Saber o “lugar de onde vem” (“do povo, dos pobres”) isenta tal figura de trair sua própria classe? Não seria uma forma de instrumentalizar as esperanças das camadas que sofrem de forma mais bruta os efeitos da exploração? 

Devemos considerar que, desde Marx, fica evidente que o sujeito da revolução é a classe trabalhadora; como demonstra a passagem de Marx em sua “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, em que, tratando do proletariado, considera que “tal classe liberta a sociedade inteira, mas apenas sob o pressuposto de que toda a sociedade se encontre na situação de sua classe, portanto, por exemplo, de que ela possua ou possa facilmente adquirir dinheiro e cultura”. Ou seja, é a classe trabalhadora, como classe universal, que será elevada ao poder após uma revolução. 

A burocratização toma conta da revolução

O debate sobre a burocratização da Rússia depois da revolução de 1917 não tem o mesmo significado dos debates atuais sobre o que é a burocracia. O que se debate sobre a luta de Lenin contra a burocratização da revolução significa, nos termos do mesmo, que os rumos da revolução foram interrompidos, principalmente pelo isolamento da revolução em um só país. E Lenin sabia que, nos anos 1921, após consecutivas derrotas da revolução na Alemanha – o país da Europa o qual poderia dar à revolução o respiro necessário, ou seja, os elementos para produzir em curto prazo a grande transformação, uma civilização desenvolvida onde o proletariado estava imbuído de ideias socialistas -, o socialismo como alternativa mundial estaria em risco; por isso, por exemplo, a mudança de estratégia proposta pelo 3° Congresso da Internacional Comunista, em que os Partidos Comunistas fora da Rússia deveriam evitar ações revolucionárias, política que focava a Alemanha e as consequências derrotas das tentativas de revolução no país. 

Por mais que costuma-se considerar o combate mais direto de Lenin contra a burocracia somente em seus últimos anos de vida, sua trajetória política e teórica demonstram o enfrentamento a essas tendências contra revolucionárias. Um exemplo importante que pode ilustrar isso e também a diferença da posição de Lenin em comparação aos outros membros do Comitê Central do Partido Bolchevique (CC), foi sua defesa de que os sindicatos não devem ser continuações do Estado e subordinados a ele; e sim, órgãos independentes que teriam como função a defesa dos interesses econômico dos trabalhadores e que possuiria autonomia crítica perante ao Estado.

Consideramos então que Lenin, em seus últimos anos de vida, passou a combater essas tendências à burocratização que tinham expressão cada vez maior na política cotidiana, considerando, por exemplo, que havia uma progressiva substituição das massas pelo partido no poder e, por sua vez, a substituição do partido pela burocracia estatal. É esse o debate que perpassa por todos seus últimos estudos, agrupados no livro “Últimos escritos e diário das secretárias”, mas é em seu último texto, intitulado “Mais vale pouco porém bom” que o debate fica mais explícito, momento em que já estava completamente afastado da política e do CC. O afastamento de Lênin, que já estava com a saúde já fragilizada, deu-se sobretudo após a aliança que estabeleceu com Trotsky para se opor a proposta de Stalin, que consistia em abandonar o monopólio do comércio exterior. O texto de Lenin é extremamente certeiro em apontar o fato de que os países imperialistas conseguiram dividir o mundo em dois campos (capitalismo versus comunismo), isolando a Rússia e fazendo fracassar as tentativas revolucionárias na Europa; logo, passou a traçar a possibilidade de que o Oriente seguisse a Revolução Soviética. E, para sustentar esse isolamento até que a revolução pudesse atingir outras partes do globo, era preciso que o povo russo tivesse acesso à cultura para construírem o socialismo com suas próprias mãos, podendo também fazer com que o aparelho estatal pudesse impulsionar a economia russa, eliminando tudo que é supérfluo e desnecessário, o que inclui seu aspecto burocrático. 

