Cartazes contra reitor-interventor no Cefet-RJ. Foto: Paladinum2. Montagem: UàE.
Nina Matos – Redação UàE – 25/09/2020
Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.
Desde o início de seu mandato, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) já nomeou 13 interventores em instituições federais de ensino superior (IFES) de todo o país, seja através da nomeação de candidatos derrotados nas consultas públicas, seja através de candidatos que sequer concorreram.
Da herança da ditadura aos atuais processos de intervenção
O processo de nomeação de reitores, desde a ditadura militar, se dá em última instância pelo Presidente da República. Em 1995, se adicionou a possibilidade de consultas prévias à comunidade universitária, mas a palavra final até hoje segue sendo do governo federal. Nas últimas décadas, porém, o mecanismo legal de intervenção não era utilizado e se nomeava o primeiro colocado das listas tríplices.
Para constituir a lista tríplice, normalmente se faz uma eleição com a comunidade (legalmente chamada de “consulta”) e, com base nesse resultado, o conselho máximo da instituição indica os nomes na lista de acordo com sua colocação na consulta.
Há variações nas diferentes IFES tanto na questão dos votos quanto na composição de lista tríplice. Nos institutos federais geralmente envia-se apenas os nomes referentes a chapa mais votada. No caso da Universidade Federal do Paraná (UFPR) é tradição que as chapas derrotadas no processo se retirem autonomamente da lista tríplice. Em ambos os casos, adota-se mecanismo que visam impedir qualquer nomeação contrário à escolha da universidade.
A contagem de votos também sofria variações em relação a disparidade dos votos, sendo algumas paritárias.
A partir da Medida Provisória (MP) 914/2019 instituída por Bolsonaro, os processos passaram a ser padronizados. Foram definidos pesos nos votos de cada categoria (70% para docentes, 15% para técnicos e 15% para discentes) e a obrigatoriedade do envio das três chapas mais votadas na consulta para a composição da lista tríplice — que não será mais elaborada dentro dos órgãos máximos de deliberação das IFES.
Além disso, a MP determinava que a nomeação de diretores de centros, campi, etc. se darão não mais pela consulta à comunidade, sendo definidas por indicação do próprio reitor.
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A MP 914/2019 teve sua vigência encerrada no dia 1º de junho deste ano, pois não passou pela aprovação do Congresso Nacional. Medida Provisória é outro mecanismo herdado da ditadura militar. Trata-se da transformação do antigo mecanismo de “Decreto-Lei”, que dá poder unilateral ao executivo decretar medidas sem passar pelo crivo do poder legislativo. No caso da MP, ela é válida por 60 dias e pode perder a validade se o Congresso Nacional não aprová-la dentro deste prazo.
Outra medida adotada por Bolsonaro contra a autonomia das IFES foi a MP 979/2020, publicada no Diário Oficial da União (DOU) no dia 9 de junho, uma semana após o vencimento da MP 914. Com essa MP os processos de consulta à comunidade para o cargo de reitor e vice foram suspensos, valendo para todos os mandatos que encerrarem em meio à pandemia. Assim, cabe ao MEC a decisão de nomear reitores e vices a seu critério.
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O histórico de intervenções nas IFES
No dia 11 de junho de 2019, o MEC, ainda sob o nome de Weintraub, nomeou a primeira intervenção em reitoria do governo Bolsonaro. A consulta, realizada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), não foi reconhecida pelo MEC, que alegou irregularidade na definição dos nomes e conferiu a Mirlene Ferreira Macedo Damázio o cargo de reitora pro tempore. Este foi o primeiro marco nas intervenções que se tornaram habituais neste governo.
A partir de então, o governo Bolsonaro rompeu com uma tradição que fora respeitada por todos os presidentes há pelo menos 15 anos.
No dia 18 de junho de 2019, Bolsonaro publicou no DOU a nomeação de Fernando Resende dos Santos Anjo, o segundo colocado na consulta, como reitor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), um golpe na escolha foi dado pelo próprio Colégio Eleitoral, ao colocar Ricardo Silva Cardoso como primeiro colocado na lista tríplice. Na consulta à comunidade, Leonardo Villela de Castro havia sido o candidato mais votado. No mesmo DOU que nomeou o interventor da UFTM também foi publicado a nomeação de Cardoso para reitor da Unirio.
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Em 1º de agosto de 2019, cinco meses após o envio da lista tríplice, a Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) teve nomeado o terceiro colocado na disputa como reitor da instituição, o professor Fabio Josué Santos.
No dia 10 do mesmo mês, na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) passou pelo mesmo que a UFRB, tendo no DOU a publicação da nomeação de Janir Alves Soares, também terceiro colocado da lista.
Ainda em agosto, no dia 15, o MEC nomeou como pro tempore do Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (Cefet-RJ) Maurício Aires Vieira. A decisão veio após a chapa perdedora do processo de consulta ter contestado o resultado. Weintraub, então, abriu uma sindicância, que correu sob sigilo. A nomeação do pro tempore supostamente deveria ter durado apenas o tempo em que corresse a sindicância, contudo, mesmo após seu arquivamento, o interventor continuou no cargo.
Aires sequer era ligado à instituição, o que causou revolta entre toda a comunidade, que compreendeu sua nomeação como claro aparelhamento, visto que Aires era assessor de Weintraub.
