Júlia Vendrami – 20/02/2022 – Publicado originalmente em Universidade à Esquerda
No dia 3 de fevereiro, um trem operado pela Norfolk Southern Railroad com mais de 150 vagões, 20 deles contendo materiais perigosos, descarrilhou em uma ferrovia no oeste de Ohio, nos EUA. Como alguns produtos químicos estavam instáveis, a operadora dos trens optou por queimar os produtos químicos, e drená-los no rio Ohio. A queima do cloreto de vinila obrigou moradores a evacuarem a área, já que seu gás pode ser mortal.
Para entender melhor a situação, o jornal Universidade à Esquerda conversou com a professora do Departamento de Estudos Globais da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, Caitlin Schroering1, sobre o derramamento de produtos químicos que causou contaminação do ar e água após o descarrilamento de um trem em Ohio.
Caitlin Schroering explicou que:
“A Norfolk Southern intencionalmente escolheu desviar pelo menos alguns vagões que eles sabiam que transportavam materiais perigosos e depois queimá-los. Ela derramou milhões de libras de cloreto de vinila, um gás, pode ser mortal e é cancerígeno. [O produto químico] vazou no Rio Ohio, um rio que fornece água para cerca de 5 milhões de pessoas. Mas afetou uma região maior, espalhando-se também pelo estado da Pensilvânia.”
Milhares de residentes da cidade de East Palestine, a mais próxima, foram obrigados a evacuar suas casas. Após o processo de queima, foi indicado que eles poderiam voltar, mas muitos desconfiam que ainda não seja totalmente seguro.
A respeito da contaminação do rio, o governador de Ohio, Mike DeWine afirmou que a poluição não representa uma ameaça séria para quem depende do rio para obter água potável. Porém, os moradores que possuem poços particulares foram alertados de que devem parar de consumir água de seus poços.
“É um desastre para a qualidade do ar e da água, e especialmente para a qualidade da água. Os efeitos continuarão por um tempo. Há também a preocupação de que os gases químicos sejam absorvidos pelo solo, afetando os alimentos.”
Afirmou Caitlin Schroering.
Atuação dos sindicatos
A Brotherhood of Locomotive Engineers and Trainmen union (BLET), um sindicato com mais de 57 mil filiados, e a Sheet Metal, Air, Rail and Transportation Workers (SMART-TD), um sindicato com mais de 208 mil filiados, vêm divulgando alertas de que poderiam acontecer acidentes porque os cortes de custos da ferrovia prejudicaram as medidas de segurança. Além disso, o trecho específico onde aconteceu o acidente, entre Illinois e Pensilvânia, já era conhecido pelos trabalhadores como um trem difícil de operar, especialmente por causa do seu comprimento e peso excessivos: 151 vagões, 2.834 metros de comprimento, 18.000 toneladas.
Os sindicatos ferroviários também têm estado na pauta da mídia estadunidense porque no final do ano passado, após um longo período de negociações sem chegar a um acordo, anunciaram uma greve para dali a sete dias, conforme as leis dos EUA. Porém, o presidente Joe Biden agiu para que o congresso propusesse um projeto de lei, que foi sancionado por ele, proibindo a greve dos trabalhadores das ferrovias.
Na sua campanha, Biden jurou ser “o presidente mais pró-sindicato que você já viu” Porém, na assinatura do projeto de lei, declarou que “O sistema ferroviário de nosso país é literalmente a espinha dorsal de nossa cadeia de suprimentos. Muito do que dependemos é entregue por trem, desde água limpa até comida, gás e todos os outros bens. Uma paralisação ferroviária teria devastado nossa economia. Sem ferrovias de carga, muitas de nossas indústrias teriam literalmente parado.”
Sobre a relação entre a precarização do trabalho dos trabalhadores ferroviários e falta de regulamentações adequadas no setor, Caitlin falou ao Jornal Universidade À Esquerda:
“Muitos estão dizendo que este é um dos piores desastres ambientais da história dos Estados Unidos; e também que era evitável, causado pela corrupção e ganância corporativa: empresas ferroviárias junto com a indústria de petróleo e gás fizeram lobby para revogar medidas de segurança para cortar custos. Ferroviários sindicalizados alertam há meses para o risco da medida de corte de custos. Além disso, embora tenhamos visto desregulamentação adicional sob [o governo] Trump, é importante observar que há uma longa história nos EUA para enfraquecer os sindicatos trabalhistas.”
