Imagem: Cartaz “Sobre a bandeira de Lenin” por Gustav Klogis (1895-1938) de 1933
Ana Júlia e Caio Sanchez* – 26/07/2019 – Redação UàE
Debater a temática das práticas stalinistas não é uma tarefa fácil e, por conseguinte, não se limita à poucas palavras. Alguns teóricos comprometidos com a prática revolucionária têm estudado há anos as escolhas políticas de Stalin e suas consequências para a construção – mas também degradação – da União Soviética, sem jamais assumirem como encerrado esse importante debate. Não se pretende, aqui, portanto, esgotar essa discussão, e sim, apontar algumas críticas iniciais que contribuam para com a prática revolucionária.
Ora, muitos devem se perguntar “por que debater algo que, hoje, parece o menos fundamental, tendo em vista a conjuntura brasileira?”; pois bem, sua importância está justamente no fato de que é nesse momento que precisamos fazer avançar os debates sobre a construção do socialismo e o que significa ser comunista hoje, e, assim, apresentarmos saídas efetivas à esquerda para a atual crise. E, para tal objetivo, é imprescindível avaliar e debater experiências do passado, pois, se coube à classe dominante exercer seu papel com qualidade, recorrendo a mentiras e burlando a história, é nosso dever, a esquerda socialista, forjar uma nova história para nossa classe sem repetir os equívocos do passado.
Longe de dedicar um texto a uma figura como Stalin, ou, defender Trotsky – como se a primeira pretensão levasse diretamente à segunda – é necessário analisar o fenômeno conhecido como “stalinismo”, desencadeado – não só, mas principalmente – após a década de 1930, com práticas que transcenderam as escolhas políticas de um só homem ou do culto a sua personalidade, mas que resultaram na construção de uma experiência socialista que deixou marcas profundas no desenvolvimento capitalista mundial e um grande legado, tanto para as experiências revolucionárias posteriores, quanto na práxis contemporânea.
Prova de sua magnitude é que hoje vemos partidos que seguem a tradição stalinista, os quais hora reivindicam abertamente o culto ao Stalin, hora escondem seu apoio – devido, principalmente, a propagação do Relatório Khrushchev, relatório que tratava da divulgação da política de Stalin durante o período em que esteve no poder, lido pela primeira vez no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética de 1956 e divulgado oficialmente somente em 1989. Há ainda aqueles militantes que, ainda que não o saibam efetivamente, recorrem a seus postulados na práxis cotidiana.
Diversas críticas ao stalinismo permeiam o que foi chamado de “culto à personalidade”, muitas delas resumindo-se a uma discussão psicológica e focada somente nas posturas adotadas por Stalin. De fato, a vaidade de Stalin é algo digno de menção, visto que trouxe relevantes consequências políticas para a União Soviética. Entretanto, essa questão é muito mais profunda do que uma possível crítica a características específicas da personalidade de um dirigente político, devendo ser debatida em seu conjunto, para que faça a ciência marxista avançar.
Para iniciar o debate dessa sessão, relembremos a carta de Lênin ao XIII Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), carta que escreveu quando adoeceu e foi afastado do Partido. A carta demonstra muitas das ambições que Lênin possuía em relação a continuidade da construção socialista, e foi lida por sua companheira, Krupskaya, em maio de 1924, após sua morte. Seria lógico pensar que, se seguisse a tradição leninista – como Stalin afirmou o fazer – as indicações da carta seriam levadas ao menos em consideração – bem como todo o desenvolvimento de suas estratégias. Porém, a carta não apenas foi impedida de ser divulgada, como foi posteriormente suprimida dos arquivos do PCUS até 1956, por menções negativas à Stalin.
“O camarada Stálin, tendo chegado ao Secretariado Geral, tem concentrado em suas mãos um poder enorme, e não estou seguro que sempre irá utilizá-lo com suficiente prudência.
(…)
Stálin é brusco demais, e este defeito, plenamente tolerável em nosso meio e entre nós, os comunistas, se coloca intolerável no cargo de Secretário Geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem a forma de passar Stálin a outro posto e nomear a este cargo outro homem que se diferencie do camarada Stálin em todos os demais aspectos apenas por uma vantagem a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais correto e mais atento com os camaradas, menos caprichoso, etc.”2
Lênin, já naquela época, foi capaz de apresentar suas considerações muito precisas sobre Stalin e a incapacidade do mesmo em ocupar um cargo tão importante em um Partido. O apagamento da carta e sua não divulgação demonstram apenas como Lênin estava correto naquilo que havia previsto. Entretanto o mais chocante é que, desde àquela época, a carta continua a ser excluída dos debates, bem como a vasta obra de Lênin que aponta diversos dos caminhos que havia trabalhado para o avanço da União Soviética, documentos que estão hoje acessíveis e disponíveis, mas que continuam a ser mal estudados.
