[Entrevista] O saneamento não pode ter sua prestação pautada pela lógica do lucro

Imagem: Ilustração UàE, a partir de imagens do Observatório das Metrópoles, Uol e TV ADUFRJ.

Júlia Vendrami – Redação UàE – 22/03/2021

Em 22 de março comemora-se o Dia Mundial da Água. A disputa pela água é a origem de diversos conflitos, como em determinadas áreas do nordeste, onde se diz que o problema não é a seca, mas a cerca. Hoje, decidimos debater a situação do Rio de Janeiro, que se encontra em uma crise hídrica. Dentro do novo marco legal do saneamento, a solução proposta pelo governo do estado é um leilão para privatização dos serviços de água e esgoto no estado.

Para compreender melhor essa situação, o jornal Universidade à Esquerda entrevistou Ana Lúcia Nogueira de Paiva Britto. Ana Lúcia Britto é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também é coordenadora do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, grupo de pesquisa sob a coordenação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano IPPUR-UFRJ.

Universidade à Esquerda: A Lei 14.026, novo marco legal do saneamento básico, foi aprovado no Senado Federal em junho de 2020, em plena pandemia. A legislação favorece que empresas privadas assumam serviços abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais.

O senador Tasso Jereissati (PSDB), relator do projeto, atua pela privatização da água em diferentes níveis há muitos anos, inclusive por motivação pessoal. O Grupo Jereissati, comanda a Calila Participações, única acionista brasileira da Solar, uma das 20 maiores fabricantes de Coca-Cola do mundo. O projeto foi votado às pressas e envolveu grande articulação entre governo, senadores e deputados. O presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) chegou a afirmar que o projeto era prioridade.

Quais problemas estão presentes na legislação aprovada como novo marco legal do saneamento básico?

Ana Lúcia Britto: Um primeiro problema é a falta de debate público, considerando que nós vivemos em uma democracia e que a participação popular na formulação de políticas públicas é uma diretriz da Constituição Federal. Esse tipo de mudança na Lei de saneamento vigente (11.445 de 2007) não poderia ser feita em um contexto de pandemia que dificulta enormemente o debate e manifestação das opiniões contrárias. A Lei contempla evidentemente o projeto neoliberal do governo de favorecer o setor privado em detrimento do setor público, que vem sendo atacado por diferentes projetos de privatização, como o da Eletrobras e dos Correios.

Observando o contexto do abastecimento de água e do esgotamento sanitário, hoje a maioria dos municípios tem seus serviços prestados pelas companhias estaduais de saneamento. Umas são bastante eficientes, outras apresentam problemas graves, não conseguindo prestar serviços eficientes à população. Em uma lógica de serviço público, o governo federal deveria apoiar a reestruturação das últimas, garantindo e fortalecendo a prestação pública.

Por que a prestação pública é a escolha mais acertada para o setor? Uma primeira questão é a essencialidade do acesso à água. Ninguém pode viver sem água. O contexto da pandemia evidenciou essa essencialidade assim como a desigualdade e a exclusão de uma parte significativa dos brasileiros que não tem acesso à água com continuidade e qualidade. Além de ser um serviço essencial, o abastecimento de água é prestado em regime de monopólio, só pode existir uma rede e um operador, ao contrário da telefonia, por exemplo. O usuário do serviço é, de uma certa forma, refém do prestador. Os contratos de prestação de serviços, seja com operador público, seja com operador privado, são longos, em média 30 anos. Não existe, portanto, como alardeia o projeto neoliberal, e como prega o novo marco legal do setor, a Lei 14.026 uma real concorrência. Ela ocorre apenas no processo de licitação do serviço. Uma ruptura de contrato é muito complexa e dificilmente ocorre.

No caso de Paris, por exemplo, onde o governo municipal socialista, optou pela prestação pública, constituindo uma empresa pública municipal, foi decidido que seria melhor aguardar o fim do contrato com os dois grandes operadores franceses Veolia e Suez. Pode-se pensar como isso seria difícil no caso do Brasil, com municípios com baixa capacidade financeira e institucional; seria muito difícil fazer face às grandes empresas privadas que operam hoje no Brasil, como a BRK, filial do grupo financeiro canadense Brookfield. O município passa a ser também refém do prestador.

