Montagem: UFSCàE
Martim Campos – Redação UFSC à Esquerda – 03/09/2021
Em diversos textos recentes publicados aqui no Jornal, são apontadas como as contrarreformas que estão passando atualmente nos Conselhos de Graduação, Pós-Graduação e Conselho Universitário tem vínculos com uma lógica privatista de gestão, de inserção cada vez maior das fundações e convênios na universidade e tem seu debate tratorado por conselheiros da base da Reitoria e pelo próprio Reitor.
Pouco são tratados os cortes orçamentários aprofundados neste governo Bolsonaro. Pelo contrário: há uma constante reinvindicação de que é preciso atender exigências da CAPES, de inovação e internacionalização como se fossem um dado óbvio e não uma escolha política. Neste texto, pretendo colocar alguns elementos sobre as propostas e rumos que a universidade está tomando por conta dessa gestão e sobre o papel e importância da luta estudantil neste cenário atual.
A forma fragmentada de passar reformas nos órgãos públicos sem um debate detido sobre o caráter das políticas implementadas pela Reitoria é estratégica para passar a toque de caixa propostas de alteração nos cursos de graduação, como é o caso das curricularizações da extensão e a implementação permanente do ensino remoto em cursos presenciais; além de também mudar o sentido da pós-graduação com as novas alterações aprovadas no Conselho Universitário.
As saídas apresentadas como resposta aos interesses econômicos ao redor da universidade devem ser debatidas cada vez mais, pois com tanto tempo de medidas contingenciais para a educação, grande parcela do que conhecíamos da universidade não estará mais lá quando retornarmos para a UFSC.
A primeira constatação a ser feita é a de que a luta pela universidade não é apenas contra os cortes e contingenciamento de gastos, mas com o horizonte de desmonte como política em geral, que provoca o desmantelamento completo tanto do sistema de financiamento da universidade (afetando a autonomia universitária que há anos sobrevive de emendas parlamentares para pagar suas contas), como o sistema de produção e pesquisa, além de um rebaixamento por completo da função universitária para demandas do mercado, tolhendo sua principal função em uma sociedade: a produção de um conhecimento crítico, que vai contra os relógios acelerados dos resultados.
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O Reuni Digital volta outra vez com a mesma promessa rebaixada de expansão do acesso à universidade sem qualquer verba ou qualidade para isso, com a função docente substituída por plataformas digitais através dos “bancos de aulas” e laboratório virtuais. A legitimação do ensino remoto durante a pandemia pela adesão das universidades ao modelo implicou uma maior aceitação deste, que a princípio teria um caráter apenas passageiro, mas que virou a oportunidade esperada dos grandes oligopólios educacionais que já tinham pretensões para “novos rumos da educação”. Mas é isso que desejamos para a universidade, uma formação onde a produção intelectual não mais se configura enquanto contraposição e soluções para as condições cada vez mais miseráveis as quais estão submetidas a classe trabalhadora hoje?
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Além da completa alteração que a universidade pode sofrer com implementação remota definitiva (algo que está claro nas discussões da Câmara de Graduação sobre a transposição de 40% da carga horária dos cursos para a educação à distância), está sendo discutido o Ensino Híbrido Emergencial. Segundo o MEC, o retorno híbrido é a possibilidade de retorno presencial de algumas atividades junto com a manutenção das atividades de forma remota.
Este também é colocado da mesma forma urgente de atender necessidades atuais, por conta de cursos que possuem créditos de prática em hospitais, clínicas e laboratórios e que não podem ser adaptados remotamente, como é o caso dos estudantes da saúde por exemplo, que precisaram atrasar suas formações pela impossibilidade de realizar aulas práticas.
O que acontece por consequência é que ao priorizar quais atividade devem ou não ser realizadas presencialmente, se reforça quais atividades podem ou não ter maior prioridade para o presencial, com as velhas dicotomias reforçadas entre teoria e prática. O que fica de questão é que qualquer escolha tomada pela universidade nesses tempos, onde algumas atividades foram adaptadas por conta do contexto pandêmico, precisariam ser tratadas com maior compromisso e seriedade, e isto é feito com no mínimo um amplo envolvimento de todos aqueles que constroem a instituição nessa escolha tais como os estudantes, docentes e técnicos.
