Imagem: Pawel Kuczynski
Nina Matos – Redação UàE – 13/07/2020
Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.
No final de 2019, a Movile, empresa dona do aplicativo iFood, lançou seu mais novo projeto para a educação brasileira: o AprendiZAP, uma ferramenta para o Whatsapp, na qual os usuários podem acessar conteúdos formulados por “professores parceiros”, fundamentados na Base Nacional Comum Curricular.
Basta que o usuário envie uma mensagem para o bot do AprendiZAP que ele terá em suas mãos a possibilidade de acessar conteúdos do 6º ao 9º ano e do ensino médio, dispostos em quatro temáticas: tecnologia, educação, Enem e “Competências do Futuro”.
Apesar dos primeiros registros de sua existência datarem meados de agosto de 2019, a pandemia do coronavírus deu novos ares às possibilidades de inserção das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) desde a educação infantil ao ensino superior, utilizando-se do discurso de que a educação formal precisa continuar formando estudantes para que se diminuam as desigualdades sociais.
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A partir das prescrições realizadas por diversas entidades educacionais, como o Conselho Nacional de Educação (CNE) e a Unesco, o ensino remoto passou a ser amplamente implementado nas redes de ensino brasileiras, e as TICs cumprem um papel fundamental dessa nova modalidade de ensino. Não que elas já não fossem relativamente conhecidas dentro das salas de aula, mas com a impossibilidade de manter as atividades presenciais, as mais diversas plataformas se disseminaram nas escolas e universidades.
Através das mudanças que a pandemia nos proporciona, o “novo” trabalho docente emerge das profundezas do capital e as aspas aqui servem para denunciar que de novo só há o contexto. Essas mesmas entidades e organismos que defendem o ensino remoto e a retomada das aulas já propunham a tempos que o papel do professor deveria ser secundarizado, no sentido mais de precarizar seu trabalho do que de dar uma real autonomia aos estudantes.
Historicamente, o professor foi tido como o detentor do conhecimento humano acumulado em alguma determinada área e seu trabalho consistia em manejar este conhecimento de modo que os estudantes pudessem aprender e utilizá-lo conforme suas necessidades e interesses.
Conforme a educação passou a se massificar e a classe trabalhadora foi tendo acesso — tanto por conquistas oriundas das lutas quanto por necessidade do capital — o papel do professor e da educação se alterou da relação com o saber mais denso que a humanidade construiu ao longo dos anos para uma formação que atende meramente aquilo que a vida cotidiana coloca no imediato.
O tempo mostrou que mesmo as críticas dos estudantes ao conteúdo passou a assimilar esse papel da educação e do professor, ficando evidente quando vemos jovens questionando o porquê de aprender uma determinada fórmula da física, ou ter domínio sobre os grandes eventos e teorias do passado, se a vida na verdade exige é que eles saibam pagar impostos e dominar os cuidados da casa.
Não apenas nas escolas, mas também nas universidades o papel do conhecimento passa a ser questionado sob as acusações de que uma graduação não prepara para o mercado de trabalho, e conforme novas gerações de professores se formavam — inclusive vindo de instituições privadas, cujo o interesse se pauta muito mais no lucro de seus empresários e acionistas — a questão do conhecimento foi se perdendo.
Todas essas mudanças no papel da educação para a sociedade geram um novo trabalho docente, que se acirra dentro do atual contexto pandêmico. Cabe ao professor não mais formar um cidadão ou cidadã dotado das mais altas capacidades críticas, com um acúmulo de conhecimento sobre os fenômenos que cercam sua realidade, que consegue sempre estar fazendo relações entre as teorias que existem e a atualidade; sequer basta formar um trabalhador ou trabalhadora que saiba manusear com proficiência uma máquina. O papel do professor deve ser formar sujeitos autônomos, disciplinados e com alta capacidade de adaptação, que possam sempre estar disponíveis e dóceis para seja lá qual desastre a classe dominante queira enfiá-los e fazê-los pagar a conta.
As TICs, como o AprendiZAP apresentado anteriormente, abrem um espaço para que tudo isso seja possível de realizar com a menor quantidade possível de mão de obra docente. Não só um professor pode ficar encarregado de mais de mil alunos por turma, como também todo o seu trabalho pode ser fragmentado para além das apostilas, visto que sequer ele precisa elaborar questões e corrigi-las — outro professor pode ficar encarregado disso, ou uma inteligência artificial, como no caso da Laureate.
Também não é preciso avançar muito no debate para que se aponte o grau em que o professor perde a autonomia em seu trabalho e possa até mesmo estar cotidianamente tendo seu conteúdo controlado até às últimas consequências. Se antes da pandemia discutia-se a existência de câmeras nas salas de aula, o que será uma apontada diretamente para o professor?
É nesse momento de pandemia que as contradições se escancaram e podemos vislumbrar e apontar com uma clareza que em condições de normalidade nublam-se. A nova normalidade que a pandemia institui não é novidade, mas sim uma repaginação de tudo aquilo que já buscava-se implementar. Não há qualquer intenção de excepcionalidade nas mudanças que o capital busca para a educação além do tempo que crianças e adolescentes estão ficando em casa — aqui sim que mora a excepcionalidade do ensino remoto, que já busca abrir as escolas mesmo com a crescente do número de infectados e mortos — mas todas as demais relações que estão sendo empurradas ao professorado hoje como as TICs, a precarização extrema e as novas relações em sala de aula com o conhecimento vieram para ficar e caberá a todos nós a luta para que uma educação verdadeiramente libertadora seja possível.
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