Um outro aspecto é que um serviço essencial, com impactos evidentes na saúde pública e na qualidade ambiental, não pode ter sua prestação pautada pela lógica do lucro, sobretudo em uma país tão desigual como o Brasil, onde o déficit em saneamento está nas populações mais pobres, moradoras de favelas, das periferias das cidades maiores e das metrópoles, e a população rural também mais pobre, sobretudo no Norte e Nordeste.

Para facilitar as concessões privadas a lei nova traz elementos de desestruturação dos prestadores públicos. Um exemplo claro é a privatização realizada em Alagoas, seguindo modelagem do BNDES, já no contexto da mudança no marco legal. O estado foi dividido em três blocos, sendo que o bloco licitado abrangeu a concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário nas áreas urbanas de treze municípios da Região Metropolitana de Maceió. A análise de Alex Aguiar, disponível no website do ONDAS,[1] mostra como o processo fragiliza enormemente a companhia pública, CASAL, e a população mais pobre por ela atendida. Os 66 municípios que permanecem operados pela CASAL (até que sejam realizadas as licitações dos dois outros blocos do estado, que ainda não têm data prevista) abrangem 53,8% da população atualmente atendida pela empresa; 38,4% da receita atual da Companhia; 47,8% da sua despesa total com serviços; e apenas 4,7% do resultado operacional da CASAL. Os municípios remanescentes têm muito menor atratividade que aqueles já licitados no bloco da região metropolitana, agora operada pela BRK. Até que sejam realizadas as licitações, continuarão sendo operados por uma CASAL destituída de mais de 95% do seu resultado operacional, sem condições de realizar investimentos em seus sistemas em territórios onde o índice de acesso é baixo, assim como o rendimento da população. E o governo trata esse modelo como um sucesso.

O argumento da  maior eficiência do setor privado também não é verdadeiro. Existem empresas privadas que são extremamente ineficientes, como a que presta serviços em Manaus e atende um percentual baixíssimo de moradores com coleta de esgoto; em vários municípios do Mato Grosso, cujos serviços são prestados por empresas privadas, o atendimento também é precário. Como mostra estudo da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE) de 2019, as tarifas mais caras do Brasil são cobradas pela Prolagos, empresa privada que atende cinco municípios da Região dos Lagos, no Rio de Janeiro.

Ainda assim, em janeiro de 2021 a empresa entrou com uma liminar judicial contra a deliberação do Governo estadual de suspender os reajustes de tarifas de saneamento durante a pandemia. A Prolagos obteve ganho de causa, sendo autorizado um aumento de 13,98%, previsto no contrato.

A Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6411, contra dispositivos da Lei estadual 17.933/2020 de Santa Catarina que proibiram o corte dos serviços de água e esgoto até 31/12/2020, em razão da pandemia da Covid-19. Essa é a lógica da prestação privada.

Universidade à Esquerda: O primeiro leilão de saneamento de 2021 será do estado do Rio de Janeiro, dividido em quatro blocos que atualmente são atendidos pela Cedae (Companhia Estadual de Água e Esgoto). O leilão está marcado para dia 30 de abril.

Na sua opinião, a partir do leilão, qual é o cenário provável para o futuro do estado do Rio de Janeiro? Qual é a diferença entre o leilão ser vencido por uma empresa pública ou privada?

Ana Lúcia Britto: Para pensar o futuro é preciso refletir sobre o presente e sobre os princípios que devem orientar a prestação dos serviços. No que diz respeito a estes princípios eu destaco o Direito Humano à Água e ao Esgotamento estabelecido pela ONU em 2010. Todos, sem discriminação, devem ter acesso à água para uso pessoal e doméstico disponível, segura, aceitável e acessível economicamente.

Quanto ao presente é preciso o saber quem são os sem acesso aos serviços no Rio de Janeiro, o que é evidenciado em planos e pesquisas: populações pobres de periferias da Região Metropolitana e de cidades médias, moradores de favelas e de outros tipos de assentamentos informais e a população rural do interior do estado. Vivencia-se hoje um contexto econômico que é marcado por uma tendência de aumento da pobreza e, consequentemente, de diminuição da capacidade de pagamento de tarifas pelos usuários. Ou seja, existe uma tendência à ampliação da inadimplência, com cada vez mais usuários sem capacidade de pagar as tarifas cobradas, das pressões sociais para a generalização dos subsídios para as populações em situação de pobreza, por meio de tarifas sociais, ou ainda pelo direito a um volume mínimo de água gratuito. Entendendo que as empresas privadas buscam a maximização do lucro, o contexto é pouco favorável à privatização.

