Caroline Custódio – Redação UàE – 03/07/2020
Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.
Na última semana o Universidade à Esquerda conversou com estudantes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, que constroem o “UNESP Araraquara em Luta” e hoje travam o enfrentamento ao ensino a distância/ensino remoto na estadual paulista.
Desde março, com o início do isolamento social pela Covid-19, os estudantes da Unesp Araraquara vêm realizando debates e acúmulos sobre o EaD, que vem sendo chamado agora de ensino remoto. Os estudantes se colocam contrários a essa forma de ensino na universidade e trazem, nessa entrevista, importantes elemento que embasam seu posicionamento e quais as dificuldades que vêm enfrentando com suas entidades; a relação com o movimento docente e como a reitoria tem tomado as decisões no período da pandemia.
Uma importante entrevista para pensar as experiências que podem ser construídas pelo movimento estudantil na atual conjuntura e algumas reflexões sobre o que deve estar no norte de nossas lutas nas universidades.
UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Como surge o movimento contra a implementação do EaD na Unesp Araraquara e por quem ele é construído (estudantes, docentes, técnicos, entidades…)?
UNESP ARARAQUARA EM LUTA: O movimento de enfrentamento ao EaD/Ensino Remoto surge em março, momento em que a Unesp, por conta da crise sanitária causada pela Covid-19, paralisa as aulas presenciais. Mas mantém a continuidade do calendário letivo, já pavimentando os caminhos para a implementação do Ensino Remoto.
Naquele momento, outras universidades já haviam adotado o ensino a distância e por não ser uma debate novo dentro da Unesp e, mais especificamente, no movimento estudantil, logo passamos a articular espaços virtuais locais de discussão pautando os impactos do EaD na educação superior pública. Simultaneamente, a nível estadual também foi articulada a campanha “Unespianes Contra o EaD”, construída por estudantes de várias cidades em que a Unesp se espalha no estado de São Paulo.
Ainda no dia 27 de março, a Reitoria da Unesp publica a portaria nº 122 que flexibiliza as atividades de ensino da universidade e implementa o ensino a distância para a graduação. A mesma portaria teve sua redação editada e foi transformada na portaria de nº 128, que define as diretrizes para as atividades de ensino a distância.
O movimento vem sendo majoritariamente construído por estudantes da graduação, e tem sido apoiado por apenas alguns poucos docentes, pois a categoria, apesar de ter maior peso dentro da estrutura de poder universitária, dificilmente se mobiliza por pautas estudantis ou que abarquem a universidade de maneira mais ampla. Temos buscado também a comunicação dos servidores técnico-administrativos, mas o conjunto da categoria não possui um grau alto de mobilização.
UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Por que vocês entendem que o EaD, que vem sendo chamado de ensino remoto durante o período da pandemia, não condiz com os propósitos das universidades públicas e deve ser combatido?
UNESP ARARAQUARA EM LUTA: Na Unesp existe uma narrativa que distingue o EaD do Ensino Remoto, mas acreditamos que o que acontece na realidade é a tentativa de aceitação passiva do EaD por meio do emprego de sutilezas linguísticas, o que infelizmente tem seduzido muitos docentes e até mesmo algumas entidades estudantis.
O Ensino Remoto do jeito que vem sido tocado, se mostra ainda mais precário do que o EaD, já que não define uma estrutura básica para seu funcionamento, cabendo aos docentes definir como serão dadas as atividades. Nesse ponto, é importante destacar que a implementação do EaD na Unesp tem tido um caráter impositivo, não havendo um amplo debate com a comunidade acadêmica.
A rejeição às atividades à distância tem sido constantemente pautada nos espaços do movimento estudantil há pelo menos 10 anos. Portanto, já existe um acúmulo de debates que aponta uma série de problemáticas que vão desde a precarização da formação e das relações do trabalho docente, até questões de acesso que desconsideram a realidade material dos/as estudantes trabalhadores na universidade. Para além disso, entendemos que o ensino a distância serve aos interesses dos grandes mercadores da educação, das empresas de ensino e organizações econômicas ligadas à tecnologia, e representa a investida neoliberal dentro da educação superior pública.
