Foto: Francine Pereira Rebelo – Arquivo Pessoal de Francine
Renato Milis – Redação UàE – 28/05/2018
Na manhã desta segunda, 28 de maio o UàE conversou com Francine Pereira Rebelo, antropóloga e motorista de caminhão, sobre as condições de trabalho dos caminhoneiros e o movimento de greve. Formada em ciências sociais na UFSC em 2011, realizou no seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) um trabalho com as motoristas de caminhão que chamava “As batonetes – uma etnografia sobre as mulheres motoristas de caminhão”. Francine também trabalhou como motorista de caminhão por um ano entre 2015 e 2016. Confira:
UàE – Conta um pouco pra gente da sua experiência no TCC e na estrada
Francine – Eu fiz meu TCC com as mulheres motoristas de caminhão em 2011, nesta ocasião eu pude perceber muita coisa sobre a vida dos caminhoneiros. Alguns anos depois, de 2015 a 2016, eu trabalhei como motorista de caminhão por um ano, viajando de norte a sul do Brasil. Eu e meu companheiro éramos contratados de uma transportadora. Com essas experiências o que eu tenho pra falar é que a categoria dos caminhoneiros é muito heterogênea, é muito difícil criar uma unidade num grupo tão diverso. Acho são poucos consensos nesta categoria, um deles ela é que majoritariamente composta por homens, algo em torno de uns 98% dependendo do estado, e que são de baixa escolaridade, cerca de 1% com ensino superior. Pelo que eu conheço, eles têm posições políticas, religiosas e econômicas bem diversas. É bem difícil forjar uma homogeneidade num grupo tão heterogêneo.
Quando eu comecei o TCC, a minha ideia era fazer um trabalho sobre as greves dos motoristas organizadas a partir do rádio PX [Serviço de comunicação via rádio muito utilizado por caminhoneiros]. O PX é um universo muito desconhecido por quem não é motorista, mas é um articulador muito forte desta categoria. As primeiras greves dos caminhoneiros foram mobilizadas pelo PX. Esse tipo de mobilização se diferencia das greves por sindicatos ou por outros meios. Então, eu acho que essa é uma das dificuldades de se entender como estão organizadas as mobilizações dos caminhoneiros, acho que é muito difícil reconhecer uma liderança forte dentro desse movimento, o que faz com que seja mais descentralizado e talvez mais confuso para ser compreendido.
UàE – Como são as condições de trabalho na estrada? E como você está vendo este momento da greve?
Francine – No tempo que eu estive na estrada e também acompanhando as mulheres motoristas, vi que as mulheres tem maiores dificuldades. É mais complicado, tem muita transportadora, muito pátio que nem tem banheiro para mulheres e também elas sofrem mais machismo dentro da profissão, normalmente relacionado a essa ideia de que mulher não sabe dirigir. Mas, em geral, é uma profissão muito difícil. Muito cansativa, exige muitas horas de trabalho, as condições das estradas são muito ruins, existem muitos roubos de cargas e muitas situações que colocam os motoristas em perigo. Também tem muitos acidentes, pelas péssimas condições das estradas, apesar dos pedágios serem altíssimos. Para além disso, os motoristas sofrem um stress muito grande, principalmente os autônomos. Eu não era autônoma, mas trabalhei com algumas pessoas que eram e conheci algumas no meu TCC. As parcelas do caminhão são altíssimas, é sempre um stress estar trabalhando para conseguir pagá-las. E também o custo de manutenção do caminhão é muito alto, realmente é difícil para quem não é do meio conceber quão custoso é um caminhão. Sobre as condições de trabalho, acho que não faltam motivos para reivindicações, maior segurança nas estradas, diminuição dos pedágios e principalmente a diminuição do diesel. Eu realmente acho que o valor do diesel é o que está mobilizando neste momento, é a pauta principal deles. Também acho que começou pelo movimento dos autônomos e que é uma greve muito legítima.
Os desdobramentos dessa greve são difíceis de dimensionar agora. Talvez saia da possibilidade deles mesmo conceberem esse futuro. Essa questão da intervenção militar que está todo mundo falando, realmente têm faixas e questões aí por trás, mas eu acho que pela heterogeneidade do movimento, não podemos conceber uma categoria trabalhadora como reacionária por excelência, acho que isso não tem sentido. Acho que tem gente se apropriando e fazendo articulações com esse movimento e colocando pautas diversas, o que é uma coisa mais fácil de acontecer num movimento que é descentralizado.
