Daniella Pichetti – Publicado originalmente em Universidade à Esquerda – 27/10/2022
Após cinco anos de investigações, no dia 18 de outubro, o médico ginecologista e professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Edison Natal Fedrizzi, teve seu registro cassado e foi afastado da docência na instituição. O médico foi condenado em segunda instância por violação sexual contra pacientes e deverá cumprir pena de 8 anos, 11 meses e 10 dias de reclusão. Edison ministrava aulas para estudantes da 5ª à 7ª fase no curso de Medicina, correspondente às disciplinas práticas de ginecologia e obstetrícia. O Jornal entrevistou uma estudante que conta com mais detalhes como foi a movimentação no curso.
A polícia começou as investigações em 2017, após denúncias de abuso sexual em consultas de rotina feitas por pacientes do médico. Edison Fedrizzi negava as acusações e seguia dando aulas na graduação.
Conforme matéria publicada no G1, em dezembro de 2017 o consultório do médico foi investigado. Nesse ano, cinco pacientes o denunciaram por abuso sexual realizado durante os atendimentos clínicos. Outras mulheres prestaram queixa de abusos vividos entre 2007 e 2008.
Em nota, no dia 20 de outubro de 2022 o Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC) tornou pública a aplicação da penalidade de cassação do exercício profissional do médico Edison Natal Fedrizzi (CRM-SC 4878) por infração aos artigos 23, 24, 38 e 40 do Código de Ética Médica de 2018 (resolução do CFM nº 2.217/18), que prescrevem que é vedado ao médico:
Art. 23 Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá- lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Parágrafo único. O médico deve ter para com seus colegas respeito, consideração e solidariedade.
Art. 24 Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.
Art. 38 Desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados profissionais.
Art. 40 Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza.
“Foi absoluto dessa vez, ele não deu nenhuma aula”: estudante da graduação de Medicina relata sobre a mobilização estudantil no curso
Os estudantes do curso de Medicina da UFSC realizaram se organizaram em ações de boicote às aulas do ginecologista desde o início do segundo semestre letivo. As manifestações acontecem, entretanto, desde 2017. Uma estudante da graduação do curso de Medicina declarou ao Jornal como foram esses processos e como uma das turmas se surpreendeu ao descobrir que mesmo após ser condenado, o professor Edison Fedrizzi continuaria ministrando aulas:
“Então tudo começa em 2019 quando sai uma matéria no G1 em que constava as denúncias das vítimas contra ele. Então foi algo assim surpreendente, meio que não seria o primeiro professor que as pessoas pensariam para uma algo do tipo até porque ele já era responsável justamente por das aulas práticas de exames ginecológicos assim. Ensinava todos os alunos da graduação, exatamente essa parte do conteúdo e a matéria [do jornal] trazia de forma muito clara os relatos das vítimas, como tinha acontecido situações de abuso nas consultas e se caracterizou judicialmente como os relação sexual mediante fraude porque ele fazia uso do momento do exame ginecológico para abusar das vítimas.
Então ele fazia, tratava assim como se fosse simplesmente mais uma parte do exame só que tava fazendo algo que não fazia parte do exame, era um abuso e foi muito complicado tanto para mim quanto para muitas muitas colegas que eu conversei voltar ao ambiente da Medicina depois de ter lido tudo que a gente leu assim, de se colocar porque apesar da gente estudar para estar nesse papel de médicas nós sempre seremos também pacientes né. E como mulheres sempre seremos pacientes ginecológicas ou mesmo… Enquanto pessoas com vagina. Sempre seremos pacientes ginecológicas.
E a partir de então começou a mobilização na medicina para tentar alguma resposta em relação a isso. À princípio a adesão era grande entre as mulheres mas não era absoluta. Era importante também entre os homens, mas estava longe de ser absoluta. E o que fez tornar tudo bastante difícil, assim, doloroso foi ver vários professores com quem a gente pensava que poderia contar se isentando. Na verdade, hoje a gente sabe que nenhum professor se posicionou de fato de forma contrária a ele. Então aumentava ainda mais a nossa sensação de vulnerabilidade.
Eu nunca tinha tido aula com ele e desde que o escândalo saiu foi bem no início de um semestre em que eu começaria a ter aulas com ele e foi muito espontâneo por parte das meninas da minha sala, a gente organizou o boicote. A gente combinou e foi muito unânime de simplesmente não aparecermos na aula. E nenhuma menina foi. Foram poucos meninos assim e foi isso. Isso se repetiu ao longo das turmas. E aí começou a ficar uma situação estranha, houve cobrança.
