Foto: Alexandre Gonçalves da Rocha/Pixabay
Isabela Ramos Ribeiro para o UàE – 12/08/20202 – Publicado originalmente em Universidade à Esquerda
Isabela Ramos Ribeiro é doutora em Política Social pela UnB e professora do curso de Serviço Social na UnB. Ela apresentou sua tese no Circulação da Balbúrdia e neste texto apresenta algumas das constatações de sua pesquisa que teve como objeto de estudo a conformação da hegemonia no Brasil entre 2003 e 2018. A tese está disponível para leitura na Biblioteca na EFoP e a apresentação e debate podem ser assistidos no canal do YouTube da EFoP.
A tese “Burguesia dependente, bloco no poder e a conformação da hegemonia no Brasil entre 2003 e 2018” tem como eixo a hegemonia: o que é, como ela se constitui, se consolida e se reconfigura atravessada pela dependência. Nesse viés, o fundo público e as políticas econômica e social são elementos que contribuem para a constituição da hegemonia burguesa, utilizados para assegurar a dominação e direção da burguesia sobre o conjunto da sociedade. As propostas da burguesia acerca desses elementos constitutivos são elaboradas no âmbito da sociedade civil, por meio dos aparelhos privados de hegemonia, e condensadas no Estado, como lugar e organização da unidade política das diversas frações que compõem o bloco no poder, incluindo suas disputas pela hegemonia. Dessa forma, os elementos utilizados pela burguesia para conformar a hegemonia se expressam na composição do bloco no poder. Num movimento de reciprocidade, as frações beneficiadas pelo Estado por meio da apropriação do fundo público demandam e efetivam políticas econômicas e sociais que as favoreçam.
Buscou-se caracterizar a burguesia dependente, desde sua conformação aos delineamentos que apresenta na atualidade. Essa burguesia subordinada ao imperialismo tem necessidade de um Estado forte capaz de garantir mecanismos de sustentação da transferência internacional de valor e da superexploração da força de trabalho, por meio das políticas estatais. As demandas apresentadas publicamente pelas distintas frações burguesas não são calcadas em princípios econômicos ou de modelos de desenvolvimento; o que importa é a ampliação crescente da lucratividade a partir da superexploração e a atuação do Estado para reverter as tendências de queda da taxa de lucro, conforme indicaram os documentos da CNI, CNC, CNA e Febraban, no período 2010 a 2018, analisados na tese.
O fundo público, além daquelas funções cumpridas em qualquer sociedade capitalista monopolista e financeirizada, deve dar conta, ainda, de atender as necessidades de compensação de perdas da burguesia dependente em sua inserção subordinada no mercado mundial. O pagamento de juros, encargos e amortização da dívida pública, as metas de superávit primário, a não limitação de remessa de lucros, a transferência de recursos para empresas estrangeiras, a apropriação dos conhecimentos tradicionais, as isenções e desonerações tributárias e a abertura comercial cada vez mais adequada aos interesses do imperialismo são formas de participação do Estado na manutenção da dependência, e por consequência de sustentação da lumpenburguesia citada por Frank (1978). Isso ficou evidente ao identificar que nenhuma das frações burguesas demanda grandes alterações ou mudanças no rumo da política econômica do Plano Real, posto que as políticas monetária, tributária, cambial e fiscal historicamente atendem aos seus interesses, ainda que com eventuais oscilações e disputas conjunturais entre as frações.
Essa burguesia dependente sem projeto nacional, que visa se apropriar do trabalho excedente e do trabalho necessário da classe trabalhadora brasileira, divide-se em frações segundo os ramos de atividade do capital e à organização política em dados momentos históricos. Tais frações compõem o bloco no poder, mas com diferentes graus de favorecimento conforme a conjuntura, e segundo a capacidade dirigente de cada uma delas. As tentativas de apresentar seus interesses como universais constituem movimentos de conformação da hegemonia tanto internamente no bloco no poder, como perante toda a sociedade.
Entre 2003 e 2018 esse processo foi bastante complexo, posto que a ascensão do PT ao governo federal trouxe novas contradições e possibilidades para a constituição da hegemonia burguesa. A imagem de um presidente operário com nítida vinculação à cultura das classes subalternas e com passado de lutas relevantes para o movimento sindical brasileiro permitiu ampliar o consenso, ainda que passivo, em torno da hegemonia burguesa. O aspecto simbólico-ideológico, entretanto, não seria suficiente para arraigar o consenso. As políticas de conciliação entre burguesia e classe trabalhadora permitidas pela conjuntura econômica favorável foram utilizadas como discurso e prática política, embora com destinação de recursos bastante diferenciada.