UàE – Fala um pouco sobre a importância dos caminhoneiros pra sociedade e sobre os movimentos da categoria
Francine – Essas greves têm um histórico. Não é a primeira greve. Teve uma greve importante em 1999, durante o governo FHC, que foi mobilizada pelo rádio. Em 2015, teve uma greve também, inclusive nessa época eu era motorista, e para você ver como era difícil organizar essa questão da greve, eu estava trabalhando no norte do país, mas não vi muita coisa do que aconteceu. Depois eu li nas estradas, alguns cartazes e pichações no asfalto que pediam a saída da Dilma. Eu acho que temos de entender essa descentralização do movimento, muito pelo caráter itinerante dos trabalhadores. Porque eles tão sempre na estrada, a rotina é muito pesada, são viagens longas e mesmo os que fazem viagens mais curtas tem uma rotina de trabalho muito pesada, isso tudo dificulta qualquer tipo de articulação mais local. É muito díficil de você conseguir reunir semanalmente os mesmos motoristas, porque eles vão estar sempre com o horário e rotas diferentes. Eu vejo que eles são solidários entre si, que tem uma solidariedade de estrada e acho que a participação dos motoristas contratados de transportadoras passa pelo envolvimento dessa solidariedade. Outra questão também é que mesmo quem quisesse trabalhar não ia conseguir, porque as paralisações foram gerais, as estradas foram bloqueadas. Sobre essa questão de ser locaute ou não, a impressão que eu tenho é que realmente começou com os autônomos. Eu acho que até a nível teórico os motoristas questionam um pouco dessa ideia que a gente tem de movimento. Nem sempre os interesses entre autônomos e contratados são discordantes, existem algumas pautas específicas que podem ir de acordo e o diesel seja uma delas. A maioria dos motoristas hoje são funcionários de transportadoras e cerca de 40% de autônomos. Se os motoristas das transportadoras não tivessem parado também a greve ficaria inviabilizada. Pode ter questões empresariais, mas isso não deslegitima a reivindicação dos caminhoneiros. Acho que é um pouco de arrogância da nossa parte dizer que eles não estavam se organizando, só porque não vimos eles se organizando.
Esta é uma categoria que está sempre trabalhando. Inclusive em horários que ninguém está vendo, porque esse setor do transporte é muito dinâmico, funciona muito rápido. Não tem feriado, não tem fim de semana é uma coisa que está sempre acontecendo e a gente não está vendo. Mas quando eles param o país vira um caos. Estamos vendo essa crise de abastecimento e uma crise geral de mobilidade. Eles sempre estiveram lá, apesar de ser uma categoria meio invisível.
Tem uma parcela muito grande da população que é caminhoneira, tem muitos lares e muitas famílias que têm um caminhoneiro. É importante reconhecê-los como trabalhadores, ver a importância dessa categoria para que esse país funcione de um jeito razoavelmente organizado. É impressionante mesmo o impacto que teve essa greve, a gente está aqui na universidade e a universidade suspendeu as aulas, ela atinge setores que não são diretamente ligados ao transporte, não é só transportadora. Atingiu o país inteiro.
UàE – É a importância de a gente se solidarizar, por uma categoria importantíssima e que tá muito precarizada. E que se a gente quer criar laços mesmo entre os trabalhadores têm que estar do lado deles.
Francine – Acho que para esquerda em geral é mais fácil deslegitimar essa greve e considerá-la como patronal, o que inclusive é o que a rede globo está fazendo e que a gente muito rapidamente se apropria de discursos que convém. É mais difícil tentar pensar como que os caminhoneiros questionam essa estabilidade do conceito de trabalhador, de organização, e até de movimento social, então parece mais fácil desmobilizar a paralisação deles. Enquanto isso exigiria da gente uma solidariedade, uma atenção maior pra esse tipo de categoria que questiona os modelos de trabalhador que a gente tem em mente.
UàE – Da gente sair do lugar também né; parar de se acomodar
Francine – Isso mesmo. Uma dica que eu teria é que as pessoas fossem visitar os pontos de paralisação. Eu sei que é um momento difícil porque está todo mundo com falta de gasolina e muito preocupado com isso. Mas as pessoas que tem possibilidade de visitar esses pontos têm conseguido uma informação de mais qualidade, porque essa guerra de informação também enlouquece, as pessoas estão num pânico que eu realmente não sei mensurar o quanto é necessário, mas que é em grande parte guiados pela grande mídia. Talvez seria interessante que as pessoas tentassem visitar esses pontos de paralisação, tentassem conversar diretamente com os motoristas, ou tentassem se mobilizar para conhecer essa categoria, que fica meio de fora das pautas em geral. Reconhecê-los como trabalhador mesmo. É importante que a esquerda em geral esteja ao lado desse grupo que é muito precarizado. Este tempo de greve é um tempo que este motorista não está recebendo, com certeza é muito difícil para eles também, pela questão dos custos que eu falei. Para eles também é importante acabar a greve, todo mundo precisa trabalhar. É importante que se resolva logo isso, e eu acho que quanto mais apoio eles tiverem, é mais fácil que essa solução seja favorável a eles.
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