Eletrobrás em xeque (II): A reforma no setor elétrico brasileiro

Júlia Vendrami – Redação UàE – 01/03/2022 Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.

Eletricitários, movimentos sociais e partidos de esquerda têm enfrentado diuturnamente o projeto de privatização da Eletrobrás[1], maior empresa de energia elétrica da América Latina. Ao mesmo tempo, a pauta não parece ter grande apelo para a sociedade como um todo, que pouco se mobiliza para garantir que a estatal continue pública. A privatização da Eletrobrás foi anunciada na gestão do ex-presidente Michel Temer e já está em tramitação desde 2018. Ela adquiriu mais concretude com a medida provisória 1.031/2021, editada por Bolsonaro e Paulo Guedes e que posteriormente virou a lei Lei 14.182/21, estabelecendo a forma de privatização da empresa, além de vários outros pontos.

A primeira etapa da privatização da Eletrobrás já foi aprovada no Tribunal de Contas da União, apesar das análises da unidade técnica do TCU encontrarem diversas falhas no processo de modelagem econômico-financeira da privatização da Eletrobrás, que darão um prejuízo aos cofres públicos de mais de R$ 16,2 bilhões. Depois disso, outra “falha metodológica” escancarou a subvalorização que tem sido feita para privatização da Eletrobrás, conforme foi noticiado pelo jornal Universidade à Esquerda.

Para compreender o que a privatização da Eletrobrás significa para o Brasil, pretendo apresentar nessa série de textos uma parte dos estudos que tenho realizado sobre o setor elétrico brasileiro. O estudo foi realizado principalmente a partir da disciplina de Análise Política da Questão Energética e Ambiental, do Programa de Pós-Graduação em Energia do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, que é ministrada pelo excelente professor Célio Bermann. Além disso, as elaborações do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Energia Elétrica de Florianópolis e Região (Sinergia-SC) contribuíram para as análises realizadas, bem como o estudo sobre Teoria Marxista de Dependência promovido pela Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora Vânia Bambirra (EFoP).

A proposta é também que se inicie um diálogo e debate sobre o tema, por isso fico bastante contente com textos de resposta e comentários, que podem ser enviados para o Universidade à Esquerda. Neste texto serão apresentados os principais pontos da reforma realizada no setor elétrico brasileiro nos anos 90.

Reforma no setor elétrico brasileiro

Em 1996, o Ministério de Minas e Energia e a Eletrobrás contrataram um consórcio para elaborar um projeto de reestruturação do setor elétrico brasileiro, por cerca de 7 milhões de dólares. O consórcio era liderado pela empresa Coopers & Lybrand, e contava com a participação dos escritórios de advocacia Lathan & Watkins (multinacional fundado nos Estados Unidos) e Ulhôa Canto (brasileiro), além das empresas brasileiras de engenharia Engevix e Main Engenharia. Nenhuma das duas empresas de engenharia existe mais, a Engevix foi à falência depois que um dos sócios foi preso por corrupção, então os outros sócios fundaram a Nova Engevix, que mais tarde se transformou no Grupo Nova.

Uma questão interessante é a temporalidade da reforma. Os estudos para a reestruturação do setor elétrico foram elaborados entre 1996 e 1998. Porém, já em 1995 são promulgadas as leis 8.987/1995 e 9.074/1995 que estabelecem as bases do então novo modelo do setor elétrico, eliminando as restrições existentes para a participação da iniciativa privada no setor elétrico nacional. Em 1996 a lei nº 9.427/1996 cria a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Além das leis terem sido promulgadas antes dos estudos serem feitos, também houve privatizações antes de haver uma agência reguladora, como é possível observar pela privatização das empresas Escelsa e Light que aconteceram em julho de 1995 e maio de 1996, respectivamente.

Não existem ilusões de que se “os estudos” tivessem sido realizados anteriormente à promulgação das leis, isso teria algum efeito benéfico. Porém as privatizações antes da existência de uma agência reguladora serviram de justificativa para a redução drástica do preço de venda das empresas, preço abaixo do valor, já que havia uma insegurança jurídica que seria enfrentada pelos compradores.

A reforma tinha como objetivo propiciar a transferência de responsabilidade sobre operação e investimento no setor elétrico para o setor privado. Até aquele momento o setor público era responsável por isso, principalmente através da Eletrobrás, e existiam restrições para a participação da iniciativa privada no setor elétrico nacional, que deveria seguir o planejamento de expansão estabelecido pela Eletrobrás.

