[Opinião] A política do “E daí”

José Braga* – Redação UàE – 01/05/2020

 

Na última terça-feira, 28 de abril, em coletiva à imprensa na frente do Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro deu uma declaração que chocou a muitos e repercutiu largamente na mídia empresarial e na mídia independente. Uma repórter faria uma pergunta sobre o crescente número de mortos por COVID-19 no país, que naquele dia tinha ultrapassado a China, quando foi interrompido pelo presidente: 

E daí? Lamento. Quer que faça o que? Eu sou Messias, mas não faço milagre.

A repórter tentou continuar, perguntando se o ministro da saúde apresentaria um plano, ao que Bolsonaro continuou:  

O ministro que apresenta, o ministro que apresenta, ele pegou o ministério andando né. As mortes de hoje, a princípio, essas pessoas foram infectadas há duas semanas, a princípio. É o que eu digo para vocês: o vírus vai atingir 70% da população. Infelizmente é a realidade. Mortes vão haver. Ninguém nunca negou que haveria mortes. Agora a segunda onda, tá, que vem fruto do desemprego, certo? a gente não sabe ainda, mas tá na casa de milhões de empregos formais, estamos trabalhando, como trabalhamos hoje, como fizemos a questão dos seiscentos reais, que custou pro povo aqui que paga imposto, a gente esperava mais ou menos 30 milhões e já passou dos 40 milhões o número de pessoas, tá, deve chegar na casa dos 100 bilhões de reais, pesa pra gente, mas essa conta vai ter que ser paga lá na frente, demos um dinheiro pra quem não tinha voz, pra quem não tinha tá, quem não tinha espaço no Brasil, que eram os informais, pessoas desconhecidas, demos espaço pra eles

 

Sim,  é uma fala absurda vinda de um Presidente da República,  é desrespeitosa com a memória daqueles que faleceram, com a dor dos seus familiares e amigos e com todos nós. Mas, ela não é um mero arroubo de um imbecil, um grosseirão, um tosco com traços monstruosos. Tampouco é a fala de um governo sem direção, que está perdido e refém da ignorância de seu chefe e de seus membros, a imagem de um desgoverno. 


Ela foi metodicamente construída e colocada. O “E daí” é uma política calculada. E repetida constantemente. 

Primeiro, trata-se de anestesiar a sensibilidade de cada um de nós. O “E daí?” é dirigido a cada trabalhador, para que cada um incorpore essa anulação do outro e da coletividade. A mensagem é simples e potente e pode ser sintetizada em algo como: a morte é natural; você, seus familiares, colegas e amigos vão morrer um dia; por que, então, se preocupar em demasia agora?; preocupe-se consigo mesmo. 

E tem sua continuidade na oposição entre os esforços para conter o contágio e cuidar dos infectados e o avanço do desemprego. Portanto, a mensagem toma o seguinte sentido: se às pessoas vão morrer mesmo, o que é natural, por que arriscar meu emprego, meu trabalho informal, ou mesmo a minha possibilidade de conseguir um.

Depois, naquela entrevista, ao questionar se alguma emissora estava ao vivo e ser respondido positivamente, emendou:

[Rindo] Meu Brasil, aquele abraço. [Em tom mais sóbrio] A gente lamenta a situação que nós atravessamos com o vírus. Nos solidarizamos com as famílias que perderam seus entes queridos, né, que a grande parte eram pessoas idosas, ok, mas é a vida. Amanhã vou eu… (grifo nosso)

Vejam, que mesmo quando Bolsonaro busca uma certa formalidade e tenta demonstrar algum respeito com os familiares dos que morreram com o COVID-19, ele expressa sua política. Tentando diminuir o significado da morte de cada um indicando que eram idosos, e repetindo que é só mais uma situação que é parte da vida. 

