Helena Lima – Redação UàE – 02/05/2020
Na última semana diversos depoimentos sobre a brutalidade da epidemia do coronavírus foram publicados no Instagram, Facebook e Telegram do Universidade à Esquerda. A crise sanitária chegou em um momento em que a maioria dos sistemas de saúde estavam em sua fase mais desestruturada, desde que se tem registro. Anos de políticas para reduzir o orçamento público, depois da crise de 1970, em conjunto com a sede por lucros na rede privada de saúde, levaram à redução de leitos hospitalares, cortes salariais na área da saúde, cobrança de medicamentos e procedimentos que antes eram gratuitos, etc.
Neste cenário, a periferia dos países mais pobres, principalmente, está tendo que lidar com a negligência e incapacidade dos Estados capitalistas em realizar um plano civilizado para combater a epidemia. Isso está se expressando na insalubridade completa nos lugares em que o sistema de saúde e funerário estão em colapso. Os relatos demonstram este despreparo na vida de cada família que enfrenta a doença, muitas vezes ao mesmo tempo que encara o desemprego crescente.
- “O meu pai começou a perder noção de dia e hora. Ele nunca tinha passado por isso. Eu e minha mãe estranhamos. Ele ficou muito diferente, sempre foi uma pessoa ativa, mas estava muito cansado e esquecido. Depois, começou a ter febre.” relatou Márcia ao BBC. Seu marido, José, “teve febre e ficou muito cansado. No dia 26 de março, ele começou a ter sintomas piores, como dificuldades para respirar, dores nos pulmões e uma tosse muito seca. Levei ele ao pronto-socorro.”
Tudo isso aconteceu ainda quando o Brasil tinha poucos casos de coronavírus. Os pais de Márcia, que moravam no Paraná, estavam visitando a filha em Brasília. Quando começaram os sintomas mais severos, o pai e o marido de Márcia foram internados. Ela não podia sair de casa mais porque também estava com suspeita de COVID-19. Isolada em seu quarto, com a mãe na sala, recebeu a notícia do óbito do marido pela televisão. Dois dias depois, o pai também teve uma parada respiratória e não resistiu. Os dois foram enterrados sem velório e Márcia não podia sair de seu quarto, enquanto sua mãe não sabia o que se passava. Ao sair do isolamento recuperada, quinze dias depois, ela contou para sua mãe do ocorrido. -
“Paulo era jovem, alegre, pessoa de um coração incrível, um homem do bem, que acolheu toda família com muito amor, e deixa uma grande lição, o amor é a base de tudo”.
Esse foi o relato de Marta, que perdeu repentinamente o tio dia 29 de março. Paulo sentia febre baixa e dores no corpo, mas mesmo assim continuava indo à lanchonete onde trabalhava como chapeiro. Alguns dias depois, começou a sentir falta de ar e sua filha chamou a ambulância. Assim que chegou ao hospital, foi entubado. No dia seguinte, a filha de Paulo recebeu uma ligação do hospital dizendo que seu pai havia recebido alta. Para seu espanto, não foi isso que encontrou. Seu pai estava morto, e a filha foi impedida de reconhecer o corpo. “Eles ainda tinham perdido os documentos do meu tio. Ele foi internado com RG e a carteirinha do SUS e estava sem nada”, diz Marta.
- Os velórios também mudaram de caráter por conta do coronavírus. As medidas em Santa Catarina autorizam velórios presenciais com até dez pessoas e duração de uma hora. Muitas famílias estão tendo que se despedir por conferências online, quando estão com suspeita de coronavírus ou optam pelo isolamento. Em lugares com mais mortes, os cemitérios estão lotados e filas estavam se formando, como em São Paulo. Tendas a céu aberto foram montadas e os familiares tinham apenas dez minutos para velar seus entes queridos. Por esta situação calamitante, os velórios presenciais foram cancelados no estado.
Na foto, Antonia Fernandes de Souza lamenta a perda de seu irmão em seu sepultamento no cemitério Vila Formosa, em São Paulo. João Geraldo Neto morreu com 68 anos com suspeita de Covid-19.
Foto: Folhapress - “O único problema que ele tinha era a pressão alta, mas estava controlada. De repente ele se foi, é difícil de acreditar” conta Ana Cristina, que passou quatro horas ao lado do corpo do marido até a chegada do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Rogério tinha testado positivo alguns dias antes para o Covid-19. Naquela manhã se sentiu mal e caiu no banheiro, Ana conseguiu levar ele pra cama, mas em poucos minutos o marido morreu.