Por exemplo, o Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos (GCPS), sob a coordenação geral da Eletrobrás, possuía a atribuição do planejamento da expansão dos sistemas de geração, transmissão e distribuição da energia elétrica em todo o país. Anualmente, o grupo atualizava os programas de expansão do setor referenciado nas projeções de demanda de cada região, e ainda realizava avaliações técnicas e econômicas para os projetos propostos para suprir a demanda estimada. O planejamento, nesse período, era determinativo, isto é, as empresas deviam executar a expansão planejada. Hoje as coisas não funcionam mais da mesma forma e cada empresa tem mais autonomia para explorar as riquezas naturais do Brasil visando o lucro e sem maior consideração com os impactos socioeconômicos e ambientais que a construção de uma usina hidrelétrica ou uma linha de transmissão, por exemplo, poderá causar.

Conforme o sumário executivo do projeto de reforma do setor elétrico, para assegurar novos investimentos por parte do setor privado, seria necessário organizar um “gerenciamento de riscos” e os agentes públicos deveriam ser responsáveis por regular o mercado e estimular o desenvolvimento da concorrência.

Uma das características principais da reforma é a criação do Mercado Atacado de Energia (MAE), no qual grandes geradores e consumidores de energia podem negociar compra e venda de energia por meio de contratos bilaterais com duração de alguns anos, que não passam pela regulamentação que o restante dos consumidores é submetido. Faziam parte do MAE obrigatoriamente os geradores com capacidade instalada acima de 50MW e todas as empresas de distribuição/comercialização com vendas anuais superiores a 100GWh. O objetivo desta proposta seria de proteger as partes contra a exposição ao risco, representado pela volatilidade do preço de energia. Desta forma, somente os pequenos consumidores (chamado mercado cativo) ficariam sujeitos a esta volatilidade, que acontece, entre outros motivos, pelo menor volume de chuvas em determinados anos.

Como forma de facilitar a privatização, a reforma propôs e concretizou a segregação da cadeia da energia, antes uma única empresa poderia realizar a geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia. A divisão se deu entre geração, que é considerada uma atividade industrial, ainda que empregue um bem público que são os recursos hídricos; a transmissão, que é o transporte de energia a um nível de tensão de 230kV ou superior; a distribuição, que é o transporte de energia a uma tensão inferior a 230kV, normalmente dentro das cidades; e a comercialização, que se refere à compra de energia e revenda aos consumidores finais, incluindo faturamento, cobrança e gerenciamento de reclamações. A distribuição e comercialização poderiam ser realizadas por uma única empresa, como ainda acontece até hoje, mas deveria haver uma separação contábil, de forma a possibilitar diferentes arranjos, como por exemplo que uma empresa de distribuição/comercialização que atua em uma área possa usar a malha de distribuição de outra, pagando alguma taxa por isso.

A separação em quatro atividades possibilitou que as partes mais lucrativas fossem privatizadas, a geração e a comercialização. Já a transmissão foi considerada um monopólio natural, por isso deveria ser administrada por um agente público que regulasse o sistema. Hoje, o mercado já encontrou mecanismos que possibilitaram que as redes de transmissão também fossem privatizadas e 85% das linhas já são operadas por empresas privadas. Para funcionar, foi necessária uma política de livre acesso de todos os agentes do mercado ao sistema de transmissão, a partir do pagamento de taxas pré-estipuladas.

A reestruturação industrial estaria sendo realizada visando o aumento da competição no setor e consequente aumento da produtividade, segundo o pensamento que baseou a reforma.  Apesar disso, o sistema elétrico nacional continua fisicamente sendo operado nos moldes do período estatal. Não existe autonomia das empresas nas decisões de produção, somente nos investimentos. Dessa forma, a operação centralizada foi mantida, por meio do Operador Nacional do Sistema, e quase todos os procedimentos elaborados no período estatal permanecem, visando conservar a elevada produtividade do sistema interligado que decorre da operação cooperativa (e não competitiva) entre as fontes hidráulicas e térmicas em todo o território nacional.