Esta tem sido a operação de Bolsonaro e seu governo desde o princípio da pandemia. Por um lado, procura que cada trabalhador introjete este cálculo sinistro sobre sua própria vida e de seus irmãos. Ele quer que cada um olhe para o lado e pense que o outro um dia vai mesmo morrer, e que é melhor salvar a si mesmo do desemprego. 

Por outro lado, busca demonstrar que esteve sempre do lado desse trabalhador, esse sem qualquer proteção trabalhista ou com muito poucas, esse que tem que levar “o prato de comida pra casa a noite” (como repetiu muitas vezes), os informais que na mesma declaração afirmou dar voz. Mas, que teria sempre dificuldade de agir. 

Pois, contra ele e logo contra cada trabalhador estão os governadores e prefeitos que decretaram às medidas de isolamento social, o congresso e o supremo tribunal federal que não o deixariam agir, a imprensa que apenas mentiria sobre suas ações e intenções. E, não menos importante, a esquerda e seus planos pra acabar com a liberdade no país.  

E busca com isso atrair para si e consolidar o apoio nos setores mais precarizados da classe trabalhadora. Seu objetivo é ganhar corpo entre os trabalhadores informais, os trabalhadores com baixos salários, os desempregados. 

Evidentemente seu discurso é falso. Efetivamente além de esbravejar não utilizou nenhum instrumento competente ao chefe do executivo para romper o isolamento social. Bolsonaro também tenta ocultar que que enquanto ouvimos seus discursos destina trilhões de reais aos bancos e grandes empresários. 

A aposta de Bolsonaro é em estimular o mais brutal individualismo entre os trabalhadores para que com isso possa solidarizar o fundo público, constituído com às contribuições diretas e indiretas dos trabalhadores, para os capitalistas sem ter nenhuma oposição contundente. 

Assim Bolsonaro tenta salvar seu governo cujos resultados pífios no crescimento econômico, no aumento do desemprego, no aumento do arrocho aos trabalhadores, o empurram ladeira abaixo. No entanto, na ausência de uma alternativa séria a sua política e com capilaridade entre os trabalhadores o “ e daí?” pode triunfar mesmo que Bolsonaro caia.


O “E daí?” reserva a nós trabalhadores um futuro ainda mais duro. Tanto pelas mortes de nossos irmãos provocadas pela pandemia, quanto com a piora de nossas condições de vida. O “E daí?” é o “Salve-se quem puder”, e com ele teremos muito desemprego, baixos salários e aumento dos custos de vida, e caberá a cada um buscar seu “prato de comida no final do dia”. 

Com essa política Rogério, José, Paulo, João, Regina, Valéria, Edna continuarão a falecer vítimas da falta de condições de tratar o COVID-19. E Bertha, Carlos, Roberta, Marina e tantos outros continuarão na luta por sobreviver ao desemprego, ao salário curto, ao acúmulo dos boletos, sem qualquer perspectiva. Nós precisamos de uma saída coletiva para que cada um possa buscar trabalho e uma vida digna. 

E nós temos uma alternativa concreta para isso. Com os trilhões destinados aos bancos poderíamos realizar medidas que de fato combatam a crise: nacionalizar a indústria de equipamentos médicos e de proteção, produzindo em massa respiradores, máscaras, luvas, etc; nacionalizar a indústria farmacêutica e os hospitais privados; nacionalizar os setores estratégicos, como a energia e a infra-estrutura; combater a informalidade do trabalho e o desemprego. Bem como, podemos começar a taxar as grandes fortunas, os lucros e dividendos dos empresários, auditar a dívida pública e suspender o pagamento dos juros. 

Podemos juntos decidir por um conjunto de medidas que não estão na ordem do dia. Podemos escolher por uma economia em que o nosso trabalho não esteja submetido a engordar milionários e bilionários. Mas, só faremos isso derrotando a política do “E daí”, seja ela provocada pelo tosco Bolsonaro, Moro, Huck, ou quem quer seja a bola da vez.

*O texto é de responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do jornal

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *