Foto: UFSC à Esquerda
Flora Gomes* – Redação UàE – 23/10/2019
Na última Assembleia Estudantil, realizada dia 17/10, os estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina optaram, com diferença de cerca de 90 votos, por encerrar a greve. Diversos militantes fizeram sua primeira experiência ou retomaram a urgência da luta e nacionalmente nossa greve recebeu apoio de muitas outras universidades e trabalhadores. A narrativa acerca dos motivos do fim ainda há de ser continuamente tecida por diversos setores, visto que há muitos elementos para serem elaborados politicamente, processo de extrema importância para avaliar os saldos e resguardar a memória.
Um significativo processo particular da greve na UFSC em relação a muitas outras experiências precedentes foi a visibilidade das divergências políticas no interior da própria esquerda. Era evidente que havia diferentes concepções quanto às lutas frente ao ataque brutal às universidades públicas brasileiras, apresentado pelos contingenciamentos anunciados no primeiro semestre somado à possível saída via “Future-se”. As divergências mais destacadas no corpo estudantil estiveram ligadas ao Diretório Central dos Estudantes (DCE) e o Movimento Ufsc Contra o Future-se (MUCF).
Uma das principais críticas provenientes do DCE e setores alinhados foi a caracterização do MUCF enquanto um movimento “anti-entidades” e portanto, ilegítimo, já que representava uma afronta à história do movimento estudantil e suas entidades, duramente conquistadas ao largo da história. É necessário relembrar que esse grupo começa a formar-se em uma reunião aberta do Centro Acadêmico Livre de Geografia (CALIGeo) ainda nas férias, contando com a presença de muitas forças e categorias da universidade, inclusive com o próprio DCE. Fizeram parte partidos políticos (como PSTU, e, até se mostrar-se contra a greve após dois dias da deflagração, também a Revolução Brasileira), grupos anarquistas e principalmente muitos independentes que encontraram na forma e no conteúdo político do movimento um sentido legítimo para combater as afrontas do Governo Bolsonaro. Não posso assegurar se alguma dessas forças de fato reivindicava em algum outro espaço a não existência ou legitimidade das entidades, mas é um fato de que essa não era a política do Movimento. Porém, é necessário fazer jus ao que de fato o movimento UCF buscou combater, sendo, assim, expressão legítima de uma oposição à política defendida pelo DCE-UFSC. Além disso, pretende-se apresentar elementos de reflexão sobre os motivos das difamações direcionadas ao MUCF.
Parte 1: Da legitimidade das bases
Questionados politicamente por meio de uma oposição consolidada, o DCE reivindicou sua legitimidade pela via eleitoral: “fomos a gestão eleita pela maioria estudantil, logo, vocês hão de tolerar nossa política porque ela reflete o desejo majoritário das bases”. De fato, a chapa Canto Maior foi eleita pela maioria estudantil, baseado em um projeto político específico, e que enquanto gestão deve defendê-lo. Estranho e ilegítimo seria se não o fizessem. Por esse motivo, política não se faz com diálogo simplesmente, há sempre um ponto em que não se pode ceder. É necessário que a política seja assim: um lugar de disputas do inegociável. Portanto, eu particularmente não esperaria menos do que isso de uma gestão que coloca-se à esquerda: implementar o projeto político que defendeu durante as eleições. A democracia precisa que esse princípio seja sustentado para não converter-se em autoritarismo.
Entretanto, apesar da legitimidade da gestão, é igualmente legítimo que as bases 1) questionem essa política e 2) convoquem uma nova política. Esses dois momentos são fundamentais para o avanço da política. Ao longo da história são inúmeros os movimentos de esquerda que fizeram oposição como forma de convocar a própria esquerda – relembremos por exemplo a Carta dos Cordões Industriais ao presidente Salvador Allende (1973). Assistimos recentemente à rebelião dos equatorianos contra as medidas do FMI e atualmente à população chilena contra o Governo Piñera, movimentos massivos e radicais que não nasceram no interior de entidades ou aguardaram chamados à priori. Não podemos, é claro, equiparar o que representou o movimento UCF com esses outros movimentos, mas eles ilustram como o princípio de que as críticas e movimentos só podem nascer no interior das entidades sufocam possíveis radicalizações. Não à toa, Lênin, contra Trostski e Stalin, defendeu que os sindicatos mantivessem autonomia em relação ao Estado no socialismo: era preciso resguardar a autonomia de crítica aos trabalhadores para o avanço das próprias políticas de esquerda.
Se as críticas à gestão são tomadas como uma crítica à entidade em si, estamos fadados a cometer graves equívocos. Na raiz, esse argumento é sustentado sobre critérios absolutamente questionáveis, a saber, de que a única forma de fazer política por meio da entidade é a que está posta (política da entidade=entidade). Além de negar a história da entidade – que inclusive é contraditoriamente reivindicada pelo DCE -, condena nossa imaginação política à empiria, sufocando as possibilidades à esquerda para tal instrumento. Por isso, a legitimidade de uma entidade ou da política não se faz apenas com os votos, mas com disputas e críticas. Se a extrema direita ganha as próximas eleições, silenciaremos frente ao resultado das urnas? Eu sinceramente espero que não.
Uma entidade não pode ser instrumentalizada como se carregasse em si mesma o fardo das vitórias de nossa classe. Vejam, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) é o maior sindicato em número absoluto de filiados, mas também a maior traidora da história da classe trabalhadora. Não podemos tratar as críticas à CUT como uma crítica aos instrumentos de organização da classe trabalhadora. Pelo contrário, a CUT é um exemplo de como os sindicatos não devem ser. Logo, o DCE-UFSC ou qualquer outra entidade não são um instrumento que carregam em si a combatividade histórica do movimento estudantil, já que em última instância, tal radicalidade depende de sua expressão política, cuja legitimidade pode ser questionada pelas bases. Assim o fez o Movimento UFSC Contra o Future-se, nascido das bases e questionando aqueles que ousam dizer que os representam.
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Foto: Movimento UFSC Contra o Future-se