Lênin passou a ser lido pelos stalinistas a partir de interpretações do próprio Stalin, o que, diga-se de passagem, é um tanto quanto equivocado, visto que se queremos conhecer a teoria de Lênin, precisamos ler o mesmo e não apenas as interpretações que fizeram dele. Um dos argumentos oriundos dos stalinistas – e possivelmente o único – que busca afastar de primeira o debate sobre os avisos de Lênin em relação a Stalin, é de que Lênin estava doente e debilitado, e, portanto, incapacitado, quando redigiu suas reflexões sobre Stalin. É a esse tipo de absurdo que os stalinistas recorrem: atacar Lênin sem nenhum fundamento, como se sua saúde enfraquecesse sua capacidade interpretativa, bem como apagasse sua preocupação com a continuação da revolução. E aqui percebemos o stalinismo nu e cru: a defesa irracional de uma figura a ponto de contorcer todo e qualquer aspecto da realidade para caber em uma crença infundada.
Pois bem, se quisermos seguir a tradição marxista, se reivindicamos essa tradição como a nossa, não podemos perder de vista seus princípios fundamentais. Marx, em carta para Wilhelm Blos, em 10 de novembro de 1877, já alertava sua posição e a de Engels sobre os perigos do culto ao indivíduo, demonstrando cautela para com os que não compreendiam isso.
“Nenhum de nós se importa com popularidade. Deixem-me citar uma prova disso: tal era a minha aversão ao culto à personalidade que, na época da Internacional, quando atormentado por numerosos movimentos – originários de vários países – para me conceder honra pública, nunca permiti que um deles publicassem sobre, nem nunca respondi a eles, exceto às vezes para repreender seus autores. Quando Engels e eu nos juntamos pela primeira vez à sociedade comunista secreta, fizemos isso apenas com a condição de que qualquer coisa conducente a uma crença supersticiosa na autoridade fosse eliminada de seu estatuto. (Lassalle operou posteriormente na direção inversa). Mas eventos como o ocorrido no último congresso do partido – eles estão sendo bem e verdadeiramente explorados por inimigos do partido no exterior – em qualquer caso tornaram necessário sermos circunspectos em nossas relações com “membros do partido na Alemanha.” (tradução livre)3
E podemos, hoje, dar exemplos precisos de como o culto do indivíduo posiciona em Stalin o triunfo da classe trabalhadora soviética, o que é, além de um equívoco analítico, a crença equivocada de que basta uma figura forte e autoritária para fazer triunfar uma nação. E nesse discurso interpretativo, ignora-se o papel dos sovietes, do Partido Bolchevique e da classe trabalhadora no processo. Como é possível que se encham de orgulho ao dizer que quem venceu o nazismo foi Stalin? Ora, será que não foi a classe trabalhadora organizada através do exército, com sua bravura e dedicação para enfrentar as batalhas e fazer triunfar o socialismo?
Stalin faz crer que foi ele mesmo, principalmente no livro de publicação Comissão do Comitê Central do Partido Comunista Bolchevique da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e cujo título, apesar de supostamente ter a pretensão de realizar uma análise histórica do Partido Comunista (Bolchevique) da URSS, no final da década de 1930, carrega em seu seio uma grandíssima homenagem – autobiográfica – a Stalin. O texto faz menções a Stalin como “o continuador do trabalho de Lênin”, “gênio militar que adivinha os passos do inimigo”, entre outras fraseologias que, seriam cômicas caso não tivessem implicado em desastrosas consequências políticas.
Uma delas é a menção – atualizada em muitos defensores do stalinismo – de que esse grande dirigente seria um gênio militar, vide por exemplo, a constante menção à batalha de Stalingrado, ocultando os fatais equívocos das decisões sobre a Guerra Patriótica. Um exemplo foi a adoção da tática de “defesa ativa”, que consistia em permitir relativo avanço das tropas inimigas em direção ao território soviético, promovendo desgaste do exército alemão para “acumular forças” e permitir a ofensiva por parte do exército vermelho.
Foi essa tática que permitiu que as tropas alemãs brutalmente atacassem o território soviético, chegando até Moscou e Stalingrado e liquidando grande parte do exército vermelho para, apenas depois, Stalin permitir a defesa por parte de seu exército e posterior avanço sobre as tropas inimigas. Segundo o “gênio militar”, a tragédia experienciada pela União Soviética na primeira parte da guerra seria consequência do ataque inesperado das tropas alemãs, o que justificaria a escolha tática. Entretanto, além de o próprio Churchill – defendendo evidentemente seus próprios interesses políticos na guerra – tê-lo alertado pessoalmente sobre a movimentação das tropas, diversos comandantes advertiram Stalin sobre o exército inimigo, informes que além de ignorados, foram respondidos com humilhação aos comandantes, e resultaram em desnecessária liquidação de parte dos militares soviéticos.