Teve o SACI, que é o momento em que se discute o currículo do curso, né? É o seminário de avaliação do currículo integrado, e no SACI ele foi uma das pautas assim. Só que todos os professores só se esquivaram de muitas formas, coordenação não quis assumir, departamento também não, mas começou a dar uma repercussão, o caso. Então ele meio que se “auto afastou” para fazer um doutorado supostamente, mas basicamente quis abafar o caso. Acontece que foi esse ano ele foi condenado em segunda instância – veio a pandemia no meio de tudo isso né? – Então ninguém teve aula, ele não pegou a aula online por causa do afastamento e esse ano voltou as atividades presenciais, e no presente semestre, do nada, o nome dele apareceu nos cronogramas, porque nós recebemos no início do semestre o cronograma de todas as semanas porque nossas aulas variam semanalmente as matérias e tudo mais. Então o nome dele aparecia em várias aulas porque também cada matéria é dada por vários professores. E a princípio aquilo soou de forma estranha assim, se questionou se tinha sido só um erro ou algo do tipo.
Não houve nenhum tipo de resposta, nenhum tipo de aviso de que ele voltaria. Simplesmente, do nada, uma turma teria aula com ele no dia seguinte. E era uma situação bem diferente, porque ele já tinha sido de fato condenado. Lá em 2019, quando a gente teve as primeiras mobilizações, ele só tinha sido acusado. Então todo mundo usava isso como justificativa, que a gente não poderia condenar ele, ‘todo mundo é inocente até que se prove o contrário’.
Mas agora, nesse ano de 2022, a situação já era bastante diferente. Ele já tinha sido condenado não só uma, mas duas vezes. Isso facilitou também com que a mobilização dos alunos fosse muito grande. Eu já estava no internato, mas consegui acompanhar de forma muito clara o quanto as turmas se mobilizaram, e foi algo absoluto dessa vez, ele não deu nenhuma aula. Nenhuma das vezes que ele foi dar aula tinha um estudante sequer. Uma das cenas mais impactante foi uma das turmas que se organizou para chegar mais cedo no hospital, virou todas as cadeiras de costas para o quadro e foi embora. Aí quando ele chegou estava essa cena impactante na sala. E ele agiu como todas as vezes que foi boicotado, ele ficou os 15 minutos esperando, ninguém apareceu e ele foi embora. E foi isso.
Existe muita revolta, muita vontade. Não são só os estudantes politizados que querem respostas, que querem atitudes, que querem parar de ter aula com ele, a gente perder conteúdo por ter que faltar a aula dele, ter que estudar por conta. Estudar por conta…Perder aprendizado sobre justamente saúde da mulher por conta desse professor na grade.
Tudo isso só pensando na nossa formação, sem pensar toda a vulnerabilidade que todas as mulheres se expõem no curso, ao pensarem em estar próximas de um abusador. A ficar numa situação em que existe uma clara diferença de poder, e quem está no topo da hierarquia no ambiente hospitalar e na sala de aula é o professor e ele é um abusador. É muito grave. Ainda mais que ali no no nosso curso e como em todos os ambientes nós somos mulheres que já passaram por situações de abuso, situações críticas em suas vidas, cada uma tem seus traumas. Mas também nenhum homem quer ter aula com um abusador, nenhum homem quer ter aula de exame ginecológico com um homem que usa dele para abusar das suas pacientes naquele momento de vulnerabilidade”.
“O departamento fez chacota da carta acadêmica”: negligência do curso de Medicina
Recentemente, o Centro Acadêmico Livre de Medicina elaborarou uma carta, escrita sob demanda dos estudantes, que contém exige a saída imediata do professor do curso e também contém relatos de mulheres vítimas de violência sexual. A carta foi endereçada ao Departamento e à Coordenação do curso, que “fizeram chacota” e permaneceram isentos:
‘“A Coordenação totalmente se isentou, o departamento fez chacota da carta acadêmica que o Centro Acadêmico, sob demanda dos estudantes, escreveu e levou ao Departamento e à Coordenação, não existe nenhuma resposta dentro do curso. Os professores não se posicionam a favor dos alunos, então é uma situação bastante delicada. Mas existe uma vontade muito grande de apontar como fere os preceitos morais e éticos de cada um ter aula com alguém que foi condenado, teve tais atitudes com pacientes, tanto como pessoa e como médico. Não é com esse profissional que a gente quer aprender algo do tipo.”
O Jornal Universidade à Esquerda se solidariza com as vítimas e estudantes e continuará atento aos desdobramentos do caso.