Imagem: A Lâmpada Filosófica, de René Magritte
Maria Alice de Carvalho* – Redação UàE – 01/08/2019
O aparelhamento de entidades representativas tornou-se comum no movimento estudantil. A tomada de controle desses espaços por organizações/partidos que a utilizam de forma estratégica para alcançar interesses meramente corporativos e específicos de sua organização política é presente na construção de nossas lutas; o que não se restringe apenas ao contexto brasileiro e nem à categoria dos estudantes.
Ter essa prática como corriqueira e naturalizada entre nós abre brechas para a construção de uma política suja e que vai contra os interesses da massa dos estudantes.
No Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), DCE Luiz Travassos, isso ficou evidente, sobretudo, com as duas últimas gestões (2017-8; 2018-atual) ditas de esquerda, as quais surgiram como alternativa substancial aos últimos quatro mandatos explicitamente de direita mas que, com os passar das gestões, evidenciou-se como continuidade do mesmo problema: o distanciamento do DCE com a luta dos estudantes.
Os reflexos do aparelhamento não restringem-se às limitações políticas da entidade, mas desdobram-se por todo o movimento estudantil; e, por isso, torna-se nocivo às lutas regionais que, por conta do imobilismo, perdem o caráter radical necessário da disputa política.
A perda de pautas fundamentais ao corpo estudantil
Com os recentes cortes no orçamento das Universidade Públicas feito pelo governo Bolsonaro e com o Programa Future-se sendo colocado em prática, uma das principais pautas levantadas pelos estudantes é a questão de permanência, principalmente daqueles que dependem totalmente das políticas de permanência para sobreviver na universidade.
Com isso, a atual chapa do DCE da UFSC, “Canto Maior”, combativa como se diz ser, não ficou inerte. Os estudantes que compõem essa entidade elaboraram um ofício exigindo declaração da reitoria sobre as condições de permanência estudantil para os próximos semestres. Entregaram pessoalmente ao reitor Ubaldo Balthazar, com direito a filmagem, e realizaram uma conversa com este pedindo algumas explicações.
Não se sabe, neste caso, o que é mais vergonhoso: o DCE encontrar como única via de luta as relações burocráticas da universidade, ou a cara de paisagem de seus militantes frente às declarações vazias da reitoria e insinuação desta de que apoia a atual Reforma da Previdência em prol de garantir o orçamento das universidades públicas.
Além de ter que esperar o maior ataque que já presenciamos às Universidades Públicas brasileiras para tocar na questão fundamental de permanência estudantil, as organizações que hoje compõem a gestão do DCE contentaram-se com a ausência de resposta da reitoria; e, ainda, divulgaram essa tão brava ação de entrega de um ofício – imagine! – como uma estratégia ousada e admirável.
Um orgulho para aqueles que os elegeram, não fosse a entrega desse ofício inútil e finda em si mesma e o silêncio dessa gestão frente à desumana condição da Moradia Estudantil da UFSC já há anos.
No primeiro semestre de 2018, os estudantes que moram na Casa do Estudante iniciaram um movimento de denunciar o descaso da reitoria com a permanência estudantil: infestação de ratos pelos prédios, vazamentos, goteiras, chuveiros queimados e instalações de gás com risco de explosão.
Atos foram feitos pela Universidade e um movimento mais radical de estudantes começou a tomar corpo na UFSC. Todas as discussões e pequenas conquistas realizadas por esse movimento ocorreram sem a iniciativa e participação do DCE. Pelo contrário, quando o DCE decidiu atuar frente a esta pauta, foi para boicotar espaços puxados pelo Movimento de Luta pela Moradia Estudantil, como o cancelamento de uma sessão do Conselho de Entidades de Base (CEB) que havia sido chamado para discutir tal questão.
Hoje, a situação da Casa do Estudante encontra-se ainda extremamente precária e, com a crise, pode-se dizer que até mesmo pior – nunca pensamos que isso seria possível.
No espaço do PAEP (Programa de Apoio Emergencial de Permanência), o qual encontra-se anexo à Moradia Estudantil e aloca provisoriamente aqueles estudantes que ainda não garantiram uma vaga na Moradia ou uma outra forma de habitação, os quartos encontram-se superlotados, com problemas estruturais, e não há previsão de que serão abertas novas vagas paras os novos ingressos na universidade, tendo em vista a cada vez pior situação daqueles estudantes que lutam diariamente para se manter em Florianópolis.
Estudantes em situação de precariedade, por exemplo, atualmente organizam-se em grupos para ir até estabelecimentos próximos, como o Mercado Imperatriz, e recolher alimentos que foram destinados para o lixo. É assim que eles garantem manter-se de pé todos os dias para trabalhar e lutar por mais um dia no espaço da Universidade. Alimentando-se de produtos vencidos e descartados.
