[Editorial] Lá e de volta outra vez: por uma esquerda que não tema dizer seu nome

UàE –  02 de maio de 2016 – Editorial

É uma cena singular. O vice-presidente discute abertamente a formação de seu gabinete, tomando as capas dos jornais. É obsceno. A presidenta eleita sequer teve seu processo concluído na comissão especial do Senado. Não é necessário pudor, as classes dominantes encontram-se mais uma vez na história do povo brasileiro, diante dessas circunstâncias em que pode jogar abertamente.

É o resultado histórico do fracasso de um projeto que nasceu nos movimentos sociais e sindicatos e que fez um longo trajeto até se transformar no PT que podia chegar ao poder. O PT transformou-se na própria história de um fracasso do projeto popular-democrático. Um fracasso tão profundamente assentado em bases, objetivas e subjetivas, que mesmo diante dos sucessivos golpes realizados na pecha do “impedimento”, não teve a coragem de, em sequer um pronunciamento da presidenta, convocar a classe.

Esta é a verdade que demorará a cicatrizar. O Lulismo foi um momento histórico de consenso social em torno de um “neoliberalismo mais humano”, propiciado por um período de elevação no preço internacional dos produtos primários, assentado no saldo favorável da balança comercial da exportação de uma indústria que incorpora pouca tecnologia, mas que tornou possível transitar do caos infernal que marcava o fim do Governo FHC para uma década de paz entre as próprias frações burguesas e, também, entre estas e a classe trabalhadora. Acabou o dinheiro, acabou aquela “paz”.

Se o Brasil fosse um país e o Lulismo fosse um governo, reformas significativas teriam que se realizar precisamente quando o dinheiro acaba: a imposição de taxações às grandes fortunas – como meio de indenizar o país pelos malefícios do acúmulo de capitais; reforma tributária real, capaz de inverter o quadro atual em que os que vivem do trabalho arcam com quase toda a carga tributária nacional e sobretaxação das operações financeiras de capital; auditoria cidadã da dívida; recomposição estatal da propriedade sobre os setores estratégicos (portos, aeroportos, ferrovias, petróleo, mineração, sistema bancário público) e por aí vai.

Fazer dos fatos, história e desta, um sentido histórico para o PT; não pode significar de modo algum a defesa desse impedimento da presidenta Dilma. Esse impedimento é golpe!

Aliás, nas últimas semanas, fomos golpeados duramente várias vezes e tudo indica que não irão parar por aí. Nada mais vergonhoso para a história do país que cada um de seus deputados tenha tido, em rede nacional, seus 10 segundos. Parece que para muitos, somente aí, se deram conta de que somos todos os dias dirigidos por uma casta de imbecis convictos (em Deus na família e na propriedade).

O impedimento é uma farsa grotesca, cuja efetividade consiste precisamente em que ninguém pense muito sobre ele. Daí que os deputados tenham, como se estivessem naquele velho “Show da Xuxa”, falando sobre qualquer coisa, menos sobre o processo em si. O processo de impedimento, transitando pelo Congresso, é a forma como o golpe ganha uma cara constitucional e de idoneidade, técnica e jurídica. As acusações feitas à presidenta Dilma no Congresso são patéticas, as pedaladas fiscais e a suplementação do orçamento não são sequer objetos da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas da Lei orçamentária. Portanto, não pode haver crime de responsabilidade. Está mais do que claro, trata-se de usar qualquer argumento para tirar a presidenta eleita e substituí-la por um governo de coalisão entre PMDB e PSDB, trazendo ao governo um projeto (Ponte para o futuro) e quadros políticos que não foram eleitos pelo povo.

O que é ainda mais absurdo é que justamente aquele que querem colocar no lugar de Dilma (dessa vez!), o vice-presidente Michel Temer, assinou pelo menos 7 decretos de créditos suplementares como aqueles que são objetos do processo de impedimento da presidenta Dilma.

Ainda pior, como se não bastasse, o processo é orquestrado por alguém como Eduardo Cunha, um dos mais descarados réus a figurar na bancada da presidência da câmara e evidentemente disposto a fazer qualquer coisa para defender os interesses daqueles que lhe elegeram – como os planos de saúde, que tiveram dívidas anistiadas – e para salvar sua própria cabeça. Afinal, não é estranho que Cunha seja o presidente mais-que-perfeito daquela casta de imbecis de que falamos há pouco e o herói de uma classe inteira de imbecis liberais que andam pela Av. Paulista e por outros cantos mais.

Contudo, a farsa do impedimento não pode nos confundir ou levar a acreditar que há uma ruptura na democracia liberal burguesa. A efetividade do golpe reside também em que esta democracia sempre comportou processos violentamente autoritários. O avesso da democracia liberal não é a ditadura, mas um tipo radical de democracia exercida diretamente pelo povo.

A oposição entre democracia liberal e ditadura nos confunde e leva a crer que todo golpe seria necessariamente um golpe de Estado. Nosso problema é que o golpe faz parte da ordem democrática liberal e, justamente por isso, ele pode ser aceito, dentro do sistema de significações, pela maioria da população. Isso, sobretudo, em um país que nunca fez efetivamente uma elaboração da verdade e da memória de suas várias ditaduras militares.

A burguesia brasileira sempre teve por característica a predileção pelo regime de excepcionalidade e isso tem a ver, não só com uma opção autocrática, mas antes de tudo com o caráter marcadamente dependente do Brasil em sua inserção no mundo. O regime de excepcionalidade é o único capaz de produzir constantes sentimentos sociais de sacrifício e anseio pela ordem, pelo controle da inflação e um sentimento “anticomunista” – mesmo quando não há revolução comunista alguma no horizonte próximo. A excepcionalidade política é a única que pode sustentar a remuneração estrutural da classe trabalhadora abaixo daquilo que seria necessário para repor suas próprias condições de vida (superexploração da força de trabalho), sem que isso evoque em cada um e na classe um profundo anseio por emancipação política. A excepcionalidade política é o único regime que permite que a burguesia interna se associe com a burguesia internacional sem que isso ocasione uma verdadeira guerra entre as diferentes frações burguesas. Ou seja, ela é o regime que impede e sempre impedirá o Brasil de ser um país de verdade, com um governo de verdade e um povo de verdade.

É por tudo isso que está mais que claro: a saída é pela esquerda. Mas não poderá ser jamais por qualquer esquerda. Somente uma esquerda que se qualifique ao mesmo tempo em que se massifique, poderá cumprir um papel determinante na formação de um verdadeiro projeto de país e de uma vida, efetivamente, socializada. Essa qualificação será, necessariamente, no sentido de demonstrar o caráter preponderante da dependência na vida cultural, política e econômica e, também, na direção de um senso renovado de esquerda – ou seja, de ‘uma esquerda que não tema dizer seu nome’!

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