Instituto Central de Ciências, o Minhocão, na década de 1960. Foto: Arquivo Cedoc / UnB

[Opinião] A luta pela universidade não pode ficar em segundo plano

Instituto Central de Ciências, o Minhocão, na década de 1960. Foto: Arquivo Cedoc / UnB

Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.

Morgana Martins* – Redação UàE – 01/06/2021

Cortes, contingenciamento de gastos, falta de repasses… Grande parte do debate sobre a universidade atualmente se resume a esses aspectos, já que isso tem sido candente do que faz a classe dominante sobre a universidade, nas políticas de desmonte que não são novas, mas parecem se intensificar no governo de Bolsonaro. Bem, mas e o que fazemos nós, que estamos radicalmente do outro lado, pela universidade? 

O texto tem por objetivo apontar alguns elementos histórico sobre a universidade e esboçar a ideia de que a maior parte da esquerda coloca em segundo plano a luta por uma universidade diferente, mais crítica, atrelada à cultura, à ciência e à classe trabalhadora. No lugar disso, se limita a defendê-la do jeito como está, se limitando à sua defesa em relação aos ataques.

Pensando sobre a universidade com Luiz Antônio Cunha

As universidades no Brasil tem uma história longuíssima, marcada por contradições, detalhes e dinâmicas que fazem parte de um país dependente como o nosso. E alguns desses elementos gostaria de trazer aqui, retirados de obras de Luiz Antônio Cunha. 

Segundo o autor, a primeira existência do ensino superior no Brasil ocorreu na época de Colônia em colégios jesuítas. Com sua expulsão pelo reino português, esses cursos passaram para a responsabilidade dos conventos franciscanos, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. 

Foi com a transferência da sede do reino português para o Brasil, em 1808, que iniciaram-se as criações de instituições estatais de ensino superior. Seus resquícios são as Universidades Federais do Rio de Janeiro e da Bahia. 

A partir de 1889, os governos republicanos, marcados pelo liberalismo e positivismo, não tinham interesse em manter a exclusividade do Estado no ensino superior. Entretanto, os professores dessas instituições eram ligados ao governo e não recomendavam a passagem das universidades ao setor privado. 

A saída para esse “impasse” foi a legitimação do ensino superior não federal em igualdade de condição com o federal, mediante o mecanismo de reconhecimento dos cursos pelo Estado. Inclusive, as instituições privadas foram beneficiadas por dispositivos da Constituição de 1934 e das que a seguiram, inclusive na de 1988, que as isenta de todos os impostos (federais, estaduais e municipais) sobre o patrimônio, a renda e os serviços prestados.

A primeira instituição duradoura foi a Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920 a partir da reunião das faculdades federais de Medicina e de Engenharia (cátedras criadas em 1808 e 1810), e de uma faculdade de Direito. Esse foi o modelo para a quase totalidade das universidades criadas posteriormente.

Assim foi também com a Universidade de Minas Gerais, criada em 1927 por iniciativa do presidente do estado. Essa universidade se deu a partir da reunião das faculdades de Engenharia, Direito, Medicina, Odontologia e Farmácia, já existentes em Belo Horizonte. 

Luiz Antônio Cunha discute que nessas duas universidades a autonomia universitária era apenas uma palavra decorativa, já que os recursos governamentais eram destinados diretamente a cada faculdade e seus diretores eram escolhidos pelo presidente da República ou pelo presidente do estado. Além disso, havia o controle dos currículos de cada curso. Pouco mudou em relação ao que é hoje. 

O segundo modelo de universidade brasileira se constitui de forma diferente, criada a partir da diferenciação de uma única faculdade, a Escola de Engenharia de Porto Alegre, que tinha sido criada em 1896, com recursos de doação privada que permitiram a contratação de 50 professores estrangeiros, principalmente alemães. Trata-se da Universidade do Rio Grande do Sul. 