E também partimos da concepção de que a educação não é apenas a mera transferência de saberes de forma conteudista e mecânica, mas que possui dimensões e aspectos socializadores em seus espaços formais e informais. Neste ponto, cabe marcar a crítica ao conteudismo ou à “educação bancária” como essência da ideologia capitalista na educação pública, onde tais medidas tensionam cada vez mais rumo a um modelo empresarial da gestão educacional.
Porém, seria impossível tecer uma crítica ao ensino a distância sem considerar também a questão da permanência estudantil, que particularmente para nós, da Unesp de Araraquara, tem sido sistematicamente negligenciada, seja pela diretoria ou mesmo pela Reitoria. O reflexo mais direto deste quadro de negligência institucional da permanência estudantil é o Restaurante Universitário que se encontra fechado desde 2014 e que era responsável não somente pela alimentação de baixo custo da comunidade acadêmica, mas também pela socialização dos estudantes com sua comunidade acadêmica.
E neste momento em que as desigualdades se aprofundam cada vez mais, os estudantes que dependem da permanência e/ou que estão ainda nas dependências da moradia estudantil, se encontram desassistidos pela instituição, e inclusive estão sendo atacados nos veículos de imprensa conservadores locais pelo diretor da Unesp Araraquara. Estes ataques foram feitos em um contexto em que a moradia estudantil já registrava casos positivos para a Covid-19, e grande parte das ações feitas para arrecadar alimentos e itens básicos tem sido feita pelos próprios estudantes por meio do CESA (Comitê Estudantil de Segurança Alimentar).
Portanto, não podemos pautar unicamente a questão do acesso enquanto um fator que impossibilita a implementação do ensino a distância, é importante considerar as condições materiais das/dos estudantes que perderam sua fonte de renda (em sua grande maioria informal), ou que se encontram em grande sobrecarga emocional ou de trabalho, seja ele produtivo ou reprodutivo.
UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Como a reitoria da UNESP tem respondido ao EaD? E os professores e técnicos-administrativos em educação, como têm se posicionado?
A resposta vinda da Reitoria é a exclusão dos(as) estudantes pobres, já que há uma incompatibilidade proposital entre a “inclusão digital” e a realidade que se apresenta. Mesmo com a compra de 3.000 chips de internet para serem distribuídos aos estudantes, não há uma finalização simples da problemática do ensino a distância, tampouco resolve os problemas de acesso ao ensino público. Por trás do verniz dessa “inclusão” existe a dissimulação em oferecer instrumentos básicos que coloquem todos e todas em um mesmo “barco” do EaD. Sabemos que apenas o acesso a internet por meio de chips não é suficiente, porque são necessários equipamentos que ofereçam estabilidade de conexão e uso, além de um espaço físico adequado para estudo, assim como a adequação de uma dinâmica de aula presencial para o autodidatismo remoto.
Poucos docentes têm se colocado de maneira crítica nesse processo, existe um corporativismo no conjunto da categoria, que vem aceitando com bastante passividade a implementação do EaD, inclusive argumentando sobre uma suposta inevitabilidade da imposição, no caráter de ser um momento “excepcional” e “urgente”.
Precisamos lembrar que estamos em meio a uma pandemia que, a cada dia, leva mais de mil pessoas a óbito. Observar a sociedade, a crise sanitária, política e social, e decidir que a vida precisa ser tocada “normalmente” em um momento totalmente anormal é se desligar do papel fundamental da educação pública de estar a serviço daqueles(as) que a sustentam – o povo.
Tocar as atividades curriculares obrigatórias, sem alterações de conteúdo, com obrigatoriedade de presença e entrega de atividades, é ignorar a realidade material dos(as) estudantes. Grande parcela dos docentes está insensível a esta realidade e segue, a firmes pés, defendendo a implementação de atividades remotas, observando não mais a sociedade e suas necessidades, mas obedecendo a interesses escusos que visam, entre outras coisas, a precarização da educação pública.
UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Em um momento tão decisivo para nossas universidades, o movimento estudantil se mostra essencial para tocar lutas importantes, como agora é o combate ao EaD. Como tem sido, na avaliação de vocês, a atuação das entidades estudantis na Unesp Araraquara na construção dessas lutas? Elas têm conseguido atuar combativamente nos momentos decisivos?