Logo, Lenin combate também o inchaço do aparelho estatal, compreendendo-o como uma das consequências do isolamento da revolução e da burocratização, aparelho que continham funcionários que carregavam consigo aspectos da burocracia czarista. Lênin tinha clareza de que não era somente a mudança do Estado que resolveria os problemas que a Rússia estava se deparando, por isso sua insistência de que a política internacional deveria ser o impulso de revolução em outros países, a sua expectativa com a revolução na Alemanha e, posteriormente, a defesa de uma revolução no Oriente.

Em um folheto escrito por Stálin e publicado em 1924 evidencia-se a divergência entre as compreensões deste e de Lênin quanto às tarefas da Revolução. Intitulado “Sobre os Fundamentos do Leninismo”, o texto argumenta que a defesa do socialismo em um só país significaria

“a possibilidade de resolver as contradições entre o proletariado e os camponeses com as forças internas de nosso país, a possibilidade do proletariado tomar o poder e o utilizar para edificar a sociedade socialista completa em nosso país, contando com a simpatia e o apoio dos proletários dos demais países, mas sem que previamente triunfe, nesses países, a revolução proletária.”  (Stálin, 1924, s.p.).

Esse trecho orienta-nos quanto a dois aspectos importantes. O primeiro, conforme apontado em nossos textos anteriores, atesta a recorrente tentativa de Stálin em  aproximar suas simplificações à teoria de Lênin, a ponto de pretensiosamente em um folheto sobre os fundamentos do leninismo distorcer completamente as apreensões de Lênin. Não à toa ainda perduram os partidos ditos de corrente “marxista-leninista”(2) que, em realidade, adotam o compromisso com essas distorções. E o segundo, que nos interessa sobretudo nesse texto, é a evidente hegemonização da compreensão stalinista – e não leninista – da defesa do socialismo em um só país. Se para Lênin era evidente que o Estado soviético não seria capaz de lidar com as contradições do processo revolucionário soviético apenas internamente, e de que era preciso fazer triunfar em outros países a revolução, a política staliniana inclinou-se totalmente a aceitar acriticamente o isolamento da União Soviética – em nome da defesa do que já havia sido conquistado pela classe trabalhadora – e portanto, os efeitos de sua burocratização. 

Alguns autores posteriores buscaram debater a burocracia de diferentes formas. Para Mandel, em reflexão apresentada no texto “A burocracia no movimento operário”,  ela deve ser considerada como um problema significativo – e não meramente consequência secundária de certas práticas – e que torna-se mais expressa no momento em que as condições de vida  da classe trabalhadora passam a apresentar progressos. Assim, quando novas mudanças aparecem, elas se apresentam como uma ameaça a esse pequeno avanço conseguido; o que faz esse setor comportar-se “como se os elementos de democracia operária no seio do mundo capitalista e a existência dos Estados operários fossem objetivos em si mesmos, fossem já a forma acabada de socialismo” (MANDEL, s.p.) e passam a subordinar qualquer nova conquista à defesa absoluta e imperativa do que já existe. Ou seja, se essa postura não for combatida, o que se instaura é uma posição conservadora em relação ao que o presente possa vir a ser. Não seria essa a posição dos que defendem que as conquistas da Rússia foram aquilo que poderiam ter tido na época, tendo em vista as condições materiais, abandonado as possibilidades de uma busca para além do que se teve naquele período?

Lukács retoma o debate sobre a burocracia de outra forma em seu livro “Socialismo e Democratização”, apontando que o Manifesto Comunista contrapunha a sociedade burguesa e o comunismo afirmando que, enquanto na primeira há um domínio do passado sobre o presente, no segundo tem lugar precisamente o oposto. “Portanto, a dialética interna à teoria leniniana do hábito possui previamente uma intenção essencial: contribuir para realizar este domínio do presente sobre o passado(…) A batalha de Lênin contra as tendências burocráticas se funda não apenas em sua precoce percepção, extremamente crítica, da impotência das manipulações burocráticas, mas também – e, em termos subjetivos, talvez sobretudo – na consciência do fato de que toda burocratização oculta necessariamente a tendência a consolidar o domínio do passado sobre o presente, por causa da rotina que decorre deste tipo de prática” (LUKÁCS, 2008, pg 119).

