[Opinião] Consultas online e representatividade: estorvos para a democracia efetiva 

Imagem: quadro “O quarto Estado”, de Giuseppe Pellizza da Volpedo

Flora Gomes – Publicado originalmente no Universidade à Esquerda –  13/07/2020 

A pandemia do novo coronavírus reorientou aspectos profundos das atividades cotidianas. Uma das questões fundamentais para a esquerda, sobretudo com o maior acirramento das contradições de classe, tem sido o de como vislumbrar uma posição democrática para as lutas sob as condições de afastamento social. Para aqueles comprometidos com a transformação radical da sociedade, resistir às ofensivas deste governo se torna ainda mais difícil nestas condições. Isso porque muitos dos tradicionais mecanismos para organizar este fim envolvem aglomeração social, como  reuniões amplas, assembleias, entre outros. Nesse campo, algumas formas de fazer política parecem estar caindo  no  equívoco de criar formas que afastam-se de sua  própria finalidade. 

A adaptação de grande parte da vida política às plataformas digitais, bem como a preocupação com aqueles que não têm acesso, tem gerado uma formulação, num primeiro momento, aparentemente em conformidade com os princípios democráticos. Se compreendermos que democracia é a possibilidade do exercício da vontade de cada um, a melhor forma de garantir processos democráticos em um momento de pandemia seria assegurar que todos pudessem particularmente expressar suas opiniões. Com isso em vista, a saída apresentada tem sido a de realização de formulários consultivos online, no qual entidades ou instituições consultam suas bases por meio de um questionário.

As dificuldades dos formulários online

 Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por exemplo, a Administração Central enviou uma série de perguntas relativas ao retorno das atividades para as três categorias da comunidade universitária. Com esse gesto, a reitoria visava pintar de democrática a decisão do retorno às atividades de ensino. O questionário foi objeto de duras críticas por setores da universidade, já que, além de impossibilitar a resposta daqueles que não têm acesso à internet,  não possuía qualquer rigor metodológico. 

Para além da própria reitoria, uma parcela das entidades estudantis assimilou a política consultiva. Alguns centros acadêmicos, como os de Psicologia e Ciências Econômicas, enviaram formulários acerca das condições de acesso a equipamentos e tecnologias aos discentes.

Por mais que essas tentativas tentem expressar políticas aparentemente democráticas, alegando um esforço em recolher todas as opiniões para que, a partir delas, formulações sejam forjadas, elas expressam o lado oposto daquilo que é essencial na democracia. 

Primeiro porque, mesmo se assumirmos que o essencial seria que todos expressassem individualmente o que pensam, essas ferramentas já são um fracasso para este fim. Os formulários online têm se demonstrado um desastre para aqueles que defendem a expressão individual de todos para as tomadas de decisão. Há uma margem significativa de pessoas que não tem respondido por motivos invisíveis à metodologia adotada. Sabemos que há estudantes que não têm acesso às tecnologias e portanto não poderiam dar uma resposta sobre o retorno; outros que não se interessam em participar e até mesmo aqueles que discordam da concepção da consulta e portanto se recusam à respondê-la. 

Em segundo, porque o argumento de que a vontade de um grupo político precisa estar representada por 100% do corpo que ele diz expressar é uma falácia. Essa posição ilustra a figura típica do estudante que, de passagem na assembleia do curso, conta o número de presentes e compara com os matriculados. Sua única contribuição para a discussão é afirmar que a posição tirada naquele espaço não representa o curso, mas um “grupo de estudantes”. 

As consultas por formulário, nesse sentido, realizam uma distorção do que deve ser a democracia, ao partir da concepção de que a essência desta é a participação integral e individual daqueles que compõem um determinado grupo. Nos lancemos a pensar: aqueles que hoje respondem consultas sobre suas condições materiais para realizar o ensino a distância, o fazem através de suas condições particulares, sem sequer saber da situação de seus pares, sem saber o motivo de outros que não podem atender a essa modalidade de ensino. As decisões de clicar em um botão ou em outro passam apenas por sua situação imediata. 

Em contrapartida, em um espaço de debate, mesmo que não abarque todos aqueles que se dispõem a responder um formulário, as condições são coletivizadas, os problemas saem do âmbito particular, opiniões e ideias entram em conflito e, aquele estudante que responderia que tem possibilidade de ter o ensino a distância pode agora, ao ter contato com outras questões, se posicionar contrário.

E é por isso que, uma assembleia com 100 participantes, mesmo que hoje online pelas condições do isolamento, que passam por horas de debate até chegarem em um posicionamento sempre será mais democrática e legítima que um formulário com 1.000 respostas que permeiam apenas vontades ou necessidades individuais.

O argumento de que o democrático é o conjunto de todas as vontades, enunciadas pelos próprios indivíduos, nos coloca em confusões como essa, pois significaria que na ausência daqueles que não querem, não podem ou até mesmo que se recusam covardemente ao debate, este último não possa ser expressão política do grupo. 