O que teve foco no decorrer do trabalho, todavia, foram as políticas de conciliação no interior da própria burguesia, com relação às frações que compõem o bloco no poder e que foram beneficiadas pelas políticas econômicas e sociais no período. A conjuntura internacional e o sopro positivo na balança de pagamentos – com base na exportação de commodities e em uma centralidade do setor primário-exportador – permitiu a manutenção da hegemonia política do capital internacional financeirizado, ao passo em que melhorou também as condições de acumulação para a burguesia brasileira, com destaque para sua fração interna. Mas determinada pela dinâmica do capitalismo e da dependência, tais mudanças não poderiam ter vida longa. O governo de Dilma Rousseff se inicia com boa aprovação, que passa a decair na medida em que as condições de lucratividade para a burguesia e de reprodução da vida para a classe trabalhadora se deterioram. A partir de 2011, a conjuntura paulatinamente deixa de permitir a sustentação das políticas heterodoxas na economia e mesmo das políticas sociais de ampliação do consumo e valorização do salário mínimo. Sem condições de manter a conciliação de classes, a burguesia passa a buscar recompor a hegemonia em seus termos, especialmente a partir de 2013. O bloco no poder e mesmo as frações se reconfiguram, homogeneizando algumas das disputas que tiveram destaque no período imediatamente anterior (2003-2013).
Com uma insatisfação especialmente da fração bancário-financeira nos primeiros anos do governo Dilma em razão da chamada “nova matriz econômica”, se estendendo às demais frações cujas massa de mais-valia apropriada decaíam, junho de 2013 irrompe como o início de uma crise de hegemonia tanto em sentido restrito como amplo. Para a burguesia, o PT já não cumpria sua função de garantir a reprodução ampliada do capital com estabilidade política, e a classe trabalhadora, incluídas suas frações médias, passa a não reconhecer no petismo sua representação. Mesmo com a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2014, foi possível verificar que desde 2013 o governo passa a assumir uma postura cambaleante perante as frações burguesas. Frente a crise de hegemonia, o bloco no poder se reconfigura e a burguesia, por meio de suas entidades, busca resoluções para a crise. Ainda que sem a conformação de uma frente única burguesa, os interesses das frações agrária, bancário-financeira, industrial e comercial se unificam em torno da necessidade das contrarreformas, e são as políticas sociais que sofrem maiores alterações, conforme demandas expressas nos documentos de todas as entidades pesquisadas.
Os governos petistas foram responsáveis por parte importante das alterações nas políticas sociais, como as medidas inseridas na contrarreforma da previdência, as alterações no seguro desemprego, aprovação do Novo Código Florestal que afeta o acesso a terra, dentre inúmeras outras. Embora Dilma tenha sinalizado que estaria disposta a ceder para medidas ainda mais ofensivas na direção do atendimento à burguesia, demonstrava desconforto e resistência com a aprovação da contrarreforma trabalhista reivindicada por todas frações da burguesia, conforme os documentos analisados. Essa foi uma das razões pelas quais a saída burguesa para a crise brasileira exigia a deposição da presidente, naquele momento tanto uma crise de representação como uma crise de acumulação. As expropriações sobre os direitos, com a recomposição das políticas sociais, mostram-se essenciais para a reprodução do capitalismo, e de fato foi possível observar o retorno do crescimento da massa de mais-valia a partir de 2017. A crise de hegemonia no interior do bloco no poder foi resolvida, posto que a burguesia e suas frações foram representadas e tiveram suas demandas atendidas por Temer. A hegemonia ampla, entretanto, não havia sido plenamente consolidada até 2018. De 2003 a 2013, o PT foi capaz de assegurar a hegemonia burguesa em condições ótimas, e essa retomada não ocorreu entre 2013 e 2018.
Em síntese, foi possível para o governo conciliar interesses em função da conjuntura econômica internacional favorável entre 2003 e 2010, processo que foi revertido após 2011, demonstrando a impossibilidade estrutural da conciliação sob o capitalismo dependente, como tratado ao longo do trabalho. A crise de hegemonia estava em processo desde 2013, e a coalizão liderada pelo PT não mais apresentava capacidade de representar nenhuma das classes fundamentais e suas frações. O bloco no poder se reconfigurou, com o enfraquecimento da grande burguesia interna. Na analogia esboçada ao longo da tese, o PT foi o muro de arrimo da crise de hegemonia política dos anos 1990, mas o desgaste próprio do capitalismo leva ao desabamento do muro de contenção, sem com isso soterrar todo o terreno, posto que o bloco no poder se reconfigurou.