Foto: Jorge Méndez Blake
Martim Campos – Redação UàE – 12/08/2020 – Publicado originalmente em Universidade à Esquerda
“Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente vamos nos confundir e nos perder; não saberemos a quem nos unir, a quem seguir; o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Incomodamo-nos até em ser gente, gente com corpo e sangue real, próprio; temos vergonha disso, consideramos uma ignomínia e fazemos de tudo para ser uma espécie inexistente de homens gerais.”
Dostoiévski
Com o projeto do ministro Paulo Guedes para a Reforma Tributária em trâmite no Congresso em regime de urgência, começou uma polêmica discussão na semana passada (05/08) sobre a possibilidade da cobrança de tributos para os setores editoriais do país, devido ao novo Projeto de Lei nº 3.887/2020 que está sendo tramitado atualmente no Congresso Nacional em sua primeira etapa.
Isto se dá pois foi aberta uma nova brecha para a cobrança com a unificação de impostos federais sobre o consumo, chamada de Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), um imposto do tipo “valor agregado” (IVA) que substitui os tributos PIS (Programa Integração Social) e o COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). A brecha para a cobrança apareceu anos atrás quando os tributos de contribuições sociais foram criados, mas mais uma vez, foi garantida a isenção de pagamento para o setor, com alíquota zero estabelecida pela lei 10.865, de 2004.
Essa isenção da cobrança de tributos e impostos tem seu respaldo desde seu estabelecimento na Constituição com o art. 150, pautando-se na necessidade de tornar o livro e a imprensa acessíveis para as camadas mais amplas da população, especialmente as mais pobres, argumento apontado pelo Manifesto “em defesa do livro”, escrito pelas Entidades representativas do livro:
“A mudança constitucional possibilitou a criação e o desenvolvimento das bibliotecas públicas no país, beneficiando as pessoas de menor poder aquisitivo e permitindo que o mercado editorial passasse a ter condições de publicar obras de alto valor intelectual e pedagógico, muitas delas sem apelo comercial, a custos compatíveis com o poder aquisitivo do leitor médio. Não há dúvidas de que a popularização do livro teve, e ainda tem, papel fundamental no aumento da educação do brasileiro.”
trecho do Manifesto
Com o novo projeto da CBS, a lei que garante a isenção do pagamento deixaria de existir, encarando agora uma alíquota geral de 12%. A cobrança entretanto é menor para instituições financeiras, que incluem bancos, planos de saúde e seguradoras— que poderão manter a forma de apuração antiga com alíquota de 5,8%.
Na audiência, o ministro argumentou que a isenção dos livros beneficia aqueles que os compram pois são justamente os que poderiam pagar mais impostos. Em sua fala transparece a visão que ele possui e vislumbra para a educação e cultura: os livros fazem parte de um luxo, um excedente que não se enquadra nas necessidades básicas de um cidadão. E já que não estão dentro dessa categoria, todos aqueles que têm acesso aos livros são os que poderiam estar pagando taxas, pois os mais pobres “num primeiro momento, quando fizeram o auxílio emergencial, estavam mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos”. A medida pensada para os mais pobres seria a de aumentar o valor do Bolsa Família, e para compensar o fim da isenção, pensar na criação de um programa de doação de livros.
A discussão sobre cobrança de tributo ocorre no momento em que a venda de livros começa a mostrar uma pequena recuperação diante da pandemia do coronavírus. As livrarias que foram bruscamente afetadas durante a pandemia tiveram uma queda de 70% nas vendas durante os meses em que estiveram fechadas. E as pequenas tiveram pouca ou nenhuma conversão de vendas físicas para on-line. Entretanto, com a pesquisa recente do Snel mostra que, no período de 18 de maio a 14 de junho deste ano, o setor livreiro teve faturamento de R$ 109 milhões, um crescimento de 31% em relação ao mês anterior. Grande parte das editoras neste momento tentam recuperar suas vendas recorrendo as formas alternativas de produção como obras com vários autores, financiamento coletivo e compras antecipadas por parte dos leitores em potencial.
Após essa pequena recuperação, com a nova tributação os setores vão receber ainda mais pressão, com editoras pequenas correndo mais risco de fecharem as portas, com os livros de baixa tiragem cada vez mais restritos junto com a possibilidade do acesso aos livros em geral por parte da população, pois a mudança certamente influencia no preço, que se é um produto parcialmente elitizado, será ainda mais exclusivo para uma certa parcela da população.
A solução abstrata de “doação de livros aos mais pobres” proposta pelo ministro como uma saída para o impasse é claramente um complemento do projeto, uma vez que tem como pauta a escolha do material que seria doado para a população – não se trata aqui de garantir acesso ao conhecimento voluntário e geral. Um caso muito diferente de doação de livros para a população ocorreu no início da pandemia, quando o prefeito de Montevidéu ao distribuir as cestas básicas inclui livros de diversos autores clássicos mundiais, nacionais e contemporâneos, como um sinal de que a cultura faz parte das necessidades primordiais da população.
Em um país que já possui parcas políticas de incentivo a leitura e visa dificultar ainda mais seu acesso, com índices desastrosos de educação permeados por interesses privatistas apresenta agora um projeto que confirma sua visão de que a cultura é um artigo que deve ser mantido nas mãos de poucos.