UNESP ARARAQUARA EM LUTA: Desde o início do isolamento social, o movimento estudantil manteve suas plenárias e assembléias virtuais, mesmo com toda a limitação que essa conjuntura nos trás. Inicialmente, as entidades (Centros Acadêmicos) adotaram um discurso contrário ao EaD, o que foi se transformando paulatinamente em uma reivindicação por “critérios mínimos”, ou “redução de danos”. E, desse modo, foram abandonando o enfrentamento ativo a implementação e esfriando os esforços de quem estava disposto a luta. Nos espaços de discussão e deliberação, muitos estudantes marcaram forte oposição à imposição do EaD na Unesp e isso não era expresso pelas entidades e representações discentes.
A falta de proximidade com a base e o aparelhamento das entidades se evidenciaram ainda mais com o voto favorável de dois representantes discentes (Ciências Sociais e Pedagogia – ambas vinculadas ao MPJ-PT) que votaram pela continuidade do semestre por meio do ensino remoto, atropelando toda discussão e acúmulo do movimento estudantil. Em consequência disso, muitas/os estudantes sentiram-se incomodadas/os e indignadas/os, o que acabou despertando maior participação no debate sobre o EaD e uma reflexão crítica sobre as estruturas de participação política no movimento estudantil, além do papel das entidades estudantis durante os processos de luta.
Desde 2007 a Unesp não tem um DCE, e o motivo da dissolução foi justamente o aparelhamento da entidade pela UJS. Portanto, se reconhecemos que as entidades cumprem um papel importante dentro movimento estudantil, devemos pensar em estruturas que impeçam que sejam aparelhadas ou que percam seu vetor de combatividade. A entidade deve expressar a cultura política do movimento estudantil, ter contato permanente com a base e incentivar cada vez mais a participação política frente às questões que nos atingem cotidianamente.
UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Além da mobilização na UNESP, têm surgido movimentos similares na UFGD e UFRJ. Na opinião de vocês, qual a importância dessa luta contra o EaD se massificar e nacionalizar?
UNESP ARARAQUARA EM LUTA: A importância se dá primeiramente em romper o isolamento, pois ao termos contato com as iniciativas em outras localidades, abre-se um leque de possibilidades táticas no enfrentamento ao EaD, além de demonstrar que não estamos sozinhos nessa luta. Vemos hoje que a UNE (União Nacional dos Estudantes) faz coro a defesa do EaD, e há muito tempo não representa uma força combativa, temos a necessidade de pautar um calendário de mobilizações alternativo contra o ensino a distância, somando cada vez mais força contra esse projeto de destruição da educação pública.
Destacamos aqui a importância de neste momento construirmos campanhas, boicotes e ações contra o EaD, desvelando a farsa com nome de “inclusão digital” e suas consequências para o futuro da educação pública e, principalmente, para a formação das/os estudantes brasileiras/os.
Deste modo, é importante refletir em algumas questões:
1) Qual é o papel social das universidades, principalmente num momento de pandemia?
2) E a quem tem servido o conhecimento nela produzido?
3) E finalmente, como construir um projeto de universidade que aponte para um projeto de transformação da sociedade que vivemos?
Acreditamos que a universidade, assim como a pesquisa brasileira, possui um papel importante no enfrentamento ao Covid-19 e que neste momento de crise, deveriam centrar-se unicamente a isso. Pois não existem condições de simular uma normalidade e seguir com o calendário letivo, sem aprofundar mais a já crescente desigualdade educacional.
UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Por fim, além dos projetos nacionais de sucateamento das universidades, como os cortes orçamentário e o Future-se, as universidade estaduais paulistas vêm sofrendo com ataques singulares, como a CPI das Universidades instaurada em abril de 2019. Em linhas gerais, quais os desafios vocês têm enfrentando na UNESP?