Não perder de vista essa relação entre o passado e presente é fundamental, Lênin trata em seu último texto de que “as revoluções autênticas se originam das contradições entre o velho, o que tende a mantê-lo, e a mais abstrata aspiração ao novo; e esta tem de ser tão nova que não pode conter nem uma réstia do velho”. Ou seja, para a construção do socialismo soviético, era preciso acabar com tudo aquilo que simbolizava o velho. E isso inclui precisamente a burocracia.

Portanto, o que não podemos perder de vista – e que resume o debate travado até aqui na série de textos – é de que a burocratização foi o resultado, principalmente do fracasso da onda revolucionária na Europa, que viria com a tentativa de revolução na Alemanha de 1818 a 1923. Isso, somado a desmobilização das massas por conta da guerra civil e pelos limites da Nova Política Econômica (NEP), em um país que não poderia garantir por si mesmo o consumo de sua população para aguentar a pressão do capitalismo internacional, levou o país a voltar-se para si mesmo e investir no fracasso da revolução em um só país. 

Burocracia e carreirismo de Estado 

A questão dos funcionários permanentes – que resultam no carreirismo de Estado – nos coloca diante de um problema fundamental na construção do socialismo: o papel do trabalho. Enquanto atividade que transforma a natureza – inclusive a do próprio homem -, o trabalho precisa ser colocado enquanto parâmetro de contraste constante ao eixo da burocracia. 

O aspecto fundamental da reprodução da vida humana atrelado ao trabalho não é resolvido com decretos formais. O emprego para todos não basta ou sequer resolve os desafios da construção do socialismo, pois, mesmo instaurado o direito ao trabalho, por exemplo, como princípio na União Soviética, isso não bastou: o Estado passou a ficar saturado de trabalhadores em funções pouco produtivas, tanto ao desenvolvimento da consciência do trabalho coletivo quanto economicamente. Marx é bastante contundente ao longo de sua obra acerca do desafio comunista: tornar a produção subordinada ao homem, e não o contrário. Isso significa que não basta que a reprodução da vida seja garantida por meio do emprego, e sim, que haja domínio do homem sobre seu objeto de trabalho. 

Para Lukács, uma diferença abismal entre Lênin e Stálin é a compreensão profunda do primeiro acerca da dimensão ontológica do trabalho. Para o filósofo, um dos aspectos fundamentais para a edificação do socialismo, e que foi perdido durante o período stalinista, foi a compreensão de que a atividade na qual os trabalhadores estariam submetidos apresentam consequências na construção – ou renúncia – do sujeito socialista. Isso significa que é o trabalho que deve adaptar-se aos homens, à sua dignidade e à sua capacidade de realização como homem, e não o contrário.

Como apontado anteriormente no segundo texto dessa série, a construção do socialismo na URSS dava-se sob condições inusitadas. Os dirigentes revolucionários estavam diante de uma questão extremamente difícil: como construir a revolução em um país que as forças produtivas eram extremamente atrasadas, no qual arrastava-se em diversos aspectos da consciência heranças do período czarista e como tornar a experiência soviética um pavio para a revolução mundial. A capacidade teórica de Lênin permitiu a compreensão das necessidades históricas daquele momento – como por exemplo a leitura de que era possível transformar as munições da primeira guerra em armas a serviço da revolução socialista. Entretanto, os desafios quanto a construção do comunismo não se esgotam com a tomada do Estado pela classe trabalhadora: é preciso trabalhar para dissolvê-lo, ou seja, agir tanto para que os trabalhadores reinvindiquem em suas mãos a construção ativa desse processo quanto uma luta sem tréguas contra a burocracia. 