O que nos leva a outra fundamental política de permanência, também negligenciada pela atual gestão do DCE: o Restaurante Universitário; política de permanência a qual abrange maior parte dos estudantes, dentro do programa de assistência estudantil.
No fim do semestre de 2019.1, em reunião com o reitor Ubaldo Balthazar, os membros do DCE apertaram sua mão sinalizando que a assistência estudantil não estaria comprometida na UFSC, pelo menos no período próximo. Dias depois, a reitoria emitiu uma nota aos estudantes, pedindo que aqueles que não estivessem nas piores condições possíveis “colaborassem com a Instituição evitando utilizar o Restaurante Universitário.”
Após realizar este pedido aos estudantes, a reitoria anunciou que o RU do campus Trindade, maior campus da UFSC, ficaria fechado por parte do recesso – de 19 a 31 de julho -, por conta de problemas na rede de esgoto.
O RU do campus Trindade chega a servir cerca de 9 mil refeições por dia durante os semestres letivos. Nos finais de semana, a média de refeições servidas é de 2.137 por dia. Cada refeição oferecida, seja almoço ou jantar, custa R$ 1,50 para os estudantes. Além disso, cerca de 3.700 estudantes contam com isenção do ticket devido vulnerabilidade socioeconômica (renda per capita menor que 1,5 salários mínimo).
A Direção da UFSC informou que durante este período em que o RU Trindade ficaria fechado, o RU do Centro de Ciências Agrárias (CCA) ficaria aberto para uso de todos, porém que não haveria fornecimento de ônibus para locomoção dos estudantes da Trindade ao CCA; e assim aconteceu.
Além disso, nos campi de Araranguá, Blumenau, Curitibanos e Joinville o RU ficou fechado durante todo o período do recesso – 13 de julho a 4 de agosto.
Em outros momentos em que a UFSC precisou fechar o RU do campus Trindade, foi fornecido transporte para garantir a alimentação dos estudante, o que foi conquistado após intensa mobilização e luta do Movimento Estudantil, por iniciativa principalmente de Centros Acadêmicos construídos por estudantes não filiados às organizações e partidos políticos que compõem atualmente a gestão do DCE.
Quando no fim do segundo semestre de 2017 foi anunciado que o RU fecharia durante as férias, os estudantes mobilizaram-se para garantir a todos a alimentação no RU do CCA, o que depende, obviamente, de transporte. A reitoria relutou e, num primeiro momento, tentou garantir alimentação apenas àqueles estudantes com ticket isento. Frente a isso, os estudantes puseram-se dispostos a radicalizar suas lutas e construir uma grande mobilização pela base.
Surgiram ideias de ato até a reitoria, levando as bandejas até o reitor; materiais foram distribuídos pela UFSC física e virtualmente pelos estudantes. Porém, tudo isso, não graças ao DCE. Pelo contrário, a entidade encontrava-se novamente imersa nas vias de burocratização das lutas e, na contramão do movimento dos estudantes, decidiu por realizar apenas uma Audiência Pública com a reitoria.
Porém, não é de hoje que o DCE da UFSC, tocado pela abstrata unidade de esquerda, preocupa-se mais em responder à reitoria que aos estudantes. Reuniões de gabinete e afunilamento das lutas em vias administrativas tornaram-se a regra do dia.
Pois bem, por conta do fechamento do RU do campus Trindade no recesso de 2019, o DCE chamou então uma reunião aberta no dia 23 de julho – um tanto quanto tarde, tendo em vista que os estudantes estavam tendo que se locomover até o CCA desde o dia 19. Nesta reunião, além do silêncio, o que tomou conta do espaço foi a falta de preparação e, permito-me dizer, indiferença daqueles que constroem o DCE com a questão do RU e os que dependem deste para se alimentar.
A única deliberação desta reunião foi falar com o setor de transporte da UFSC para tentar garantir locomoção para os estudantes pelo menos nos últimos dias do recesso. As refeições já voltaram a ser realizadas no campus Trindade e nenhum ônibus foi garantido aos estudantes para ir até o CCA.
Além da ineficácia desta deliberação, percebemos mais uma vez a decisão da gestão do DCE em tratar as pautas em suas instâncias administrativas, ao invé de tratá-las através da politização e convocação dos estudantes para travar as lutas em movimentos coletivos e que não se limitam aos trâmites burocráticos.
O RU do campus Trindade necessita frequentemente ser fechado, pois seu uso ultrapassa o dobro de sua capacidade projetada. O projeto foi destinado para atender uma média de 5 mil estudantes, quando foi inaugurado em 2013, ou seja, apenas 60% dos que hoje necessitam usar o Restaurante. Como consequência, manutenções e reformas precisam ser realizadas constantemente e de maneira que, só com o RU fechado, é possível reparar – pois seu uso acima da capacidade não permite reformas concomitantemente ao uso.