A Universidade de Brasília, terceiro modelo de universidade, foi a única que não resultou de faculdades preexistentes. Sua estrutura foi antecipada por um projeto global e teve sua fundação em 1962. A nova universidade, além de possuir objetivo de formar quadros para a burocracia do Estado, deveria abranger todos os campos de saber, sendo capaz de influenciar no rumo das outras universidades, na tentativa de trazer outro sentido para as universidades.

Durante a ditadura militar, as universidades públicas mudaram consideravelmente com a construção de campus suburbanos; instauração do trabalho docente em tempo integral; a fusão entre as unidades de ensino e de pesquisa; a profissionalização da função docente; a extinção do regime de cátedras e consequente departamentalização. Esses processos foram rápidos e intensos na modificação institucional da universidade. 

Cunha trata ainda que como efeitos perniciosos da ditadura, foram apresentadas as demissões de reitores, as expulsões de docentes e de estudantes, a montagem das assessorias de informação policial, a burocratização da vida universitária e, além disso, o regime de créditos para enfraquecer o movimento estudantil. 

Essas heranças nós carregamos até hoje. Exemplo mais marcante é a escolha de reitores das universidades pelo Poder Executivo através das listas tríplices. 

O que esse panorama nos mostra? 

Em primeiro lugar, podemos perceber como a ideia do que é uma universidade no Brasil é fragmentada e pouco discutida. Além das reformas que ocorreram nos anos 60 e 70 e posteriormente nos anos 90, existem aquelas que não são reconhecidas como tal, mas que dizem respeito à modificação de sua função de acordo com os objetivos da classe dominante em cada conjuntura. 

Em segundo lugar, vemos como o público e o privado se mesclam no ensino superior, ao ponto de que suas fronteiras em movimento deixam brechas para que percamos de vista a universidade e seu papel. Segundo Luiz Antônio Cunha, o ensino público mostra um altíssimo grau de seletividade, abrindo espaço para a expansão do ensino privado de baixa qualidade e com fins apenas profissionalizantes, de fornecimento de certificados.

Em relação aos dois pontos citados acima, em artigo intitulado “Vitória do EaD ou do Capital?”, Olinda Evangelista, Allan Kenji Seki e Artur Gomes discutem como desde o governo de Collor a classe dominante mostra seu projeto que, independente de projetos presidenciais, é um movimento da esfera econômica e política que exigia da burguesia interna medidas para aumento de taxas de juros, cortes nos investimentos públicos, privatizações e aumento de entrada de mercadorias estrangeiras. 

Isso, com certeza, refletiu nas políticas para a educação superior. Os anos 90 foram marcados pela abertura dos mercados e desregulamentação financeira, permitindo maior liquidez para capitais internacionais e intensificação da concentração de capitais. A partir disso, as empresas educacionais aumentaram seu tamanho e influência, nas quais as fusões e aquisições se tornaram a norma operacional.

Em sequência disso, vemos alterações importantes sendo realizadas nas políticas para a educação superior no Brasil, sobretudo após a aprovação da Constituição Federal (CF) de 1988 e, especialmente, após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, lei sancionada por Fernando Henrique Cardoso e que normatiza, em nível federal, a educação a distância.

Em 2005, o projeto Universidade Aberta do Brasil (UAB) é criado pelo Ministério da Educação e, em 8 de junho de 2006, o Sistema UAB é instituído pelo Decreto nº 5.800 para o desenvolvimento da modalidade de educação a distância, com a finalidade de expandir e interiorizar a oferta de cursos e programas de educação superior.

Abre-se, a partir disso, uma nova ideia do que pode ser a universidade, baseada no modo de sua realização, com forte intervenção estatal para que, posteriormente, fossem as empresas privadas, através de conglomerados educacionais, que se aproveitassem disso para seu próprio avanço nas políticas educacionais. Vemos nesse entrelaçamento o quanto o privado e o público estão lado a lado.