A forma de decidir as políticas universitárias com base nos formulários institucionais e consultas de opinião não trazem nenhum debate, não apresentam discussões políticas sérias. De fato não há pretensão disso com as poucas perguntas colocadas dar conta de compreender essa experiência e seu sentido educacional. Realizar consulta pública não é o mesmo que fomentar discussões ou garantir o protagonismo de todos os que fazem parte da comunidade acadêmica nessas escolhas. E por protagonismo entende-se mais do que apenas inserções de representantes discentes em comitês de trabalho.
Com a falta de discussão sobre o ensino remoto e com as tentativas de mostrar com resultados de formulários que o ensino remoto foi “bem sucedido”, quais barreiras serão colocadas para que não seja implementada essa modalidade no pós-pandemia? Quais as contraposições e resistências ainda temos dentro da universidade?
Mesmo com evidências que contradizem a implementação do ensino remoto por sua descaracterização do trabalho docente e precarização do ensino, existem sucessivas tentativas de associar as críticas à implementação dessas tecnologias permanentemente na universidade como um conservadorismo e resistência à mudança, ou diminuir para uma questão de princípios despreocupada com os desafios atuais, ou ainda como uma “má vontade de quem não quer ver o copo meio cheio”. Evidente que não se trata de nenhuma destas questões quando defendemos a universidade pública e de qualidade. Existem estudos na área da educação há anos sobre o ensino à distância e seus impactos. Além disso, a utilização de tecnologias em sala de aula e “inovação” não devem ser dissociadas da discussão sobre a política por trás de cada escolha feita.
Teríamos muito o que discutir enquanto comunidade e muito pelo que se revoltar sobre o que esta experiência tem significado para nós. Algo que ficou claro durante o ensino remoto foi apontado no texto de Maria Alice de Carvalho e Nina Matos: tivemos prejuízos como um todo em nosso ensino. É cotidiana a fadiga e sensação de frustração entre estudantes e docentes com aulas transpostas para moodle e fóruns, aulas gravadas sem debates síncronos, e por isso uma dificuldade cada vez maior para criar vínculo entre colegas, entre outras insatisfações que surgem neste modelo limitado. Mas independentemente de uma avaliação pessoal deste modelo, ou seja, ainda que grande parte estivesse ou não satisfeita com o ensino remoto, é preciso debater enquanto comunidade para realizar uma avaliação acurada sobre o que este modelo transformou e como transforma nossa educação e pesquisa.
Um ponto que podemos apontar sobre este ensino é seu caráter individualista que empurra discentes para a aprendizagem de competências, habilidades e maior flexibilidade para a adaptação ao modelo de ensino. A elaboração coletiva dos conhecimentos, as dúvidas e até mesmo críticas aos conteúdos ficam cada vez mais difíceis em um sistema onde não conseguimos conversar e elaborar em outros espaços com colegas, e até mesmo em sala de aula. E para além do isolamento que cada um pode sentir dentro deste modelo, o fato de ser cada vez mais difícil a produção de críticas de interesse geral da sociedade nos deixa sem perspectivas de uma sociedade distinta.
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Em 2019, as manifestações contra o ataque privatista do governo Bolsonaro nas Universidades foi imensa. Exatamente há 3 anos, mais de cinco mil pessoas se reuniram em assembleia na UFSC, lotando o auditório Guarapuvu e toda a frente do centro de cultura e eventos da UFSC, em oposição ao Future-se na sua integralidade, sem quaisquer concessão ou negociações. Relembrar nossas lutas é importante para que não esqueçamos da força que podemos ter em nossas contraposições e embates com aqueles que não desejam como nós uma universidade verdadeiramente democrática, pública e de qualidade.