Também de forma a favorecer a privatização, foi realizada a desverticalização da Eletrobrás. A desverticalização trata-se um desmonte da empresa em várias partes de acordo com as diferentes funções que eram exercidas por ela. A partir  do levantamento dessas funções, a divisão se deu da seguinte forma: papel de banco do setor elétrico (empréstimos e financiamentos) foi assumido pelo BNDES; a operação do sistema seria feita por um órgão independente a ser criado, que hoje é o Operador Nacional do Sistema; o papel de prestação de serviços ao setor elétrico e o papel de planejamento indicativo caberiam ao Instituto para o Desenvolvimento do Setor Elétrico, que não foi criado com esse nome, somente anos depois foi criada a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) com essas funções; caberia à Eletrobrás os investimentos diretos em programas de governo e o papel de holding federal.

Diversas usinas lucrativas foram privatizadas, como as ligadas à Gerasul (derivada da Eletrosul) que foi comprada pela Tractebel, atual Engie, em 1998 e incluía os seguintes parques geradores: UHE Salto de Osório (PR, 1.078 MW), UHE Salto Santiago (PR, 1.420 MW), UHE Passo Fundo (RS, 226 MW), UHE Itá (RS/SC, 800 MW), UTE Charqueadas (RS, 72 MW), UTE Alegrete (RS, 66 MW), Willian Arjona (MS, 80 MW) e Complexo Termelétrico Jorge Lacerda (SC, 857 MW).

Ao mesmo tempo, o projeto de reestruturação previa que a Eletrobrás investiria capital próprio em novos projetos que fossem importantes sob o ponto de vista político-social, para os quais seria pouco provável que o setor privado viesse a se interessar isoladamente, deixando para a empresa pública os pontos menos lucrativos do sistema enquanto os parques já consolidados e lucrativos foram transferidos à iniciativa privada.

Essa forma de privatizar partes mais lucrativas e deixar à cargo do Estado as partes deficitárias é comum em diversos processos de privatização, como a privatização dos aeroportos e a privatização dos sistemas de saneamento. Esse formato de privatização quebra o financiamento cruzado que existia anteriormente e tende a diminuir a qualidade do serviço de uma maneira geral ou aumentar muito os preços para a população.

Dentro do projeto de reforma proposto pela empresa Coopers & Lybrand, é ressaltado constantemente que o risco para os investidores privados deveria ser minimizado. Alguns dos pontos nos quais isso é observado são descritos a seguir:

  • Dentre as regras de negociação de intercâmbio de energia seria previsto um “Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), para proteger geradores hidrelétricos individuais do risco hidrológico”.
  • Os contratos de energia nuclear devem ser “alocados somente no mercado cativo, onde os custos adicionais podem ser repassados”.
  • “Como medida adicional para incentivar o desenvolvimento de projetos hidrelétricos, recomendamos que o governo possa atuar como comprador de última instância no que se refere a projetos hidrelétricos considerados de importância nacional.  Recomendamos que este mecanismo só seja utilizado quando não existir um número suficiente de empresas de distribuição/comercialização dispostas a celebrar contratos de longo prazo para a execução do projeto.”
  • Quanto às funções do BNDES, este “deve compartilhar os riscos com o setor privado em um grande número de áreas”;
  • “Os elementos públicos de projetos (como por exemplo necessidades de irrigação e implicação de certos riscos, como um maior número de pessoas a serem reassentadas do que originalmente previsto), poderão ser absorvidos pelo orçamento federal.”.

Desta forma, apesar de ser propagandeado que o objetivo da reforma é reduzir a função do Estado à de regulação e o incentivo à concorrência, o documento explicita que precisa do investimento do Estado para: (1) Financiar o custo de certos investimentos sociais e de interesse público, como investimentos em transmissão, esforços de eletrificação rural e certos elementos de novos esquemas hidrelétricos. (2) Complementar ou financiar o setor privado através de empréstimos de longo prazo, aportes de capital próprio e através da provisão de certas garantias de compartilhamento de riscos que tornem possível a mobilização de recursos privados.

Mesmo com todas as medidas de redução de risco para os agentes privados, são colocadas as taxas de retorno desejáveis em cada atividade:

  • Atividade de geração: retorno de 12% a 15%;
  • Atividade de transmissão: retorno de 10% a 12%;
  • Atividade de distribuição: retorno de 11% a 13%.

Esses níveis de retorno seriam cerca de 4% mais altos do que nos EUA e Reino Unido para as mesmas atividades, o que supostamente refletiria os riscos adicionais inerentes ao investimento no Brasil.