Em terceiro lugar, deve-se pensar em como as lutas políticas na universidade não conseguem ir além. Pego para essa ideia a discussão muito interessante que Cunha realiza, se diferenciando daqueles que tentam fazer com que a universidade seja uma miniatura da sociedade, um reducionismo tão inadequado quanto pretender que ela seja a projeção de uma empresa, de um partido ou de um sindicato, diz ele. Ou seja, democracia, autonomia e outros aspectos da luta política na universidade não são o mesmo que fora dela. 

É importante lembrar que a luta histórica das universidades diz respeito à autonomia na produção e disseminação do conhecimento; autonomia do conhecimento  em relação ao Estado, ao governo, ao mercado, à igreja e até mesmo em relação aos partidos e sindicatos.

O cenário que temos hoje é de que a esquerda pouco avançou nas discussões sobre a universidade. Não há reflexão em relação ao que pode ser um projeto conciso, crítico e atrelado a uma verdadeira autonomia para essa instituição. 

Quem dá os rumos de discussões é mesmo a classe dominante; dá as pautas enquanto nós buscamos “responder” a isso, “defender” a universidade disso ou daquilo. De repente, parece que nós somos os conservadores das coisas como elas foram ou são, sem fazer avançar nossas lutas nem um passo. 

O cenário da universidade e da pesquisa

É analisando o passado que conseguimos olhar para os acontecimentos históricos e compreendê-los com mais profundidade. Com esse panorama, vimos o quanto a criação e expansão da ideia de ensino a distância através da universidade pública fez parte de um projeto de abertura de um novo ramo de lucro para os capitais privados.

O cenário que temos hoje, esse momento gravíssimo para as universidades brasileiras com a adesão ao ensino remoto, a fragilidade da autonomia universitária e o avanço dos projetos dos grandes conglomerados educacionais nas políticas para a educação é realmente preocupante. 

Já em 1997, Cunha escrevia em seu artigo “O público e o privado no Ensino Superior Brasileiro” que 60% dos estudantes de graduação estavam matriculados em instituições privadas.

Segundo matéria da Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2017, 8.286.663 alunos estavam matriculados em uma Instituição de Ensino Superior (IES). Destes, 2.045.356 (24,7%) na Rede Pública (IES Federais, Municipais ou Estaduais) e 1.120.804 (13,5%) em uma Universidade Federal. Ou seja, a grande maioria ainda ocupa as universidades, faculdades e centros de ensino privados.

Avançamos no debate sobre a universidade tratando de que esse cenário não faz parte somente de um momento excepcional de pandemia, pois é impossível que algo aconteça sem deixar marcas. Nós não temos a mínima ideia de como estará a universidade quando voltarmos a pisar nela. 

Temos de pensar que os cortes e a falta de financiamento não significam apenas a falta de dinheiro do Estado, ações isoladas; mas a colocação em movimento de um projeto de transformação do que é a universidade, do seu sentido. Transformação essa que vivemos cotidianamente, sentimos na nossa pele, mas talvez ainda não consigamos transpor para ações e palavras. 

Quem sabe esse estrangulamento da universidade possa fazer parte da política de pressão para que a pós-graduação se torne inteiramente privada ou inteiramente a distância. Lembremos que foi em 2019 que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) passou a aprovar cursos de mestrado a distância.

A pesquisa no Brasil tem um presente e um futuro dramáticos, com exigências cada vez maiores de produtividade, empurrando os estudantes a se incorporarem a uma lógica diferente da que deveria ser.

Esse momento de ensino remoto pode colocar em voga a incorporação, de maneira permanente nos cursos, da experiência com as tecnologias de forma que estas passem a organizar e mudar o sentido do processo de ensino, ao normalizar a substituição da relação de troca e construção de conhecimentos pela mera realização de tarefas, ao utilizar plataformas auxiliares como estruturantes das disciplinas e não só para passar textos e materiais complementares às aulas. 

Além disso, fica naturalizada a abertura para que eventuais aulas remotas sejam implementadas, tanto na forma de algumas matérias fixas a distância nos currículos, quanto como resolução conveniente para professores que se ausentam de aulas para priorizar projetos pessoais, deixando em seu lugar uma aula gravada.

