Ato gigante dos estudantes, professores, técnicos, demais trabalhadores da UFPR, UTFPR e IFPR; Curitiba/PR; 10/05/2019; Foto por DCE UFPR

[Debate] Bolsonaro e os cortes na educação superior: considerações preliminares (IV)

O UFSC à Esquerda está publicando uma série de 5 textos de análise produzidos por Allan Kenji Seki, sobre os cortes na educação superior realizadas pelo governo Bolsonaro. Allan é Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE-MARX). Pesquisador do laboratório Centre d’Économie de l’Université Paris Nord (CEPN) da Université Paris 13.  Confira a quarta parte. 

Leia também a parte I, a parte II, parte III, e a parte V. 

Allan Kenji Seki* para o UFSC à Esquerda – 13/05/2019

O governo Bolsonaro tem um projeto neoliberal amplo e bem articulado

Embora em certos momentos a tendência à inserção subordinada do Brasil no cenário mundial de educação, ciência e tecnologia possa ter sido atravessada por contra tendências, incluindo-se aí certa abertura para que alguns laboratórios trabalhassem com relativa autonomia, menos aperto orçamentário e, até mesmo, com alguma abertura crítica em relação às contradições do capitalismo, as coordenadas colocadas pelo aprofundamento das crises tensionam as correlações de forças na disputa do fundo público e nas formas de dominação. O espaço e o tempo da política são redefinidos, reafirmando as tendências gerais e buscando eliminar os traços de oposição. Sobre as universidades pesarão, nos próximos anos, pressões muito mais intensificadas. Não podemos perder de vista os laços que conectam a defesa da educação pública às demais lutas sociais, tais como aquelas contrárias a qualquer reforma da previdência que converta a riqueza poupada pelos trabalhadores em fundos para o capital financeiro, que mitigue a solidariedade que comungam os trabalhadores entre si e entre as diferentes gerações e a seguridade social, por minimalista que seja hoje após décadas de incessantes ofensivas.

Para a educação superior é evidente que a reforma da previdência terá consequências imediatas às carreiras dos servidores, obrigando o contingenciamento de parcelas cada vez maiores dos salários para o financiamento de fundos de previdência privados. Diga-se, aliás, que se transferem riscos do mercado financeiro de capitais para a segurança dos trabalhadores que poderão ser levados a perder parcelas significativas de suas seguranças futuras, conforme as perdas que esses capitais sofram. Contudo, no presente, serão obrigados a capitalizar os fundos privados pela sucção de seus fundos de existência via sequestro de seus salários. A carreira acadêmica se tornará muito mais insegura nessas circunstâncias, favorecendo a exportação de cientistas formados no Brasil para outros países, com a perda de conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos.

O método de chantagem aplicado nos cortes, segundo o qual “se a previdência for aprovada, então, os contingenciamentos das universidades poderão ser revistos”, segundo anunciou o Ministro da Educação, lança luz sobre outra face da reforma da previdência submetida pelo governo Bolsonaro ao Congresso Nacional. Se for aprovada a capitalização da previdência, isso significará a transferência da poupança das contas individuais para bancos, seguradoras e fundos investirem no mercado. As pressões por espaços de valorização serão imensas, forçando internamente o capital financeiro a ampliar os espaços sociais de colocação de capitais. Em outras palavras, todos os departamentos econômicos serão pressionados a dar vazão ao volume de ativos que poderão circular sob a forma monetária. Consequentemente, os custos de capitalização importarão na corrosão da capacidade do Estado de operar com o fundo público nas políticas sociais, não é difícil notar que a tendência geral será a de privatização de todos os seus âmbitos. Não é difícil conjecturar como os setores, que se encontram altamente comprometidos com os fundos de pensões, terão na saúde e na educação terrenos de intensa disputa por suas totais desregulamentações. A luta contra a reforma da previdência é fundamental para garantir um futuro justo e solidário ao conjunto dos trabalhadores brasileiros, mas é também uma questão fundamental à sobrevivência das universidades públicas.

Os capitais financeiros puderam coexistir com as universidades públicas e gratuitas somente enquanto não existiam pressões internas e externas que tornassem relevante comprar os embates com servidores públicos, estudantes e com parcelas da sociedade que a defendem. Por outro lado, até certo ponto, a educação pública colaborou com a expansão da modalidade de Educação a Distância (EaD) nas IES particulares, pois as federais e estaduais conferiram progressivamente a legitimidade que as privadas precisavam para incorporá-las e desenvolvê-las de modo celerado[1]. No contexto de avanço da crise e da intensidade de suas ondas subsequentes, os capitais fictícios exercem cada vez mais força para ampliar as fronteiras da mercadorização dos direitos sociais e, nisso, a educação pública parece, no todo ou em partes, intolerável.

