Por Clara Fernandez e Marcelo Ferro – Redação do UàE – 21 de abril de 2017
Há cerca de três anos a política brasileira está tomada por uma questão crucial: a corrupção. A Operação Lava-Jato, a maior operação judiciária-policial já vista no Brasil, pauta corrente dos noticiários da mídia tradicional, pôs em movimento e em centralidade a ideia de que o combate à corrupção é a grande solução para as mazelas do povo. E esta ideia já há algum tempo ganhou a boca, os anseios e a esperança dos trabalhadores. A cada nova etapa da operação um aspecto da relação espúria entre os políticos e a classe dominante é posta em evidência. Desde então, a vida política, econômica e social do país sofre com diferentes tremores – alguns aparentemente postos em marcha pela Lava-Jato. Frente a esta questão e ao movimento das classes, que de modo ambivalente ela escamoteia e revela, qual é a resposta dos socialistas? A de uma esquerda efetivamente comprometida com as lutas da classe trabalhadora?
1 – O Lulismo: Bloco de poder, superexploração e pacto de classes
Ao longo da história republicana do Brasil, as diversas classes dominantes mantiveram seu domínio político e econômico do país com a formação de blocos de poder; foi assim durante a República do Café com Leite, durante a Era Vargas, durante a Ditadura, e, do mesmo modo, durante o período recente. A formação de blocos é uma condição fundamental para que se possa organizar o regime de exploração, que, na especificidade dependente do capitalismo brasileiro, tem em sua essência a extração de elevadas taxas de mais-valor por meio da incorporação estrutural da superexploração da força de trabalho (isto é, a remuneração do trabalho abaixo do valor necessário para sua reprodução).
Esse regime de exploração, que sustenta uma acumulação acelerada do capital mediante a pauperização aguda da maior parte da classe trabalhadora, implica em uma desproporcionalidade entre o aumento do potencial produtivo e a capacidade de consumo dessa classe, e, assim, em uma insuficiência do mercado interno para a realização das mercadorias. O que decorre é a permanência da crise econômica, política e social. Essa instabilidade se expressa em uma heterogeneidade dentro do bloco de poder, frações da burguesia com interesses opostos coexistindo no mesmo bloco.
A crise mundial da década de 1970, com o choque de preços do petróleo, força uma reestruturação do capital em todo o mundo. É quando a fração financeira do capital internacional ganha hegemonia absoluta sobre a fração produtiva e impõe sua lógica para todos os setores econômicos e da vida social. Ganha forma a doutrina neoliberal, como convencionou-se a chamar a nova conformação de estratégias políticas da classe dominante, pelas políticas de austeridade, a desregulação e abertura dos mercados, o sucateamento do setor público, a flexibilização das leis trabalhistas e da jornada de trabalho etc.
No Brasil, o bloco de poder que se torna dominante com o fim da ditadura apresenta todas as complexidades que apresentava em períodos anteriores. Não há uma organicidade perfeita, como insistem alguns analistas políticos, mas, ao contrário, guarda as contradições das frações internas. É encabeçado pela fração mais forte, o grande capital financeiro, seguido do grande capital monopolista (aliado aos interesses das burguesias internacionais) e das frações menores; entre elas, a fração prestadora de serviços que pôde crescer com o “enxugamento do Estado”.
Durante o governo de FHC, a fração financeira foi altamente privilegiada com a política neoliberal de sobrevalorização do Real (o Plano Real), que gerou um déficit na balança comercial e permitiu o avanço das privatizações, desde as indústrias de base até os bancos estaduais e equipamentos de infraestrutura. Por outro lado, as frações produtivas (que encontram expressão na FIESP e na Confederação Nacional da Indústria), prejudicadas em demasia pela manutenção das altas taxas de câmbio e de juros, se voltaram contra o bloco e forçaram o freamento dessa política.
A grande insatisfação popular pelo aumento do desemprego, somada à insatisfação das frações produtivas, foi explorada pelo PT quando aproximou seu melhor quadro, o Lula, de um projeto desenvolvimentista que conciliava tanto o descontentamento das frações formalizadas da classe trabalhadora, quanto o descontentamento da fração produtiva da burguesia no bloco de poder. Assim, Lula pôde apaziguar os ânimos, manter quase intacto o bloco de poder que o precedeu, e ainda gerar no povo brasileiro a expectativa de mudança social.
Em 2006, há uma mudança na base social em que se sustenta a eleição do governo do PT. Se, em 2002, a base foi majoritariamente a pequena burguesia e os setores médios da classe trabalhadora, na segunda eleição de Lula há uma participação massiva dos setores mais pauperizados da classe, parte das 70 milhões de pessoas que vivem em condições extremamente precárias no meio urbano e no campo. Essa mudança é resultado da política de elevação do salário mínimo, de acesso a crédito e da criação do maior programa de assistência social do mundo, componentes de um movimento que, ao mesmo tempo, integra partes daqueles setores ao consumo dos setores médios e aprofunda a condição periférica e dependente do capitalismo brasileiro, baseado na exploração de trabalho simples, não especializado.