Lênin, então, tinha ciência da gravidade de um Estado inchado e consequentemente burocrático, por isso seu último combate tão impiedoso à burocracia. Entretanto, na década de 1930, já na hegemonização stalinista, o corpo de funcionários do Estado passou  a ser dividido entre aqueles nomeados pelo partido mas que atuam “fora do partido”, nas funções administrativas e econômicas (Nomenklatura) e o Serviço de Instrução e Organização, responsável pelas nomeações do aparato do partido em si. Ao longo dos anos, como consequência, as possibilidades de atuação das massas operárias e camponesas foram submetendo-se ao controle da nomenklatura. Se no período stalinista “o partido é o mestre do aparato do Estado e o aparato é o mestre do partido” (BROUÉ, 2007, p. 764), as massas acabam sendo efetivamente afastadas dos processos de decisão e participação da construção socialista e a burocratização se alastra cada vez mais. Distorcendo as concepções de centralismo democrático, o período stalinista torna as decisões do partido como das massas, ainda que na prática, estive atuando para que essas fossem aleijadas ou incorporadas. O problema do carreirismo do Estado está intimamente ligado, portanto, à fusão deste às atividades do partido e, consequentemente, das massas ao partido. 

A incorporação das massas no interior dos órgãos do Estado pode ser compreendida como efeito das condições da União Soviética naquele momento: se não havia condições materiais para atender as possíveis reivindicações dos trabalhadores, não há motivos, do ponto de vista da política staliniana, de que esses participem enquanto críticos do mesmo, demandando avanços nas condições de vida. Como efeito da impossibilidade de atender materialmente às demandas das massas, essas foram fundidas pouco a pouco – principalmente após a década de 1930 – à tutela do Estado burocrático. Assim, esse inchaço cumpria ao menos duas funções: primeiro, impedir a manifestação dos anseios da massa; e segundo, torná-lo cada vez maior. 

Logo, a conclusão possível, é a formulação da seguinte questão: talvez a luta ferrenha de Lênin contra a burocracia nos seus últimos anos tenha se dado desta forma justamente porque ele sabia que, ao ser transformada em socialismo em um só país, a Revolução Soviética seria substituída pela burocratização e ali teria o seu fim. Isso significa também que ele sabia que ele mesmo havia fracassado. Isso não significa dizer que não tiveram avanços importantes na vida da classe trabalhadora daquele país, mas que esses avanços não representam o triunfo do socialismo; o período staliniano interrompeu com violência burocrática a continuidade do movimento dos sovietes, ou seja, encerrou o caráter de sujeito da classe trabalhadora no desenvolvimento do socialismo, e ela tornou-se novamente objeto de uma regulamentação burocrática. Aquilo que, na época de Lênin, de Estado operário, com a possibilidade de crítica e reformulações, passou a ser um enorme aparelho burocrático, na época de Stalin.

(1) Para o texto em questão, utilizaremos como base principal os livros: “Últimos Escritos e Diário das Secretárias” de Lenin, “Socialismo e Democratização” de Lukács, “A burocracia no movimento operário” de Ernest Mandel, “História da Internacional Comunista” de Pierre Broué e “Alguém disse Totalitarismo?” de Slavoj Zizek.

(2) Segundo o historiador francês Pierre Broué o termo “marxismo-leninismo” designa uma ideologia que passa a ser adotada durante o período stalinista. As compreensões ditas marxistas-leninistas abandonam as compreensões leninistas da realidades em nome de receitas formuladas a partir de recortes de trechos de Lênin para defesa de determinadas posições. Segundo o historiador, as próprias universidades durante esse período acabaram tornando-se, ao invés de instituições de aprofundamento do debate crítico, meros espaços que reproduzem citações de Lênin e Marx

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