Em 19 de agosto de 2019, José Cândido de Albuquerque foi anunciado como reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Albuquerque foi o terceiro colocado da lista tríplice. O primeiro colocado da lista, segundo a Associação de Docentes da UFC (ADUFC), recebeu dez vezes mais votos que o empossado na consulta pública e quase o triplo na votação do Conselho Universitário.
No dia 30 de agosto, a chapa de Marcelo Recktenvald para a reitoria da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) foi nomeada para o cargo, apesar de ter sido o menos votado, com 4 votos apenas no Conselho Universitário. O anúncio foi recebido com indignação por parte da comunidade. O prédio da reitoria foi ocupado, estudantes deflagraram greve e o Conselho Universitário aprovou, por maioria dos votos, a destituição de Recktenvald.
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Já em 2020, no dia 23 de março, através do DOU a comunidade da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) soube da nomeação de Paulo Sérgio de Paula Vargas, que estava empatado com outro professor no segundo lugar da lista tríplice. Ethel Maciel, a candidata mais votada pelo Conselho, deveria ser a primeira reitora da Ufes.
Os três nomes que entraram na lista tríplice já haviam discutido a possibilidade de uma intervenção por parte do governo. Vargas a princípio sairia ao lado de Maciel, contudo, em uma manobra para evitar a entrada de nomes ligados ao governo Bolsonaro, decidiram fazer candidaturas separadas. Após a nomeação de Vargas, Maciel declarou apoio e confiança. Todavia, a decisão não deixa de ter sido oposta a escolha do Conselho.
No dia 17 de abril, Josué de Oliveira Moreira foi nomeado pelo MEC, através de uma portaria, como reitor pro tempore do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Devido a demora da nomeação do reitor mais votado na consulta pública, o professor José Arnóbio de Araújo Filho, a comunidade do IFRN já temia pela intervenção.
Poucos dias depois, em 20 de abril, o Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) também sofreu o golpe da nomeação de um pro tempore, André Dala Possa. Após a consulta pública, na qual Possa havia sido derrotado por Maurício Gariba Júnior, o MEC nomeou Lucas Dominguini, que sequer havia participado do processo, como reitor pro tempore. Dominguini, após pressão, rejeitou a nomeação e Possa foi nomeado.
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Em 21 de agosto, numa visita de Bolsonaro a Mossoró (RN), o presidente anunciou que havia publicado no DOU a nomeação de Ludmilla Carvalho Serafim de Oliveira como reitora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), terceira colocada na consulta pública realizada em junho deste ano. Em uma live, antes de sua nomeação, Ludmilla havia declarado que aceitaria ser nomeada mesmo sem a maioria dos votos e que os que os insatisfeitos deveriam retirar-se da Ufersa.
A comunidade acadêmica reagiu à intervenção e se manifestaram contrários a sua posse. Contudo, Ludmilla abriu um inquérito na Polícia Federal (PF) contra a coordenadora geral do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da instituição, alegando calúnia e difamação.
Até o momento, a última intervenção realizada pelo governo Bolsonaro aconteceu no dia 15 deste mês, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Por decreto, Carlos André Bulhões Mendes, terceiro colocado na lista tríplice, foi nomeado reitor.
A comunidade acadêmica da UFRGS, reagindo à intervenção, realizou um ato no dia 17, contando com intervenções artísticas e uma caminhada da universidade à escola do Estado do Rio Grande do Sul.
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Há ainda a possibilidade de mais uma intervenção estar à caminho: na Universidade Federal do Paraná (UFPR), desrespeitando a tradição da universidade, a chapa de Horácio Tertuliano dos Santos e Ana Paula Cherobim se recusam, até o momento, de retirar-se da lista tríplice. Ambos são apoiadores de Bolsonaro, envolvidos inclusive em polêmicas sobre a cloroquina e declarações xenófobas contra a China.
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A intervenção é institucionalizada no Brasil
Com o fim do sistema de catedráticos, em 1968, no período da ditadura militar, a escolha dos dirigentes das IFES passou a ser prerrogativa do governo militar, que nomeava com base um representante numa lista de seis nomes indicados pelos respectivos colegiados.
Em 1995, passou a ser admitido “consultas prévias à comunidade”, cujo resultado pode orientar a escolha a ser feita pelo colegiado máximo da instituição. Os três nomes escolhidos (lista tríplice) são enviados ao presidente da República para indicar o reitor.
Como resquícios da ditadura, o próprio ato de nomeação por parte da presidência da república fere a autonomia universitária, mesmo que seja respeitada a consulta pública realizada entre a comunidade universitária.
Desde a redemocratização, não houveram projetos ou qualquer proposta de alteração dessa lei, mantendo a possibilidade de intervenção contra a universidade sempre em aberto, para que, num momento que exija do Estado ações contra a autonomia dessas instituições, ela pudesse ser efetuada sob o manto das leis.
Portanto, nossa a luta contra as intervenções nas IFES precisa estar atenta ao que constitui o fundamento daquilo que enfrentamos hoje. O problema que é existir prerrogativas que tolhem a autonomia das instituições que, por essência, não devem estar amarradas a Estado algum.