Leia também: Assembleias estudantis: o legal e o legítimo

 

A falácia da representatividade

Assumir que as entidades são órgãos de consulta, como vem sendo feito nas universidades, é um equívoco que condena qualquer ação política ao fracasso. Recolher opiniões dos estudantes significa realizar uma consulta, mas isso pouco diz sobre a ação efetiva a ser construída. 

Em uma primeira instância, isso é um problema porque ao consultar opiniões individuais o resultado vai ser um conjunto de opiniões, mais ou menos contrárias, e que deverão ser resolvidas de alguma forma, sendo que uma entidade não consegue expressar todas elas – e nem deve. A ideia de que entidades são representativas não deveria se basear na concepção de que representam efetivamente o pensamento de todos, mas sim que são expressão representativa de um determinado projeto político.

As entidades têm função de avançar nas percepções mais  imediatas e apresentar de que forma elas se inserem em um curso histórico. Parte disso, pode e tende a ser, inclusive, entrar em contra senso com os interesses mais aparentes de algumas pessoas, apresentando um debate mais profundo e colocando novos elementos ao curso para que os estudantes possam refletir…

Uma dedicação em demasia para recolher a expressão das vontades particulares  alheias  pode representar no fundo um esforço em apenas se tornar objeto destas, ao invés de enfrentar o âmago da questão. Muito mais difícil, porém, essencial. 

Com isso em vista, as entidades deveriam cumprir justamente o papel oposto: o de sobrepor aos interesses imediatos um horizonte em comum. Para as lutas atuais, isso significa que poderiam estar apresentando  o porquê da Universidade ser importante para o conjunto da classe trabalhadora; quais dos seus princípios não poderiam ser perdidos; as derrotas envolvidas na adoção ao ensino a distância (EaD); entre outros. Ou seja, atribuir um sentido que ultrapasse o aparente ganho de retorno das aulas, dando um sentido histórico para o fenômeno. 

Qual democracia queremos? 

  Se a democracia não é a expressão de vontades particulares, precisamos conjecturar de que forma sustentá-la sobre outros princípios. O primeiro passo para pensar sobre o que é uma democracia efetiva é distanciá-la da concepção de identidade. 

Enquanto as coordenadas políticas forem dadas pela premissa de que “somente eu falo por mim” ou de que “só eu posso falar pelo meu grupo” as barreiras para um horizonte em comum são intransponíveis. Superar essa concepção também nos leva a transpor seu oposto complementar: de que “alguém pode falar por mim porque representa a minha vontade”. A ideia de que a política se constrói por necessidades particulares incita a proposição de que há alguém que poderia representar interesses de um determinado grupo  pela feliz casualidade de estar em acordo com outro interesse também individual. 

Portanto, o primeiro passo é assumir que a democracia nada tem a ver com a defesa de necessidades particulares. Ou seja, ela pouco ou nada tem a ver com a ideia de representação. Na verdade, ela aproxima-se muito mais da dissolução das particularidades em algo em comum. 

Quando Marx apresenta o debate sobre a necessidade da classe trabalhadora afirmar-se enquanto sujeito político, o que se postulava era a inevitabilidade de os trabalhadores em geral se reunirem para expressar o espírito da necessidade histórica de sua classe. Isso nada tem que ver com o que cada trabalhador individualmente almeja, mas sim, na assimilação da vontade geral de seu conjunto. 

Leia também: Classe trabalhadora no século XXI: a cegueira da esquerda na luta de classes

Aqueles que têm condições de estar nos espaços de debate político, quando expressam a vontade política geral comum, não representam ninguém em particular. Não falam em nome de ou por um grupo, mas assumem a posição das necessidades da sua classe em seu tempo. 

No caso do ensino remoto, se a defesa for particular, os que têm acesso poderiam ser favoráveis à sua implementação e à reestruturação da Universidade. A contrariedade portanto, perpassa por uma compreensão do significado da assimilação do EaD na universidade pública, ultrapassando as necessidades imediatas, atreladas ao mercado de trabalho ou planos pessoais. A defesa de princípios da universidade pública, por ainda ser uma instituição fundamental de desenvolvimento crítico, não é uma pauta apenas daqueles que possuem vínculo com a instituição, mas é de toda a classe. 

Se a condição para ultrapassar o imediatismo é a historicidade, precisamos realizar   amplos e profundos debates. É imperioso realizar a caracterização mais precisa possível do fenômeno para poder melhor enfrentá-lo. Por esse motivo, custa muito caro à direita o debate público. Para esses setores, basta que a história corra seu curso natural, sem contrapesos históricos. Mas para nós, da esquerda, que devemos ter um outro projeto a apresentar, é fundamental que sigamos formulando sobre como construir trincheiras para esse momento avassalador. Só é possível fazê-lo construindo coletiva e continuamente as melhores saídas, aprofundando nossas concepções e senso de solidariedade. 

Foto: O Quarto Estado (Giuseppe Pellizza da Volpedo)

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