Falta de cobertura da imprensa e de reação governamental
Sobre a cobertura da imprensa que foi muito fraca logo após o acidente, Caitlin denuncia:
“Está começando a ter um pouco mais de cobertura da imprensa, mas dificilmente sendo coberto. Um jornalista foi preso por cinco horas logo após o acidente por cobri-lo. O governador de Ohio disse que isso não deveria ter acontecido e que os jornalistas têm a liberdade/direito de cobrir histórias…
Esta história ainda está se desenrolando, mas levanta a questão: por que o jornalista foi detido? Por que há tão pouca cobertura da imprensa? A consolidação da mídia e o controle da imprensa por parte de grandes conglomerados corporativos de mídia é um problema crescente. Ser jornalista investigativo é cada vez mais desafiador, com muitos riscos.”
E sobre as atitudes tomadas pelo governo Biden:
“A EPA (Department of Environmental Protection) enviou uma carta na semana passada documentando contaminantes adicionais que podem ter sido liberados no derramamento.
Vários grupos ambientais, como o Projeto Breathe, também estão convocando Biden e o governo federal para mobilizar agências governamentais e criar uma resposta. O governador de Ohio emitiu um estado de emergência. Ele também observou que o trem não foi classificado como lixo perigoso, o que é ridículo e precisa mudar. Este é um exemplo: o risco é grande de acontecer de novo!”
O governador de Ohio, DeWine, afirmou que a companhia ferroviária não era legalmente obrigada a alertar ninguém em Ohio sobre a carga tóxica porque apenas alguns dos vagões do trem Norfolk Southern que descarrilhou no início do mês transportavam materiais perigosos.
Outro ponto que foi voltou a ser debatido com o descarrilamento é que em 2017 foram anuladas disposições que exigiam que vagões transportando materiais perigosos e inflamáveis fossem equipados com sistemas de freios eletrônicos para parar os trens mais rapidamente, chamados freios pneumáticos controlados eletronicamente (ECP).
Caitlin explica também que a Norfolk Southern inicialmente se ofereceu para pagar a quantia de $25.000 (equivalente a R$129 mil) a título de reparação de danos. Como a comunidade de East Palestine possui cerca de 5 mil habitantes, isso representaria apenas $5 por pessoa. Cabe ressaltar que a renda média da população de East Palestine é ligeiramente abaixo de US$ 28.000/ano, enquanto a empresa vale US $ 55 bilhões.
Relação com desastres ambientais no Brasil
O Jornal Universidade à Esquerda também questionou Caitlin sobre qual paralelo ela consegue estabelecer entre a forma como foram tratados alguns desastres ambientais no Brasil e o que está acontecendo em Ohio.
Caitlin Schroering:
“Isso não foi um “acidente”: está relacionado a uma história de desregulamentação e medidas de corte de custos para que as empresas possam obter lucro às custas do meio ambiente e das pessoas. Na verdade, penso imediatamente no rompimento da barragem de Brumadinho e no crime de 2019 no Brasil. Isso também não foi um “acidente”, a Vale sabia que algo poderia acontecer e colocou o lucro acima das pessoas.
Para mim, isso também ilustra a importância do que podemos chamar de “justiça ambiental”: não podemos separar a exploração do meio ambiente da opressão das pessoas. E que temos que falar sobre como classe (e também raça) estão relacionados.
Cada vez mais, as corporações são globais e mesmo que sejam de base local/nacional fazem parte de um projeto global de capitalismo e capital financeiro/finanças especulativas. O sistema é voraz e não tem limites. As corporações – muitas vezes apoiadas pelos Estados – podem comprometer a vida e a saúde humana e não humana para obter lucros. Embora os detalhes possam parecer diferentes, é a mesma história em todo o mundo.”
A pesquisadora também falou que na sua percepção, uma diferença entre o Brasil e os Estados Unidos é que os Estados Unidos não existem movimentos e militância tão organizados como no Brasil. Desta forma, citou que as principais reações da classe trabalhadora ao incidente seriam de movimentos ambientalistas que estariam pressionando por reparações, como o Sunrise Movement; ONGs que estão organizando petições para parlamentares, como Center for Coalfield Justice, e pessoas que estão organizando formas de ajuda mútua para levar alimentos e água para as populações próximas à contaminação.
_________________
1 Caitlin Schroering é PhD em Sociologia pela Universidade de Pittsburgh e Mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade da Flórida. Professora assistente no Departamento de Estudos Globais da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte. Sua pesquisa se concentra em várias áreas de investigação social, incluindo sociologia ambiental, conflitos de recursos, direito humano à água, economia política e movimentos sociais transnacionais, usando métodos de pesquisa feminista e anticolonial. Há mais de 16 anos atua em organização comunitária, política, ambiental e trabalhista/sindical.