O edital lançado pelo governo do Estado traz uma série de itens que favorecem o prestador, no sentido de preservar seu lucro em detrimento do atendimento à população mais pobre. Um exemplo é a forma como é equacionado o atendimento das favelas. Segundo edital “a concessionária alinhará com o estado e o município do Rio de Janeiro, quais serão as áreas irregulares não urbanizadas que a concessionária precisa investir, devendo ser priorizadas as áreas que atendam aos requisitos (i) de planejamento de urbanização pelo poder público e (ii) de maiores condições de segurança.

É preciso lembrar que existem áreas irregulares não urbanizadas em diferentes municípios do estado, notadamente na Região Metropolitana. Dados do IBGE de 2010 mostram que em Duque de Caxias aproximadamente 60 mil pessoas viviam em aglomerados subnormais, em São João de Meriti e São Gonçalo esse número também é expressivo. A responsabilidade pelo planejamento de urbanização desses assentamentos é municipal e não do governo do estado. O tratamento dado a esse tópico foi questionado na audiência pública, o BNDES tentou corrigir, mas não resolveu o problema.

Verifica-se ainda que hoje é muito difícil definir o que seriam favelas seguras face aos problemas do tráfico de drogas e as ações violentas da polícia, que violam os direitos dos moradores e colocam em risco suas vidas. Segundo esse critério, o prestador pode se eximir de atuar na maior parte das favelas. Não há o devido detalhamento de como ocorrerão as metas de universalização nas denominadas áreas irregulares (favelas e aglomerados subnormais). O edital menciona um valor arbitrário para investimentos em favelas no Rio de Janeiro. Como não existe um diagnóstico mais detalhado da situação dos serviços, não há garantia de que os investimentos descritos por blocos serão suficientes para alcançar a universalização do saneamento nas áreas irregulares em cada bloco de concessão.

Para além dos problemas do edital e da modelagem do BNDES que são muitos e foram apontados por professores da UFRJ, da Fiocruz, pelo Ministério Público estadual, fica a pergunta: faz diferença o operador ser público ou privado? Como mencionei na questão anterior existem princípios que eu elenquei que fazem com que eu defenda uma prestação operada em lógica de serviço público, não orientada pelo lucro, reinvestindo os ganhos na universalização e melhoria da qualidade para todos sem descriminação de renda ou de lugar de moradia. Isso não quer dizer que uma empresa pública opere necessariamente neste sentido. A Sabesp companhia estadual de saneamento de São Paulo tem ações cotadas na bolsa de Nova York, assume contratos em pareceria com empresas privadas e tem os dividendos para os acionistas como balizador da sua ação.

Universidade à Esquerda: Existe uma crise hídrica no Rio de Janeiro, relacionada com a diminuição da disponibilidade de água e causando uma situação de insegurança hídrica para a população do estado. Como chegamos a esse ponto?

Ana Lúcia Britto: Os dois principais sistemas produtores de água que atendem a Região Metropolitana, Imunana Laranjal, que atende o leste metropolitano, e Guandu que atende o município do Rio de Janeiro e o oeste metropolitano, e que continuarão a ser operados pela CEDAE, empresa pública estadual, apresentam problemas. A quantidade de água produzida pelo Imunana Laranjal hoje não é, segundo o Plano Estadual de Recursos Hídricos, suficiente para atender a demanda. Ainda segundo o plano, uma característica do abastecimento dessa região é também seu baixo nível de segurança hídrica em função da ausência de regularização dos seus principais rios (Guapiaçu e Macacu) e de episódios recorrentes de estiagens prolongadas nos últimos anos. Na partilha entre os municípios atendidos pelo sistema Imunana Laranjal existe um claro privilégio à Niterói, que tem seus serviços prestados por uma empresa privada, a Águas de Niterói, que compra água tratada da CEDAE. Existem uma série de alternativas para melhorar a capacidade do sistema, algumas melhores outras piores  em termos de impactos sócio ambientais, mas nenhuma foi implementada.