Estudantes discutem isso nas filas e mesas do RU todos os dias. Porém, uma chapa de DCE supostamente de esquerda, que diz lutar pelos interesses dos estudantes, nunca sequer tocou na pauta de reivindicação de abertura de uma nova ala do RU; nunca construiu fortes mobilizações para discutir essa política de permanência; nunca foi capaz de escutar os estudantes.
A expansão do RU é pauta do Movimento estudantil da UFSC há anos. A nova ala do RU Trindade, inclusive, foi fruto de intensa mobilização estudantil, quando a antiga ala – que hoje abriga incipientemente estudantes indígenas – era insuficiente para a demanda estudantil. Cabe destacar o papel de vanguarda da gestão do DCE na referida mobilização de 2009, que garantiu a abertura da atual ala do RU, em 2011 – nesta gestão, sem a política de aparelhamento.
Mas, voltando à reunião do DCE e suas discussões, sobre o fechamento do RU dos campi de Araranguá, Blumenau, Curitibanos e Joinville não é preciso comentar que os membros do DCE sequer tocaram no assunto. Já é de conhecimento de todos que as chapas concorrentes ao DCE formadas pela abstrata unidade de esquerda só se recorda dos outros campi no período eleitoral, vendendo inclusive em sua campanha que, diferente das antigas gestões de direita, estará presente no cotidiano desses estudantes. Estamos até hoje esperando…
Por fim, nos deparamos com um DCE que não convoca os estudantes a compor suas reuniões – vazias -, discussões e construções de luta – até porque não conseguimos citar aqui alguma que tenha travado.
Nos deparamos com um DCE que quando diante de questões fundamentais à massa dos estudantes é incapaz de compreendê-la e tratá-la da forma como merece e almejam os estudantes. Um DCE incapaz de enxergar a desumanidade que é a Moradia Estudantil da UFSC. Um DCE incapaz de caber dentro da radicalidade que o Movimento Estudantil carece e necessita para empreitar as lutas presentes
E essa é uma das grandes consequências de um DCE aparelhado politicamente por organizações e partidos políticos: a perda de tudo aquilo de mais caro aos estudantes.
Um horizonte de lutas transforma-se em um abismo de frustrações.
E essa perda de pautas fundamentais ao corpo estudantil por parte do DCE não é acidental ou por falta de atenção. Pelo contrário, ela é consequente e planejada pelas organizações políticas que hoje apropriam-se dessa entidade representativa. E elas o fazem por dois motivos:
O primeiro, é que nenhuma dessas organizações, que disputou e colocou militantes no DCE, o fez por entender ser seu dever lutar pelos interesses da massa dos estudantes; para colocar na ordem do dia as pautas que nos são fundamentais e construir um projeto de fato de esquerda para a Universidade. E escrevo essas palavras com total segurança.
A concepção de Universidade que essas organizações e partidos possuem é de que esta não é uma instituição disputável dentro da sociedade capitalista; de que não é possível construirmos um projeto emancipador para essa instituição educacional. Sendo assim, utilizam o campo de lutas na Universidade apenas como uma escola de quadros políticos e como espaço de cooptação de novos militantes, para atuarem após sua saída da Universidade.
O interesse dessas organizações, ao tomarem uma importante entidade como o é o DCE, é ter como fim último sua autoconstrução; apenas. E esse objetivo podemos dizer que alcançaram com sucesso nesses dois últimos anos de gestão no DCE da UFSC. Organizações políticas como Juventude Comunista Avançando (JCA) e União da Juventude Comunista (UJC) inflaram nesses dois último anos de gestão.
O segundo motivo por não travarem as mais caras lutas ao movimento estudantil e, ainda por cima, boicotarem aqueles movimentos de estudantes independentes que vez ou outra surge na universidade, é que para garantir o motivo primeiro aqui exposto, é de fundamental importância para essas organizações que nenhuma luta real ocorra na universidade, que não se desenhe para o movimento estudantil uma outra possibilidade de esquerda.
É apenas em meio ao marasmo e à frustração que a política mesquinha dessas organizações pode sobreviver e ser considerada como legítima na Universidade. E é por isso que quando movimentos de esquerda insurgem na Universidade, a atual gestão do DCE não mede esforços para boicotar, deslegitimar e, consequentemente, destruir.
Para o ciclo de lutas que se desdobra na segunda metade deste ano, com a aprovação da Reforma da Previdência e o fim próximo das universidades públicas, é mais do que tempo de radicalizar o movimento de lutas. Para tal empreitada, porém, é fundamental estabelecer as devidas críticas aos equívocos do movimento estudantil e, na UFSC, isso inclui necessariamente uma crítica à forma oportunista que as organizações políticas se relacionam com as entidades e a massa dos estudantes.
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