Marcelo Ferro* – Redação UàE – 01/10/2018
Guilherme Boulos, a uma semana do primeiro turno, não conseguiu tensionar para a esquerda o debate eleitoral marcado pela oposição entre PT e Bolsonaro. Seu programa, com 228 páginas, tematizou as pautas de diversos movimentos sociais, mas em pontos centrais ficou aquém do programa de Haddad, que agora se lança para o segundo turno.
De fato, a plataforma do “Brasil feliz de novo” consegue estabelecer no imaginário as conexões afetivas com a massa dos trabalhadores, consegue ficar, no papel, à esquerda do programa da plataforma “Vamos”, e, ao mesmo tempo, se apresentar como um projeto viável de governo da burguesia.
O momento é de polarização aguda. Ele exige da esquerda socialista se diferenciar do campo democrático-popular, apresentando uma alternativa de desenvolvimento nacional viável. Ciro e Kátia apresentam um projeto de desenvolvimento viável, mas que reafirma um papel subordinado para o Brasil no mercado mundial, exportador de mercadorias primárias; é um projeto viável para a burguesia brasileira, conformada com o papel de sócia menor do Imperialismo. Um projeto viável para a nossa classe teria que romper com a Dependência. Esse seria o esperado da candidatura que fizesse a oposição pela esquerda.
Boulos não apenas não o faz, mas, em sua retórica assertiva, que zomba com pose dos candidatos da ordem, é incapaz de tecer os elos afetivos e dialogar com o senso comum para problematizar o desenvolvimento capitalista dependente. Inesperadamente, foi Cabo Daciolo quem conseguiu se diferenciar, tecer esses laços e dar voz àquilo que estava sufocado, apresentando uma crítica inflamada a partir do senso comum.
Cabo Daciolo Superstar Cabo Daciolo é a estrela dos debates entre os presidenciáveis. Ele conseguiu mobilizar o senso comum contra todos: contra o PT e contra Bolsonaro; contra os “principados e potentados” da direita; e contra a esquerda, representada como inimiga da família nas agendas dos “gayzistas” e da “ideologia de gênero”.
Mas o fenômeno do Cabo Celebridade merece um esforço de análise, pois é ele também quem melhor conseguiu dialogar com a insatisfação da própria esquerda com o cenário das eleições. Em suas falas alucinantes, desenterrou e deu vida aos anseios sufocados da crítica, dando a ela a carga messiânica. Invocando os versículos, escracha a Rede Globo, as estátuas da liberdade da Havan, as prescrições do FMI e do Banco Mundial; denuncia o Executivo, que governa por Medidas Provisórias, e o Legislativo, por estar sempre contra o povo; bota na parede os políticos profissionais que são atendidos pelo Sírio Libanês e Albert Einstein e não pelo SUS; opõe a miséria e o aperto das famílias trabalhadoras à ostentação dos empresários e dos burocratas do Estado.
Não dá para perder de vista que o imaginário contestatório da ordem, no Brasil, se constituiu ao lado das figuras messiânicas: Canudos, Contestado, Tiradentes. Daciolo resgata esse imaginário, e, com linguagem e noções simples, consegue comunicar uma autêntica indignação com o que está posto.
Tomado como um fanático, Daciolo aparece como personagem de comédia — e é quem torna palatável os debates dos presidenciáveis, teatros insuportáveis de demagogia, marcados por profunda mesmice e falta de conteúdo. Tomado sinceramente, o “estimado cabo” talvez seja, no cenário das eleições, quem mais cruamente reflete a falência da Nova República e nossa debilidade em apresentar uma alternativa viável a ela, pela esquerda.
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