UNESP ARARAQUARA EM LUTA: A UNESP Araraquara enfrenta já há anos um sucateamento de suas atividades e de repasses de investimentos aos estudantes. Como dito, há 6 anos houve o fechamento do Restaurante Universitário e suas portas permanecem fechadas até hoje, deixando de cumprir o papel fundamental de permanência estudantil com o oferecimento de alimentação a baixo custo. Os repasses que garantem a continuidade de estudantes pobres permanecerem na universidade são ínfimos, demonstrados pela incapacidade de contemplar os(as) inscritos nos processos seletivos de auxílios socioeconômicos, deixando mais de 50 estudantes sem qualquer tipo de amparo econômico. Ainda, nas poucas vagas existentes na Moradia Estudantil, é recorrente casos de infiltrações durante chuvas, de más estruturas das casas, o não fornecimento de gás de cozinha e de internet, para além da insegurança física, visto que o local já foi invadido algumas vezes. E mais, durante a pandemia, o sucateamento e o despreparo impossibilitou que residentes da moradia tivessem sequer a segurança alimentar, já que a direção não se movimentou para disponibilizar alimentos ou produtos de higienização aos estudantes.
No campo da educação, enfrentamos ano após ano uma grade de professores menor, pois não há recontratação de docentes para as disciplinas ofertadas. Para conter esse vácuo, estudantes de pós graduação são colocados no papel de professores titulares, mas a direção se “esquece” de dar a remuneração proporcional de um professor titular a esses estudantes-professores, precarizando suas condições de trabalho e recebendo bolsas incompatíveis com a função desempenhada. Ainda, a baixa oferta de matérias optativas para o período noturno (em que se encontra maior parte de estudantes trabalhadores(as)), a exaustiva e longa carga horária, os estágios não remunerados, a inexistência de possibilidade de bolsas de pesquisa e o sucateamento dos projetos de extensão dão o tom da qualidade de ensino colocado aos estudantes pela Unesp.
A PEC do FIM da UNESP, conhecida como Proposta de Sustentabilidade Orçamentária está em conformidade com o projeto Future-se, e agora, mais do que nunca, com a permissão da entrada das atividades remotas, poderá se desdobrar em uma implementação da educação a distância por meio de uma parceria público-privada. Devemos lembrar que a educação a distância é velha conhecida das instituições de ensino superiores particulares, haja vista que o lucro, sendo diretamente aumentado perante a mudança de aulas presenciais para online, é o direcionador de uma educação colocada como mercadoria. Assim, utilizando e se apropriando do discurso de crise, o projeto neoliberal de educação pública força o estrangulamento orçamentário em direção a um modelo privatista de universidade.
Ainda, a Reforma Administrativa, apresentada como minuta, fundiu os postos de trabalho e aglutinou setores e seções dentro da organização universitária, isto é, cortou gastos e remodelou a gestão administrativa pelo arrocho salarial, precarizando o trabalho e diminuindo o número de servidores por campus. Já a Reforma Acadêmica apresenta medidas que “modernizam” a universidade, porém, por baixo da máscara do progresso, há a flexibilização da aprendizagem e do ensino, aproximando cada vez mais das parcerias público-privadas. Hoje, a proposta de cursos que existam em mais de um campus serem aglutinados em uma única cidade (uma resposta simples para as baixas de quadros de docentes e servidores) já se torna uma realidade: o campus de Ourinhos corre o risco e está em vias de fechamento, por só possuir um único curso. O campus de Marília e Araraquara, ambos com o curso de Ciências Sociais, são colocados em uma posição de competição por produtivismo, uma vez que se tem indicado que o curso deveria estar aglutinado em somente um campus, excluindo todo o caráter material e de impacto aos estudantes que uma medida como essa teria.
Dessa forma, a Unesp segue precarizando o ensino, a instituição, os trabalhadores(as), e, principalmente, os(as) estudantes, que recebem de enxurrada as consequências de reformas orçamentárias, que nunca reverberam em investimentos a permanência ou qualidade de ensino público. Os cortes de gastos, “investimentos” e “modernizações orçamentárias” são belos jargões utilizados para precarizar ainda mais a universidade pública, para afastar os(as) estudantes pobres, para diminuir as condições de permanência estudantil, já que nunca se transformam em ações que atingem os(as) estudantes beneficamente. Ao contrário, são utilizadas para mudanças que não alcançam a base estudantil ou os(as) servidores e terceirizados, apenas mudando a estrutura para valorização dos “de cima” da universidade e que, consequentemente, aproximam e convidam o capital privado para se apropriar de uma educação que deveria ser de acesso universal, público, gratuito, com qualidade, e que, por fim, centrasse seu papel em desenvolver seus conhecimentos a serviço das necessidades da sociedade.