Os altos índices de aprovação ao final do segundo mandato de Lula são resultado do sucesso de suas políticas, possibilitado por uma conjuntura específica de elevação mundial do preço dos produtos primários. No final do período Lula está consolidada uma nova base social do PT, alçada a uma situação mediana de vida pelo frágil barbante do consumo, uma base social que trará a vitória do partido nas duas eleições seguintes.
Ao mesmo tempo que realizou essas políticas de ampla aceitação popular, o governo petista pôde alavancar a acumulação de certas frações da burguesia, tanto a agroindústria de alta intensidade de capital quanto os novos setores financeirizados – dos quais se destacam os prestadores de serviços de ensino, os grandes varejistas, as indústrias de bens leves e, em especial, as construtoras. Foram diversos os incentivos do governo: os fiscais, o acesso ao crédito, desonerações de empresas, o PAC 1, o plano emergencial de obras para grandes eventos etc.
Desse cuidado paternal do governo do PT resulta, inclusive, a projeção multinacional de empreiteiras como a Odebrecht, que se instalou por toda a América Latina e em certos países da África (Angola e Moçambique, cuja difícil aproximação do “Mundo Ocidental” foi facilitada pelas proximidades culturais com o Brasil). É assim que uma “burguesia nacional”, na especificidade dependente do capitalismo – que é vinculada ao capital internacional e, portanto, incapaz de dirigir um projeto de desenvolvimento nacional –encontra a oportunidade de alavancar sua acumulação: como capital subimperialista nas nações mais frágeis.
Todos esses elementos internos e externos permitiram que o governo do PT aprofundasse o pacto de classes firmado no governo de Fernando Henrique Cardoso, sem alterar substancialmente a composição do bloco de poder, com setores passivos e ativos do capital financeiro internacional e nacional, setores do capital produtivo, setores da aristocracia operária e direções de aparelhos sindicais, e novos setores financeirizados que começaram a gozar de maior importância política e maiores remessas de lucros.
Nos anos que se seguem à crise de 2008 o que se processa é o esgotamento desse modelo conciliatório. Caem os preços dos produtos primários no mercado mundial e fica prejudicada a ampliação do regime de exploração de trabalho simples. O governo toma medidas anticíclicas para frear a inflação e manter o ritmo do desenvolvimento, desvalorizando o câmbio, diminuindo o custo da energia, lançando o PAC 2, estatizando dívidas das empresas.
O capital, no conforto dos termos da ideologia neoliberal, encontra os meios da sua reprodução ampliada em um regime de espoliação: não podendo parasitar ainda mais o fundo de salários, corta direitos dos setores formalizados. O ajuste fiscal é o ajuste da vida desses setores ao regime da superexploração. Ao mesmo tempo que desonera as dívidas de empresas, onera a folha de pagamentos, acaba com a previdência pública, a educação, o transporte, a moradia.
O agravamento da crise força os limites das tensões no bloco de poder. As frações mais fortes dissolvem o pacto de classes que perdurou durante todos os anos do governo do PT. Para tal, precisam lidar tanto com a base social que esse formou ao redor de si, quanto com as novas frações da burguesia que ele cuidou para que crescessem e que agora são o pilar econômico de sua sustentação.
Assim, essas frações lançam mão da Operação Lava-Jato, uma operação de combate à corrupção de proporções épicas, que mobiliza todos os níveis do judiciário, explora o sensacionalismo midiático, cria sujeitos morais e heróicos. Para que ela não perca a legitimidade e dê a impressão de radicalizar o combate à corrupção, precisa ser mantida em constante funcionamento e trazer periodicamente novos elementos à tona.
O uso da Lava-Jato como instrumento político no período recente se expressa com muita clareza em seu caráter seletivo, ora voltado explicitamente a quadros do PT, ora às frações da burguesia que foram alavancadas durante os 13 anos de governo do partido. A fração que agora se aglomera em torno do PMDB tenta conseguir, usando a megaoperação como instrumento de sua luta intra-burguesa contra a nova fração financeirizada, encarnada nas empreiteiras, seus dois objetivos: desmoralizar o PT frente à sua base, e desestruturar as construtoras.
2 – A Lava-Jato como a face do desmoronamento do petismo e sua reinvenção, e uma saída verdadeiramente à esquerda
A Lava-Jato guarda semelhanças com outras megaoperações, como a Mãos Limpas, da Itália. O combate à corrupção é instrumentalizado, tornado permanente, passa a aparecer como uma cruzada de moralização do Estado. Permite que certos juízes façam carreira, muitas vezes estando os mesmos ligados aos próprios casos (uma história que se repete na Mãos-Limpas). Um juiz de primeira instância, como Sérgio Moro, fabricado como paladino da justiça, ganha popularidade e envergadura nacional e garante uma vida confortável sendo um palestrante esporádico.