O culto à imagem fez-se influenciar até mesmo as artes e a estética soviética. Com a tomada de poder em 1917, a arte teve inicialmente o papel de agitação e propaganda, mobilizando e mostrando aos trabalhadores russos o projeto defendido pela revolução. Nesse momento, o teatro passou a ser um lugar de pesquisa e experimentação de novas formas de vida social, e até mesmo a arquitetura passou a se redefinir, buscando ser capaz de traçar novas moradias, novas indústrias e novos clubes que condissessem com a sociedade futura.
Porém, a partir de 1929 a arte toma novos rumos, sendo então transformada majoritariamente em uma indústria para produção de imagens, adaptando-se à aceleração industrial que viria com a Nova Política Econômica (NEP) e também à criação de propagandas positivas sobre a figura de Stalin, por meio de filmes, música e estátuas, evocando uma constante alusão como sucessor de Lênin. A rememoração estética da Revolução por meio da delimitação de uma determinada forma de arte, bem como a construção da ideia de ícones revolucionários, principalmente por meio das estátuas – muitas vezes construídas sob alicerces teológicos oriundos do antigo regime czarista, aludindo a uma “santificação” dos dirigentes revolucionários – impactam na dificuldade do exercício crítico a essas figuras.
Ainda hoje a reivindicação estética do comunismo se faz presente, de uma forma rasa e acrítica sobre o papel da arte revolucionária. O hino da internacional comunista, os adesivos com foice e martelo, a romantização do papel dos socialistas, a constante menção à cor vermelha, a cara de Lenin (ou até mesmo Stalin) exposta em pôsteres, o gozo com declarações sobre “fuzilar a oposição”, entre outras, parecem prescindir à própria compreensão ou compromisso revolucionário efetivo, buscando criar uma identidade sobre o que é ser comunista. Ainda que o elemento propagandístico para difusão do socialismo seja fundamental, o mero apelo estético à revolução torna-se mais uma expressão do culto à personalidade e, consequentemente, da fetichização do marxismo, em detrimento ao que deveria ser o papel dos socialistas: a desmistificação e ampliação do debate sobre a construção de uma nova sociedade.
Com todo esse aparelho responsável pela construção de uma grande figura, não é necessário muito esforço para compreender suas consequências fatais. Pouco a pouco as discussões coletivas foram sendo extintas, reduzindo as decisões fundamentais à verdade de Stalin, que transformou muitos processos políticos e administrativos do Partido em questões meramente judiciais e administrativas. Prova da autocracia – termo que ainda gera grande discussão, mas que parece ser o mais adequado – de Stalin foi o intervalo de tempo entre o XVIII e XIX Congresso do Partido Bolchevique: 13 anos de construção socialista sem um dos principais instrumentos de decisão coletiva, altamente necessária para determinação democrática dos rumos da Revolução. Nesses 13 anos, houve apenas uma tentativa da construção de um Congresso sem a autorização de Stalin, o qual não ocorreu e os responsáveis foram considerados como traidores e, consequentemente, executados.
Slavoj Žižek, filósofo marxista esloveno, é um dos teóricos que se propôs a debater o stalinismo dentro de diversos de seus textos, deixando-nos diversos elementos importantes para pensar a experiência comunista. Em seu livro, que reúne uma série de entrevistas feitas por Fabien Tarby em 2010, Žižek, discutindo sobre o problema da repetição e, especificamente, da repetição de um evento histórico, trata que a verdadeira questão para a esquerda hoje deveria ser “o que significa viver nossa contemporaneidade do ponto de vista da ideia comunista?”, e abandonar a velha pergunta oportunista: “existe algo que ainda possa ser usado hoje na ideia comunista?”. Bem, é isso que a sequência de textos que virão busca refletir, como reinventar radicalmente o comunismo, começando pelos debates que façam superar as amarras com o passado e resolver nossos embates históricos. Vejamos, há muitos novos elementos a serem considerados inclusive à luz das experiências passadas, justamente para não as repetir, uma vez que o fundamento para a revolução está na compreensão rigorosa da conjuntura e, dentro disso, por onde passará a tomada do poder. Nossa tarefa é muito maior que evocar nostalgicamente experiências, mas sim propor saídas à altura do desafio imposto por nosso tempo histórico.
1 https://www.marxists.org/archive/khrushchev/1956/02/24.htm
2 https://www.marxists.org/portugues/lenin/1923/01/04.htm
3 http://hiaw.org/defcon6/works/1877/letters/77_11_10.html
*O texto é de responsabilidade dos autores e não reflete a opinião do jornal
Excelente matéria. Afinal de contas o Stalin fez alguma coisa que preste para os soviéticos? Quantos inocentes morreram?