Imagem: Trecho do curta “Recife Frio” (2009), de Kleber Mendonça Filho
Ana Zandoná* – Publicado originalmente em Universidade à Esquerda – 02/04/2022
E se o Recife sofresse uma brusca mudança climática? Se, de repente, a cidade cheia de calor e praias fosse tomada por baixas temperaturas? Como esse evento climático seria tratado por cientistas, mídia e pela população local?
O curta de ficção de Kleber Mendonça Filho, Recife Frio, de 2009, propõe um pequeno e ácido exercício imaginativo, no qual a queda de um meteorito levaria a um repentino declínio de temperatura na capital pernambucana. O diretor é um conhecido crítico da urbanização desenfreada para atender às demandas turísticas na cidade de Recife. Tema que também foi abordado em um longa produzido alguns anos depois, o filme Aquarius (2016).
No curta, a mudança climática é retratada de forma documental por um canal de TV argentino, após sete meses do seu início. O documentário vai abordando os efeitos da mudança passando por uma série de elementos, como a morte de inúmeras pessoas em situação de rua diariamente, o tratamento religioso da questão, seu impacto no turismo, na casa de uma família pequeno burguesa e nas expressões culturais da cidade, como o trabalho de artesãos e as músicas de Lia de Itamaracá. O único que parece estar feliz e bem adaptado em meio à mudança climática é o senhor que trabalha como papai noel, com um clima que finalmente está de acordo com as roupas utilizadas em sua profissão e lhe permitirá não sofrer de recorrentes desmaios enquanto realiza seu trabalho.
As situações que envolvem graves consequências são brevemente pautadas, como a perda de um grande número de vidas de pessoas em situação de rua diariamente. Já os “problemas” vivenciados pela pequena burguesia são amplamente explorados, como no caso do francês que teve seu negócio turístico prejudicado com a perda do sol, e é destacado pelo repórter argentino como a história que mais lhe comoveu. Também há o “dilema” da família que não poderá mais usufruir do apartamento no “metro quadrado mais caro da cidade” e na beira da praia, como havia inicialmente planejado, e ainda “sofre” com a perda da valorização imobiliária deste.
Um dos pontos de destaque do curta é a sátira com o quarto da empregada nesse tipo de imóvel, pois a herança racista e escravocrata no planejamento arquitetônico deste, o torna o espaço mais quente da casa. Assim, o filho da família proprietária do imóvel passa a utilizar o quarto da empregada e “cede” o seu quarto à trabalhadora, contrariando-a. A família adota um discurso cínico de que a empregada não aceita a troca de quartos porque não está acostumada culturalmente com o acesso a um espaço amplo.
A abordagem midiática dos problemas da realidade brasileira
A hipótese proposta pelo diretor evidencia uma abordagem midiática que busca banalizar os verdadeiros problemas enfrentados diante de dilemas da realidade brasileira e seus graves efeitos para as parcelas mais pauperizadas da população que vive nas cidades. Assim como, a atribuição e uso de aspectos culturais da própria população como justificativa, diante da forma como estes problemas são tratados para privilegiar resoluções para a burguesia e a pequena burguesia.
Essa cobertura midiática que aborda de forma banal e descartável o quanto a vida da população pobre e trabalhadora é a verdadeiramente impactada por esses eventos, é uma realidade que pode ser identificada nas tragédias recentes vividas no país.
As chuvas que impactaram tragicamente os estados de Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, com o caso mais emblemático vivido na cidade de Petrópolis na região serrana, embora tenham sido abordadas pela mídia hegemônica de forma sensacionalista num primeiro momento, foram rapidamente suprimidas da pauta dos jornais. Assim que estes encontraram alguns temas que estavam fortemente distantes da realidade brasileira e dos vastos dilemas de trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, como por exemplo, a guerra na Ucrânia, abordada de forma também sensacionalista.
É claro que é imprescindível que uma guerra mereça atenção nas coberturas jornalísticas, com muita cautela para buscar entender as suas determinações e, inclusive (e talvez principalmente), as suas consequências no cenário nacional, como o novo aumento nos combustíveis do Brasil, questões que impactam diretamente as condições de vida de nossa classe.