Para se ter uma noção melhor do que essa concorrência significa no Brasil, embora apenas 25% das matrículas estejam em instituições de ensino superior públicas, a relação candidato/vaga é de 17:1; nos cursos particulares essa relação é aproximadamente 1:1[2]. Esse dado demonstra a preferência dos estudantes pelas instituições públicas, o que é condizente com a impossibilidade da imensa maioria da população de arcar com uma participação da renda familiar no pagamento das mensalidades. Os salários estão tão comprimidos que uma família com renda global de R$ 2,5 mil reais, com elevados custos de aluguel, transporte, alimentação, dificilmente poderia dispor de um ticket médio de R$ 800 mensais para um único filho cursar o ensino superior nas IES particulares sem que isso significasse seu descenso social.

A forma encontrada de compensar a situação foi a de reestruturar os programas de financiamento estudantil, ampliando a parcela de capitais destinados ao pagamento de empréstimos por parte das famílias, de subvenção dos juros e securitização de riscos pelo Estado. É por isso que as instituições particulares financeirizadas competem duplamente com as universidades públicas: por estudantes em busca de matrículas e por financiamentos estudantis securitizados e subvencionados por fundos do Estado. Quando o horizonte orçamentário se comprime, a luta concorrencial entre elas deixa o plano abstrato e se torna luta concreta, mas a diferença de força econômica (e, portanto, política) é gigantesca. Enquanto o capital financeiro pode mover agências de avaliação de risco, rankings, fundos de investimentos em todos os departamentos da economia nacional, financiar campanhas, estabelecer frentes parlamentares, atuar dentro e fora do Conselho Nacional de Educação (CNE), entre outras táticas, as universidades públicas contam basicamente com o que resta de forças críticas para identificar o problema e situar o terreno das ações de resistência, principalmente, nos sindicatos e entidades do movimento estudantil.

Se a capitalização da previdência for aprovada, permitindo que amplos recursos poupados pelos trabalhadores sejam colocados nos mercados financeiros ou, ainda, caso a capitalização seja adiada, mas a legislação previdenciária for desconstitucionalizada – medida que possibilitaria que a capitalização fosse determinada e regulamentada por lei ordinária posteriormente –, a educação, como outras áreas sociais, enfrentará a privatização em correlações de forças impensáveis mesmo para os parâmetros atuais. O que temos é um governo com projetos muito bem definidos e articulados para todos os âmbitos das políticas sociais. A aparente “confusão” do bolsonarismo não é “desgoverno”, mas o método de condução dessa nova fase de ofensiva neoliberal.

 


[1] O governo estimulou a expansão do ensino a distância nas instituições públicas e, quando a modalidade ganhou um impulso significativo, travou a sua expansão. As privadas receberam, assim, a maior oferta de credibilidade para uma modalidade da qual a sociedade em geral guarda razoáveis desconfianças. Além disso, as universidades públicas desenvolveram sistemas, materiais de ensino e teorias de ensino-aprendizagem a distância.

[2] Dados do Censo da Educação Superior de 2017 (BRASIL, 2017b).

* O texto é de inteira responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do Jornal.


Leia também a parte I, a parte II, parte III, e a parte V. 

2 comentários

  1. […] Na última assembleia estudantil, membros do DCE defenderam a necessidade de “guardar energia” para o dia 14 (greve geral), uma vez que a pauta do dia 30 (cortes na educação) seria muito específica. Aponto, então, dois erros fundamentais nessa defesa. Primeiro, o equívoco – por parte dessa mesma esquerda que conclama Unidade – em insistir na segregação das pautas. Ora, os Institutos e Universidades Federais, alvos dos cortes, não são tema candente da sociedade como um todo? Especificar o público de cada facada vinda da agenda Bolsonaro é cair na estratégia do Governo. Os cortes na educação não são uma pauta específica, e mais, não são tampouco propriedade de algum grupo específico, senão de toda a classe trabalhadora. Além das Universidades estarem por princípio à serviço do proveito coletivo, a própria necessidade de reprodução do Capital vincula os cortes na educação à Reforma da Prev… […]

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