O ímpeto da megaoperação brasileira, desde junho de 2016, tem esbarrado com os interesses da fração dominante. O pedido de prisão da alta cúpula do PMDB (Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Romero Jucá), encaminhado ao STF pelo Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, refletiu a primeira crise política do governo Temer. A negativa do pedido de parte do STF demonstra a necessidade de freá-la, ou tirá-la temporariamente dos trilhos.
Como nos exemplos históricos semelhantes, encontram-se as mais diversas desculpas para suspender ou avançar uma operação desse porte. Os ideólogos atalaias da burguesia elaboram textos moralizantes, encontram a origem da corrupção na natureza humana ou nos traços culturais, indicam que a corrupção que existe “no topo” é reflexo da que existe “embaixo”, nas “pequenas corrupções do dia-a-dia”.
Está claro, a corrupção não é uma deformação no Estado, mas, ao contrário, é endêmica ao seu funcionamento no modo de produção capitalista. Ela amarra os poderes democráticos do governo à gestão do Capital, fazendo a manutenção de um Estado que serve à classe burguesa. Em determinados momentos da história, a corrupção pode ser mais expressiva, vir diariamente às manchetes, infestar a maioria das seções do Estado; em outros, a corrupção pode ser muito menos expressiva ou mesmo ficar latente durante um período determinado. Daí, nada se pode depreender do verdadeiro caráter da corrupção, o endêmico, pois é apenas expressão do estado em que se encontram certas forças de classe. A corrupção se expressa com especial agudeza no atual terreno político brasileiro porque a coesão interna do bloco de poder está em etapa terminal.
Diante disso, o que pode fazer uma esquerda que se coloca, verdadeiramente, ao lado da maioria dos trabalhadores, daqueles setores mais pauperizados, das famílias dos mais de 70 milhões de trabalhadores sob regime da superexploração, muitos dos quais caem agora num desemprego sem precedentes (que somam mais de 13,5 milhões)?
Primeiramente, voltemo-nos à corrupção. O combate à corrupção já foi, historicamente, uma pauta da esquerda e, em especial, dos socialistas, que reconhecem o caráter endêmico da corrupção no regime da “democracia” burguesa. Compreendemos que a corrupção não surge por determinações da cultura, dos costumes, da “natureza humana”, mas sim de condições objetivas que impelem a classe burguesa a manipular com cuidado os cordões que movem o parlamento e as diversas seções do Estado, a fim de manter inabalável seu domínio sobre as demais classes da sociedade.
Seu uso contraditório pela própria burguesia é evidência de que nenhuma ferramenta criada no terreno político mantém-se fiel ao criador, como bradam os esquerdistas e os demagogos. Não é possível que temamos o uso da pauta da corrupção como ferramenta política; devemos entendê-la profundamente e fazer uso dela como arma política com habilidade e competência, explicitando seu caráter endêmico, aumentando as dissensões entre os burgueses, atacando seus setores mais frágeis, expondo-os enquanto classe para os trabalhadores.
O quadro que está posto, no Brasil, é o da iminência da dissolução de um bloco de poder que perdura há pelo menos duas décadas. Contudo, as frações da burguesia que se aglomeram em torno do PMDB são incapazes de se efetivar como um novo bloco; o partido está enterrado até o último fio de cabelo na corrupção, e a gigantesca movimentação da Lava-Jato começa a levantar do lamaçal de cada um de seus quadros, expô-los na mídia, tirar qualquer legitimidade que lhe resta. O caminho que se abre para esses setores é firmar um novo pacto de classes, escolher uma figura que possa garantir a reprodução ampliada de seus capitais, ao mesmo tempo que se apresente com a cara da mudança social.
Em 2018, a alternativa para essas frações é um governo de coalizão com o PT. Novamente, está mais do que clara a impossibilidade de uma guinada à esquerda por esse partido. É preciso desfazer a diferenciação absoluta entre o poder econômico, o Estado, a forma de organização da dominação política e o sujeito político que dela transparece (isto é, a pessoa messiânica em que se depositam as esperanças de toda a classe); e, é imprescindível, atentar à especificidade do Estado como ele se apresenta no modo de produção capitalista, um Estado de classe, da classe burguesa. A esperança de que o PT possa dirigir um projeto nacional para os trabalhadores cria falsas esperanças na esquerda, e compromete seriamente uma organização da classe.
Os termos que estão postos exigem uma clareza absoluta de ideias de nossa parte. Devemos combater o oportunismo em todas as suas formas, e dispor de todas as ferramentas políticas que pudermos; entre elas, o papel fundamental da agitação e da propaganda. Não é possível, assim, que neguemos a atuação no parlamento, nos sindicatos, nas centrais, nas associações. Justamente nesses lugares, onde os oportunistas são hegemônicos, é que devemos combatê-los, mostrar sua verdadeira face: a de traidores. Nesses lugares precisamos demonstrar nossa disciplina, a clareza de nossas posições e a justeza de nossa prática. Organizar a classe dos trabalhadores para sua emancipação passa, necessariamente, pela presença de uma formação política de esquerda em todos os ramos da vida social. Isto é, uma esquerda que não tema dizer seu nome.