Do lado oeste, o Sistema Integrado Guandu/Lajes/Acari atende 83% da Região Metropolitana.  O mais importante é o Sistema Guandu que capta água do rio Guandu, um rio quase exclusivamente formado pelas águas transpostas do rio Paraíba do Sul. Um fator de vulnerabilidade do sistema consiste, portanto, na forte dependência da Bacia do rio Paraíba do Sul, que é compartilhada com os estados de São Paulo e Minas Gerais. Seu rio principal tem vazão regularizada por um sofisticado sistema hidráulico que compreende reservatórios, usinas hidrelétricas e transposição de águas entre bacias, cuja operação é bastante complexa e envolve instituições federais, estaduais e múltiplos usuários de água.

Além disso existe uma vulnerabilidade em relação aos problemas de qualidade da água captada no rio Guandu. A principal fonte poluidora do Guandu são os rios Poços, Queimados e Ipiranga, que estão localizados imediatamente à montante do ponto de captação. Esses rios recebem grande carga de efluentes domésticos e industriais, tornando-os muito poluídos e por vezes provocando eutrofização e floração de cianobactérias. A ocorrência da geosmina – associada aos problemas de qualidade dos rios no ponto de captação, em 2020 e novamente esse ano, provocou mau cheiro e gosto de terra na água distribuída pelo Sistema Guandu, o que provocou muita insegurança em milhões de pessoas da Metrópole do Rio de Janeiro, agravada pelos problemas de comunicação por parte da CEDAE e do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Um aspecto relevante a ser ressaltado é que desde o início do governo Witzel foi colocado em marcha um processo de reestruturação da companhia, visando a privatização, com a demissão de quadros técnicos qualificados, o que teve impactos na operação dos sistemas.

Entendendo que a segurança hídrica se relaciona aos sistemas produtores de água, à capacidade da Metrópole do Rio de Janeiro de enfrentar os cenários negativos advindos das mudanças climáticas, mas também se articula do direito humano, pois pressupõe abastecimento hídrico em quantidade e qualidade para todos, pode-se dizer que existe insegurança hídrica na metrópole do Rio de Janeiro.

Como chegamos à esse ponto? Por problemas de gestão. A CEDAE é o retrato das últimas administrações no governo do estado, onde todos os governadores foram indiciados, dois estão presos, e um afastado das suas funções.

Universidade à Esquerda: Em vídeo recentemente lançado pela TV ADUFRJ, canal do sindicato dos professores da UFRJ, Edison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil opina que “hoje a única forma de resolver esse problema [da insegurança hídrica] é concedendo esses quatro blocos a uma nova empresa, seja ela pública, seja ela privada”.

O Instituto Trata Brasil é uma organização de grandes empresas interessadas em saneamento, entre elas a BRK, Coca-Cola, Unilever, Amanco, Tigre, Braskem, Arcelor Mittal. Segundo o site do instituto, seu “trabalho é conscientizar a sociedade para termos um Brasil mais justo”. Trata-se de uma “think tank” liberal, ou um Aparelho Privado de Hegemonia, em termos gramscianos. Uma organização dessa natureza tem o objetivo de influenciar os debates e construir consensos que sejam favoráveis ao sistema dominante, a sociedade capitalista e burguesa. O que você pensa sobre isso?

Ana Lúcia Britto: Efetivamente basta olhar as bases do Trata Brasil para se dar conta que é um think tank do setor privado, se posicionando claramente a favor da mudança legal implementada pelo governo Bolsonaro. É lamentável que a ADUFRJ desconheça o grande debate público que vem ocorrendo no Rio de Janeiro, as articulações entre partidos políticos de esquerda, movimentos sociais e sindicatos fazendo a crítica da modelagem da CEDAE, do edital lançado pelo governo do estado, lançando o movimento Água para Todos, e produza um vídeo onde não há debate nem crítica e ainda fecha com a posição do Trata Brasil.

Para um aprofundamento maior sobre o tema eu sugiro aos leitores visitarem o site do ONDAS, Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento. https://ondasbrasil.org/


[1] https://ondasbrasil.org/no-leilao-do-saneamento-de-maceio-os-pobres-de-alagoas-pagam-o-pato/

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