Renato Milis – Redação UàE – 17.04.2017
Na última semana o portal de notícias institucional da UFSC publicou a seguinte notícia: “Programa de empreendedorismo seleciona estudantes até quinta-feira” Tratava-se do programa Academic Working Capital do Instituto TIM (Instituto da mega-empresa de comunicações TIM) e da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) que propõe que estudantes, majoritariamente dos cursos de engenharia e computação, tornem seus trabalhos de conclusão de curso em produtos vendáveis, para que ao fim de suas graduações tornem-se empresários inovadores em TPP (Techological Product & Process – Produtos e Processos Tecnológicos).
No sítio do programa, um professor da Poli-USP apresenta em vídeo a iniciativa: “Você já pensou em transformar seu TCC em um produto? […] A ideia é apoiar você com recursos financeiros e com consultoria de negócios pra justamente fazer essa transição entre a sua ideia e um produto, e no final convidar vários investidores pra que eles possam te apoiar e transformar num produto que vai ser grande sucesso. Vamos lá, vamos fazer!”. A chamada é explícita, o programa visa financiar e acompanhar a elaboração de trabalhos de conclusão de curso para que possam se tornar mercadorias. O que também está evidente no edital de seleção do programa:
A.2.1 – O programa AcademicWorking Capital tem como objetivos:
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a) incentivar a criação de novas empresas inovadoras em TPP (TechnologicalProduct&Process) a partir do método pedagógico baseado no desenvolvimento de Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs) já estabelecido nas escolas de Engenharia e cursos de graduação nas áreas de Computação, Arquitetura, Design e outras;
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b) complementar a formação teórica e técnica do aluno por meio do apoio ao desenvolvimento prático e do desenvolvimento de competências empreendedoras;
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c) ampliar as oportunidades profissionais dos alunos no momento de início de carreira para além das carreiras acadêmica e corporativa;
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d) apoiar a construção de novas soluções em TPP que consigam estabelecer um equilíbrio entre as visões técnica e comercial (Trecho extraído da página 1 do edital do AWC).
Ou seja, oferecem um pacote completo – incentivo e financiamento para elaboração de um produto e a criação de uma nova empresa, capacitação empreendedora, ampliação das oportunidades profissionais, entre outros. Dos postulantes ao programa são selecionados 120 grupos (de 2 a 4 estudantes, com ao menos um nas vias de realização no TCC) que passam por uma comissão julgadora que avalia critérios como: histórico e atitude empreendedora dos estudantes; grau de inovação; oportunidade de mercado; custo-benefício da proposta, etc.
Aprovados os estudantes passam a ter os protótipos financiados pelo AWC e contam com acompanhamento por todo o processo, participação em workshops e tem ainda ao final seu produto exposto em uma feira para investidores. Uma feira. Vejam, não é preciso metaforizar e aludir para enfatizar a demonstração dos interesses privados que perpassam o programa. Não é preciso grande esforço de compreensão para vislumbrar que por todas as etapas, desde todos os ângulos este programa está comprometido com interesses e valores empresariais. Em nenhum momento escamoteia ao que veio, seu propósito é sempre direto – está no nome com o qual se apresenta, em seu proponente privado, em seu gran finale.
Ainda assim a singela notícia no portal da UFSC, que parece uma mera operação de copia e cola de um press release do programa, poderia passar desapercebida na linha de publicações do portal como mais um desses anúncios cotidianos de estímulo ao empreendedorismo na universidade. Na verdade, passa. Como passam tantos outros. E esta talvez seja a maior expressão da força dos interesses empresariais nas universidades e, mais grave, da mediocridade intelectual e política reinante nos campi.
Estes tantos projetos, programas, iniciativas, parcerias, calcados no empreendedorismo e na inovação propõe efetivamente, como está na lata no AWC, à subsunção da formação e da produção de conhecimento no interior das universidades ao mercado. E com isto opera a incorporação pelos universitários dos valores, da moral, da lógica própria do mundo dos negócios. Na prática torna pensar a formação em sua adequação as exigências mais atuais do mercado, de pensar os conhecimentos como produtos ou serviços que podem ser dispostos à venda, ao investimento, a valorização.
É isto que faz o AWC. Não é absurdo pensar que o trabalho de conclusão de curso de um estudante seja apenas um produto? Que seja tomado como algo a ser investido privadamente, algo que vá valorizar um conjunto de capitais, uma oportunidade de negócio? E do ponto de vista do próprio estudante, que sua elaboração, o conhecimento que produziu seja apenas um meio para que possa ele mesmo se tornar um empresário? E adicionemos um fator, na Universidade Pública**.
Não é de se estranhar tamanha naturalização de programas como esses no interior das instituições públicas de ensino superior? Acontece que é este projeto, o projeto dos empresários para a universidade, que está ganhando – e conta não apenas com apoio, mas com a ação ativa de amplos setores de estudantes, professores e TAEs. Na nossa universidade é isto que defende abertamente o reitor, uma universidade mais empreendedora.
E nesta conta ficam a deterioração da formação acadêmica, cada vez mais fragmentária e de teor meramente profissionalizante, ficam os esforços de gerações e gerações que lutaram pela Universidade Pública, para erguê-la e mantê-la como pública em seu sentido amplo de socializar cada vez mais os conhecimentos e de produzir conhecimento capaz de contribuir com a superação dos grandes dilemas da classe trabalhadora. Uma universidade comprometida teórica e politicamente com a vida das gentes, que disponha suas energias na construção de uma sociedade mais igualitária, uma sociedade sem classes. Uma universidade no socialismo.
Mas nem é preciso ser socialista para perceber o tamanho da perversidade. Pensemos em todos os esforços da humanidade para registrar, sistematizar, socializar, o conhecimento produzido em milênios de experiência da vida humana em sociedade. Para mantê-los vivos no decorrer das gerações…
Frente a tudo isto que pautemos os esforços de formação e de pesquisa no empreendedorismo, na mera inovação, ou que o que tenhamos, nós universitários, a oferecer sejam produtos, serviços, mercadorias é tão tacanho. É muito, muito pouco.
*O texto é de inteira responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do Jornal.
**Aqui estamos fazendo alusão ao conjunto de programas que tomam as políticas universitárias de pesquisa, extensão, graduação, enfim que estão presentes no cotidiano das universidades públicas. Especificamente o AWC não é exclusivo para instituições públicas, mas podemos constatar que incide majoritariamente sobre estas: em 2016, primeiro ano do programa, de 27 projetos aprovados apenas 3 tiveram origem em universidades privadas. Os aprovados em 2016 no programa podem ser vistos aqui.
Texto muito bom. Tem tempos que estamos colocando a Universidade como aparato pro Capital e todos se calam diante disso.
Me lembrou muito uma fala do Noam Chomsky: https://www.youtube.com/watch?v=Fh7U3Ip41Q0
Parabéns pelo texto.