Sabe-se da dificuldade atual da mobilização em um espaço virtual. Mas mesmo diante desta dificuldade de reinvenção e imaginação política na luta estudantil, não se pode perder de vista o horizonte áspero para os planos da instituição, com a possibilidade de manutenção da situação remota e brechas maiores de parcerias privadas.
O Ensino Remoto Emergencial e agora a proposta de Ensino Híbrido Emergencial são cada vez menos uma solução temporária para um problema colocado como urgente de retorno de atividades de ensino. Podemos pensar na outra acepção do conceito enquanto aquilo que é emergente: nos deparamos com a emergência de uma nova universidade, cujo terreno de consolidação está sendo preparado há anos diante dos cortes em seu orçamento e com a inserção maior do capital privado.
O debate que Morgana Martins faz em seu texto “A luta pela universidade não pode ficar em segundo plano”, com base em ideias do autor Luiz Antônio Cunha, traz um elemento importante para pensarmos sobre a urgência de discutirmos a função da universidade pública, que deveria se libertar de ser mera projeção de uma empresa, sindicato, ou partido. A universidade e seu papel foi pouco discutida desde sua inserção no Brasil e até hoje são escassas a discussão desta e sua função na sociedade em cursos tanto de graduação quanto de pós. Mas essas elaborações do sentido e luta pela universidade precisam de espaços públicos e partilha coletiva para conseguirem seu espaço, precisam de disciplinas sobre este assunto, pois estes sentidos não se fazem individualmente. Também não faz sentido limitar nossa luta pela universidade e o que ela poderia ser sob os termos impostos atualmente.
Com a lição cara e ainda atual para nós sobre a Reforma de Córdoba, aprendemos que é preciso disputar uma produção de conhecimento que esteja à altura dos dilemas de nossa época e de interesse geral. A luta pela universidade pública é uma forma de defender que esta não fique presa por trás de seus muros e interesses privados quando estamos defendendo-a para que sirva no avanço de sua capacidade crítica diante dos dilemas que a classe trabalhadora enfrenta.
A luta não é apenas dos estudantes, mas de toda a comunidade que a constitui. Entretanto, sabemos pelo histórico de luta na universidade que é a categoria estudantil que pode puxar as lutas por menos atrelamento com riscos de perder algo na luta, sem cargos a arriscar.
Por fim, gostaria de destacar dois pontos sobre a luta estudantil pelo sentido da universidade. Como já colocado, não existem saídas fáceis. O modelo de ensino dificulta nossa organização estudantil, o papel da universidade é pouco debatido em toda a sua radicalidade e invenção, entre outros desafios. Mas a luta pelo sentido da universidade também deve ser colocada enquanto construção de um sentido coletivo sobre ela.
Além da clareza sobre querermos uma universidade verdadeiramente autônoma de produção do seu conhecimento, com capacidades de crítica que desvelem os problemas já colocados para nossa classe por conta da dinâmica do capital, a luta deve ser um terreno de avanço das propostas e ideias sobre o papel da universidade que queremos. E principalmente: nossa luta deve incomodar novamente, tensionar novamente enquanto um problema potencial para as classes dominantes devido à sua capacidade de mobilização e relevância no interior da vida pública.
Termino com um trecho do professor e filósofo brasileiro Vladimir Safatle sobre a universidade enquanto setor capaz de criar problemas e de espaço do saber crítico:
Assim, há de se admitir que a única possibilidade de sobrevivência da universidade passa por nossa capacidade de recuperar a força de mobilização e influência, ou seja, de sermos um setor da sociedade civil capaz de criar problemas. Se é fato que a universidade procura ser espaço de circulação do desejo de saber como condição fundamental para a consolidação da crítica, que ela defende o desejo de saber como condição para a crítica, então há de se perguntar se temos as condições reais de desenvolver a força emancipatória de tal desejo. Saber defender um certo desejo: esta é talvez nossa tarefa efetiva. Pois da universidade, resta apenas um mal-estar em relação às imposições do presente. No entanto, este mal-estar é o que nossas sociedades têm de mais real.
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