Fazendo uma análise retrospectiva, cabe ressaltar alguns aspectos foram negligenciados ou pouco discutidos na reforma do setor elétrico e que nos anos seguintes receberiam muito mais atenção. São eles a questão do licenciamento ambiental e da eficiência energética.

Licenciamento ambiental

Quanto ao licenciamento ambiental, o sumário executivo da reforma somente explicita que o “licenciamento ambiental deverá sofrer ajustes para atender às necessidades do setor privado, principalmente fazendo com que o enchimento de reservatórios [de barragens de usinas hidrelétricas] deixe de depender da emissão de licença operacional (LO) após realizado o investimento.” Neste ponto cabe lembrar de um caso no qual este procedimento foi colocado em prática.

A situação ocorrida na construção da hidrelétrica de Barra Grande, em Santa Catarina, foi documentada no livro e documentário Barragrande: a hidrelétrica que não viu a floresta. O consórcio construtor da barragem recebeu a licença prévia (LP) em 1999 e licença de instalação (LI) em 2001, mas as licenças foram obtidas com base em um estudo de impacto ambiental com graves lacunas e omissões. A barragem foi construída em um dos locais mais preservados e biologicamente ricos de mata atlântica de araucária primária, um corredor ecológico com alta diversidade genética. Porém, o estudo omitiu a existência dessa mata e de espécies ameaçadas de extinção. Somente quando o IBAMA exigiu um inventário florestal, em 2003, que a situação veio à público. Porém, a barragem de 190 m de altura já estava construída e após um termo de ajustamento de conduta que previu a plantação de algumas araucárias, o lago de mais de 100 km de extensão foi enchido, pois “o investimento já havia sido feito”.

Eficiência energética

Em relação à eficiência energética, o documento é bastante suscinto. Aparentemente essa se tornou uma preocupação maior somente após o racionamento de energia de 2001, que motivou a promulgação da Lei nº 10.295/2001 instituindo a Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia. De fato, o relatório do Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro apresenta a crença de que a “definição dos preços de geração pelo mercado proporcionará fortes incentivos aos consumidores para investimento em eficiência energética de maneira a reduzir o consumo”. Um ponto de vista que minimiza a necessidade de políticas específicas para aumentar a eficiência do setor, coloca a responsabilidade somente no consumidor de energia elétrica e ainda deixa implícito que a definição de preços pelo mercado inevitavelmente aumentaria as tarifas para os consumidores, que procurariam reduzir o consumo de energia.

De fato, as tarifas de energia têm aumentado muito acima da inflação desde os anos 90 e tem onerado especificamente os consumidores do mercado cativo, que não negociam energia no “mercado livre”. Um dos mecanismos para isso são as bandeiras tarifárias. No cenário que temos, com a provável privatização completa da Eletrobrás, já são previstos aumentos ainda maiores nas tarifas de energia e esse é um dos principais motivos que mobilizam a sociedade a ser contrária à privatização. No próximo texto discutiremos de que forma o planejamento do setor elétrico interfere nas diferentes tarifas aplicadas aos consumidores livre e cativos.


[1] Ciente de que a Eletrobrás passou por um “rebranding” em 2010 no qual o nome oficial da companhia passou a ser Eletrobras (sem acento), optei por manter o acento agudo nesses textos. A mudança no nome faz parte do movimento de internacionalização da empresa, já que na língua inglesa não se usa acento, e segue o exemplo da mudança que foi feita na Petrobrás nos anos 90.

Referências

  • COOPERS & LYBRAND. Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro. Volume I: Sumário Executivo. Rio de Janeiro: SEN/Eletrobrás, dezembro de 1997, 48p.
  • GONÇALVES JÚNIOR, Dorival. Reformas na indústria elétrica brasileira: A disputa pelas ‘fontes’ e o controle dos excedentes. 2007. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
  • PROCHNOW, Miriam. Barra Grande: a hidrelétrica que não viu a floresta. APREMAVI, 2005.
  • CERVINSKI, G. C. A indústria de eletricidade brasileira e as tarifas de energia elétrica. In: Stefano, Daniela; Mendonça, Maria Luisa. (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2016. 1ªed.São Paulo: Outras Expressões, 2016, v. 1, p. 57-66.

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