Foto: O Grito, de Edvard Munch (1893). Reprodução.
Texto publicado originalmente no UFSC à Esquerda em abril de 2017.
Allan Kenji Seki* – Redação UàE – 15/04/2017
Em 2000, a OMS publicou um documento orientando jornalistas sobre como noticiar os suicídios. Esse documento é intitulado “Prevenir o Suicídio: um guia para profissionais da mídia” (OMS, Genebra, 2000). Desde então, tornou-se senso comum que qualquer tratamento não eufemista para o suicídio seria responsável pelo “efeito Werther”.
O “efeito Werther” seria a imitação de uma cena suicida no interior de uma narrativa romantizada sobre esse tipo de morte.
A expressão foi cunhada por David Phillips em um artigo para a American Sociological Review, em 1974, intitulado “The influence os suggestion on suicide: substantive and theoretical implications of the Werther Effect”.
Esse artigo, de 15 páginas, descreve a elevação das taxas de suicídio em diversos países após a publicação de “Os sofrimentos do jovem Werther” (Goethe, 1774). Argumentando que essa obra romantizou a morte da personagem e ofereceu uma saída fácil e covarde.
O artigo é uma peça cômica de estatística, mas não bastasse isso, ignora que a juventude europeia está massacrada pela ausência de perspectivas.
Se, em 1974, houvesse Wikipédia, Phillips saberia, por exemplo, que a revolução francesa ocorre 15 anos depois da primeira publicação da obra de Goethe.
Em 1846, a obra de Goethe já estava publicada há 72 anos e a já existia uma versão censurada desde 1787. Marx, que tinha 28 anos, publicou um pequeno texto chamado “Sobre o suicídio”, no qual, através das palavras de Jacques Peuchet diz o seguinte:
“Tudo o que se disse contra o suicídio gira em torno do mesmo círculo de ideias. Contra ele são postos os desígnios da Providência, mas a própria existência do suicídio é um notório protesto contra esses desígnios ininteligíveis. Falam-nos de nossos deveres para com a sociedade, sem que, no entanto, nossos direitos em relação a essa sociedade sejam esclarecidos e efetivados, e termina-se por exaltar a façanha mil vezes maior de dominar a dor ao invés de sucumbir a ela, uma façanha tão lúgubre quanto a perspectiva que ela inaugura. Em poucas palavras, faz-se do suicídio um ato de covardia, um crime contra as leis, a sociedade e a honra. Como se explica que, apesar de tantos anátemas, o homem se mate? [..] O que dizer da indignidade de um estigma lançado a pessoas que não estão mais aqui para advogar suas causas? […] As medidas infantis e atrozes que foram inventadas conseguiram combater vitoriosamente as tentações do desespero? Que importam à criatura que deseja escapar do mundo as injúrias que o mundo promete a seu cadáver? Ela vê nisso apenas uma covardia a mais da parte dos vivos. Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens.” (Boitempo, 2006).
Jacques Peuchet não era revolucionário, muito menos socialista, mas trabalhando como diretor dos arquivos da polícia realizou um levantamento censitário na França e teceu duras críticas – ainda que românticas – à sociedade europeia.
Nós não temos censos confiáveis sobre o número de pessoas que se suicidam e o suicídio infantil é proibido de ser registrado como tal até mesmo nos atestados de óbitos, muito embora seja um sintoma dos mais duros sobre a irracionalidade de nosso modo de vida.
Por outro lado, não existe igualmente nenhum estudo substantivo sobre os efeitos da publicização do suicídio. Nós apenas ficamos proibidos de falar sobre isso. Talvez porque se nós soubéssemos quantos de nós adoece e morre em função das desgraças subjetivas inerentes ao capitalismo, a coisa ficaria feia.
Eu tenho a hipótese de que a ausência de debates sinceros sobre nossos pensamentos suicidas é uma das principais vias pelas quais eles são vividos subjetivamente como processos absolutamente individuais. “[…] o suicídio não é mais do que um entre os mil e um sintomas da luta social geral, sempre percebida em fatos recentes, da qual tantos combatentes se retiram porque estão cansados de serem contados entre as vítimas ou porque se insurgem contra a ideia de assumir um lugar honroso entre os carrascos.” (MARX, 2006, p. 29)
Nós achamos patético que uma fábrica chinesa instale grades nas janelas para evitar que seus funcionários se matem durante a jornada de trabalho, e enquanto isso, evitamos nos perguntar sobre quantas pessoas se suicidaram em nosso campus apenas no último ano.
Não é porque algo é o sintoma da doença de uma sociedade, que seja sinal de doença do indivíduo. Eu trabalho muito todos os dias, desde a hora em que acordo até quase o momento de dormir. Fico feliz com as pequenas conquistas. Mas desde as férias escolares da oitava série, eu nunca mais me senti feliz por uma semana inteira. Desde então, todos os dias há esse dilema sobre “ganhar a vida” e esse sentimento permanente de despossessão. Acho que eu não conheço nenhuma pessoa da minha idade que se sinta agarrada verdadeiramente à vida sequer por uma dúzia dias. Acho que está na hora de nós nos reunirmos no mesmo dia, na mesma hora, e quebrar tudo.
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