Entretanto, para a pós-graduação a situação é diferente. Como tratado acima, a principal possibilidade é a de que sejam inteiramente remotas, ainda mais para as áreas que não exigem que o pesquisador faça parte de laboratórios para realizar seu mestrado ou doutorado.

Olhando para a situação do mestrado e do doutorado, há situações que deixam sua existência muito volátil. O corte de bolsas para pesquisa, a pauta da cobrança de mensalidades – como ocorreu na Unicamp em maio do ano passado – e a experiência do ensino remoto que abriu a possibilidade, pela primeira vez, de um estudante não precisar se deslocar geograficamente para realizar sua pós-graduação nas universidades públicas. 

Esse terceiro aspecto é delicado porque o ensino remoto trouxe as bancas online, que, em um primeiro olhar, aparece como positivo, já que há a possibilidade para a maioria dos estudantes de incorporar professores de outros países em suas bancas e também para a orientação como um todo. 

Entretanto, essa experiência em seu conjunto, da distância, retira da pesquisa seu grande objetivo que é formar mestres e doutores que conheçam e saibam o que é uma universidade, que possam produzir conhecimentos densos e críticos, com autonomia. Isso não pode ser deixado em segundo plano, de forma alguma, para o “benefício” de alguns de poder ter banca com professores estrangeiros. Isso se resolve com investimento na educação, que possibilita trazer esses pesquisadores para a banca.

Vale a pena lutar por uma universidade diferente

Em último e mais importante lugar, trago aqui o porquê temos que insistir na construção de uma universidade diferente, sem cair na luta pela defesa da existência da instituição apenas como ela é.

Bem, com certeza denunciar os cortes, reivindicar o dinheiro e discutir o estrangulamento faz parte da possibilidade de lutas pela universidade. Mas, estagnar nisso é se limitar a tratar a universidade como coisa qualquer, aceitando as manobras da classe dominante na determinação de nossas lutas.

A universidade pode ser muito mais do que ela é hoje, sendo esta a única instituição que tem por objetivo poder produzir um conhecimento capaz de criticar toda e qualquer esfera da sociedade, toda e qualquer instituição. Para isso, não há outros lugares. Mesmo que parte disso possa se realizar em um partido, essa tradição tem passado cada vez mais longe das experiências organizativas. 

Esse erro de não ter propostas alternativas para a sociedade não ocorre somente com a universidade. Mas é apenas o reflexo do fato de a esquerda não ter hoje um projeto para o país, um projeto para a revolução no Brasil, um projeto para a economia brasileira. 

Parte disso podemos pensar que é resultado de um processo de fragmentação do conhecimento, enfraquecimento da pesquisa. Porque assim como a universidade se alterou, também o conhecimento passou por todos esses processos, se fragmentando, se alterando. Fato é que hoje temos grande dificuldade de ler O Capital, de Marx, um livro escrito para a classe trabalhadora da época. 

Por isso temos que avançar, arrancar da universidade que cumpra com o seu papel, reivindicar sua autonomia, reivindicar que o orçamento seja organizado da maneira que a universidade bem entender e não destinado já para áreas específicas, muito menos depender de Emendas Parlamentares para obter dinheiro. 

A pós-graduação hoje sofre também porque a ciência é, por si só, anti produtiva. O conhecimento não é produzido em prazos, em datas. Estamos hoje orientados por uma lógica que não é a da ciência. E, infelizmente, sem teoria social crítica não há como traçar lutas. Temos de forçar a universidade a arcar com isso, mesmo não sendo produtivo, pois é uma atividade muito cara para nós.

Gostaria de terminar o texto nesse ponto da discussão: temos de lutar por uma universidade autônoma na produção de conhecimento, que possa ser crítica ao ponto de, com isso, poder produzir teorias sociais capazes de desvendar as minúcias do capitalismo e que impulsione a sociedade a dar um outro rumo para os dilemas de nossa classe. Com muita luta, que acompanhe esse conhecimento. Mas é justamente para isso que o conhecimento deve servir, não nos enganemos. 

*Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

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