Contudo, nada justifica que tal pauta tome completamente as discussões no país e substitua deliberadamente o tratamento das questões nacionais. Questões estas que agravam severamente as condições de vida e sobrevivência, atualmente a classe trabalhadora padece de inúmeras formas, desde as condições de acesso à moradia e alimentação, aos eventos que lhes tomam precocemente as vidas. Tudo isso em função das dinâmicas de acumulação e reprodução do capital. E é importante ressaltar que estes eventos climáticos, muitas vezes tratados como desastres ditos“naturais”, também possuem relação com estas dinâmicas.
A própria situação retratada do curta de Kléber, onde o canal de TV de outro país faz uma ampla cobertura das mudanças ocorridas no Recife, de certa forma pode acabar remetendo a esta problemática também. Se por um lado, isto é o esperado da mídia hegemônica, que busca nos alienar de uma efetiva compreensão da realidade, este não pode ser o caminho a ser adotado por aqueles que dispõem a debater seriamente os dilemas da realidade brasileira.
A urbanização das cidades e seus conflitos
A anedota acerca do apartamento à beira mar da família pequeno burguesa, que não vê mais utilidade no imóvel sem poder usufruir do calor da cidade, nos remete ao debate sobre qual a função social desse tipo de obra. Qual o papel que a ênfase na construção de prédios em certas localidades consideradas privilegiadas, como a beira mar de uma cidade turística, efetivamente cumpre?
Além dos efeitos da construção destes prédios na preservação de mares, muitas vezes impactando o solo nas proximidades destes e descartando esgoto diretamente em suas águas, há uma questão sobre o conflito no uso dos espaços das cidades. Aquelas localidades que possuem maior infraestrutura e lazer, acabam tendo um acesso limitado para os trabalhadores, que só estão nestes locais para realizar suas atividades de trabalho e são jogados para viverem espremidos nos locais distantes dos centros urbanos. Geralmente com acesso a pouca ou nenhuma infraestrutura básica e, dependendo da geografia das cidades, os trabalhadores também são levados a ocupar morros e encostas, muitas vezes localidades de risco nas periferias das cidades.
Os conflitos na ocupação do espaço urbano e a gentrificação dos espaços com maior e melhor infra são elementos que não podem ser descartados do debate público sobre o impacto das escolhas que são feitas para a organização da cidade. Não se trata apenas de acesso à lazer e qualidade de vida, mas também de como tais escolhas podem ter efeitos fatais na vida de uma parcela da classe trabalhadora, quando estouram as fragilidades que constituem a estrutura urbana.
Afinal, quem eram os moradores que perderam suas casas, e centenas suas vidas, do Morro da Oficina, onde em fevereiro e março deste ano ocorreram vários deslizamentos em Petrópolis? Quais foram as famílias mais fortemente impactadas nos 175 municípios que ficaram em estado de emergência na Bahia e nos 435 municípios de Minas Gerais em dezembro de 2021, janeiro e fevereiro deste ano? Quem são os atingidos e mortos das novas chuvas que estão afetando fortemente o estado do Rio de Janeiro também neste início de Abril? Sem esquecer ainda aquelas tragédias que também decorrem de certa organização das cidades do interior para atender às demandas produtivas capitalistas, como os rompimentos de barragens ocorridos em Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019.
As questões relacionadas às cidades, ao planejamento urbano, ao acesso ou à falta de acesso aos direitos devem ser abordadas de forma ampla. Uma vez que reverberam na vida de todos da nossa classe trabalhadora e tem direta ligação ao modo de organizar a vida e as sociedades no capitalismo.
Para tratar da relação entre os conflitos socioambientais e urbanos e as demandas capitalistas para o planejamento das cidades, a partir dos recentes desastres no Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo, Minas Gerais, a Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora – Vânia Bambirra, realizará um debate intitulado “A emergência e permanência da crise urbana e ambiental” com o professor Cláudio Ribeiro, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ no próximo dia 05 de abril, terça-feira às 19 horas. .
As inscrições para participar do evento podem ser realizadas no site da Efop (clique aqui). A transmissão será no canal do YouTube da EFOP-Vânia Bambirra.
*Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.