Por mais quatro horas no quarto, os médicos e enfermeiros do Samu prepararam o corpo de Rogério até que ele fosse levado pelo serviço funerário. Casos assim estão aumentando por conta da pandemia do coronavírus. No último mês, o número de mortes em casa dobrou em São Paulo.
Foto de Yan Boechat: Socorristas do Samu preparam cadáver de mulher idosa que morreu em casa com suspeita de estar contaminada pelo novo coronavírus - “Por favor, déjame ver a mi hijo. Mi hijo, déjame ver a mi hijo”
Alicia Choque Salinas, mãe boliviana, chegou no cemitério Vila Formosa, em São Paulo, com sua filha Marisol querendo ver o corpo de seu filho, Franz, de 29 anos morto pelo coronavírus. Por conta da contaminação, os funcionários explicaram que o filho teria de ser enterrado com o caixão lacrado, sem velório. Depois de muito suplicar, os sepultadores abriram uma fresta no caixão, mas a mãe que queria ver o rosto de seu filho, só encontrou o plástico azul que o envolvia.
Foto: Folhapress - “Minha irmã morreu primeiro. Nós a levamos para fora do quarto porque ela estava com falta de ar. A sentamos na área externa da casa e ela morreu ali, em nossos braços. Nós a levamos ao hospital, mas ela chegou morta. Meu cunhado viu a situação e teve um ataque cardíaco, ali mesmo, no hospital. Ele tinha a saúde delicada e teve o mesmo fim que ela. No hospital filantrópico, nos disseram que tínhamos que levar os corpos para casa e ligar para o 911. Então nós os trouxemos. Chamamos, chamamos, chamamos. Mas eles não vinham. Então embalamos os dois em plásticos. Os embalamos como se embalam bonecos. A cena era muito estranha, mas estávamos assustados porque o ambiente estava se contaminando.”
Bertha conta esta história de Guayaquil, no Equador, para onde se mudou na adolescência com mais dez irmãos. De todos eles, só ela e sua irmã Inés permaneceram na cidade e moravam uma em frente à outra há anos. Inés e seu marido deixaram cinco filhos e netos para trás. Seus familiares, depois da perda, enfrentaram a incapacidade do sistema funerário privado, que fechou suas portas em meio a pandemia, e a negligência do Estado em enfrentar o coronavírus nos hospitais e organizar a despedida dos familiares de maneira civilizada.
Os corpos ficaram quatro dias dentro de casa. Quando os peritos e os policiais chegaram, disseram que eles seriam enterrados, mas que não poderiam dizer onde. Se a família quisesse um serviço funerário decente, teriam que pagar mais ou menos 2.000 dólares cada. Os membros da família estão desempregados, trancados em casa e comem meia refeição por dia, Inés era a única que estava saindo de casa para o trabalho.
Situações como essa, como relata Bertha, estão virando cotidiano em sua comunidade. Os corpos são colocados em frente às casas porque os familiares têm medo de serem contaminados, as pessoas não tem escolha.
Foto: Bertha e sua família no morro Mapasingue, em Guayaquil/BBC - “Nem tente, senhor, estamos lotados.” Assustado, respondi: “Mas ela diz que está se afogando”. E ele respondeu: “Todos aqui dentro estão se afogando, senhor, não cabe mais ninguém”.
Esse é o depoimento do Carlos Jijón, morador de Guayaquil, no Equador, publicado na Folha. Ele levou sua mulher, María Rosa, com sintomas graves do coronavírus à todos os hospitais da cidade e nenhum tinha vaga. Depois de dias procurando tratamentos caseiros, lhe deram um leito no hospital e ela está melhorando. O sistema de saúde e funerário de Guayaquil, no entanto, está colapsado. Nos hospitais, além de não terem leitos para todos os casos graves, os mortos estão se amontoando nos banheiros. Quando os infectados morrem em suas casas, os corpos ficam dias junto com os familiares ou são levados para praças públicas até serem levados pelo veículo da prefeitura.
Foto: Caixões são vendidos em frente a hospital em Guayaquil, no Equador; AFP - Para quem está internado em um hospital, a situação é desesperadora. Os pacientes infectados pelo coronavírus precisam lidar com sua falta de ar e, em salas lotadas, escutar outras pessoas gritando que precisam de oxigênio ou morrendo. Os medicamentos também causam efeitos colaterais, como problemas gastrointestinais que levam muitos dos pacientes à defecar em si mesmos. O enfermeiro, que relatou à AFP esse cotidiano em um hospital em Guayaquil, diz que a angústia das pessoas se agrava porque elas sentem sozinhas e com medo, não podem receber visitas e estão longe de todos que queriam por perto.
Foto: Pacientes no hospital de campanha Los Ceibos, em Guayaquil, no Equador/ AFP