Foto: FAO/Max Valencia.
Foto: FAO/Max Valencia.

[Opinião] Entre a cruz e a espada, trabalhadores da linha de frente morrem mais

Foto: FAO/Max Valencia.

Nina Matos* – Redação UàE – 07/04/2021

Que a pandemia causada pelo Covid-19 alterou drasticamente as relações sociais não é mais novidade alguma para a maior parte da população. Dentre tais alterações, os cuidados necessários para o combate à pandemia inseriram-se de distintas maneiras no cotidiano das relações de trabalho — especialmente na proximidade do contágio e na despedida abrupta de muitos colegas.

Com base nos dados do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Novo Caged), houve um aumento nas mortes de trabalhadores ligados a atividades essenciais comparando os meses de janeiro e fevereiro de 2021 com o mesmo período no ano anterior.

Dentre as 10 ocupações que mais registraram mortes, 4 tiveram um aumento maior que 50% comparando o mesmo período em 2020 e 2021. Trabalhadores que possuem maior contato com o público, como motoristas de ônibus urbano, operadores de caixa e frentistas, tiveram, respectivamente, 62,5%, 67,9% e  68,2% mais mortes registradas em comparação com um momento pré-pandemia e o atual cenário brasileiro.

Planilha organizada pelo UàE com base nos dados do Novo Caged.
Planilha organizada pelo UàE com base nos dados do Novo Caged.

Essas mortes não estão diretamente ligadas ao Covid-19, sendo os dados referentes a desligamentos dos trabalhadores por motivo de falecimento de modo geral. Porém, a variação, compreendida como “excesso de mortes”, pode apontar para os efeitos da crise sanitária em cada setor. Seja pela morte direta por Covid-19, seja pela indisponibilidade de leitos no caso de uma enfermidade ou acidente. O descontrole da pandemia é entendido como o cerne do vertiginoso aumento de mortes entre os trabalhadores nas atividades essenciais.

Os dados de desligamentos de professores apresentados pelo Novo Caged são um trágico exemplo nesse sentido. Entre janeiro e julho de 2020 houve uma média de 22 mortes de professores do ensino fundamental. Em agosto de 2020 as mortes passaram do dobro, alcançando a marca de 47 professores mortos. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2021 somam-se 83 mortes — um aumento de 97,6% em relação ao mesmo período no ano anterior.

A relação é bastante explícita nesse exemplo. Nos primeiros meses de avanço da pandemia no Brasil, a adoção do ensino remoto conteve grande parte da circulação desses trabalhadores. O aumento em agosto pode estar relacionado com o aumento da pressão para o retorno presencial das aulas, que com pouca capacidade de manter seus protocolos de segurança gerou o aumento das mortes dessa categoria. Apesar dos surtos registrados em escolas do país inteiro, as aulas mantêm-se presenciais, o que contribui para a atual estabilização das taxas em alta.

Por sua vez, a definição de atividade essencial tem se tornado cada vez mais nebulosa. A Lei nº 7.783/1989 define como essencial toda aquela atividade econômica responsável pelo atendimento dos serviços de saneamento básico (distribuição de água, tratamento de esgoto, etc.), serviços de saúde, oferta de energia elétrica, transporte coletivo, serviços funerários, distribuição e comercialização de alimentos e medicamentos, etc.

De acordo com essa Lei, movimentos grevistas, por exemplo, precisam atender a certos critérios de garantias da continuidade do atendimento à população mesmo que paralisem as atividades — isto é, há possibilidade para uma redução drástica da oferta desses serviços, garantindo que não haja prejuízos irreparáveis para sobrevivência, saúde e segurança da população.

Entretanto, não é baseada nessa Lei que tanto os governos federal, estaduais e municipais têm definido as atividades essenciais. No estado de São Paulo (SP), por exemplo, a definição fica à cargo de um conjunto de fatores que inclui desde as necessidades referidas na Lei, bem como o risco de exposição dos trabalhadores, de aglomeração, possibilidade de escalonamento de transporte e atração de fluxo de clientes.

Dessa forma, se uma determinada atividade conta com pouca interação com o público, possibilidade de variar os horários de intervalo de modo que os trabalhadores não compartilhem espaços sem máscara, possibilidade de variar os turnos de trabalho a fim de evitar lotação dos transportes públicos, então a atividade pode continuar, no estado de São Paulo, durante a pandemia.

A proposta de manter uma economia mais ou menos estabilizada enquanto reduz-se a circulação pode parecer o equilíbrio necessário. Entretanto, na prática, o que se observa no quadro geral é a continuidade das altas taxas de contaminação e de morte — o chamado platô.

Uma das explicações pode ser a necessidade de usar transportes coletivos para se locomover de casa até o local de trabalho — trajeto que tende a ser mais longo entre os trabalhadores mais empobrecidos. Em uma pesquisa realizada pela Unifesp foi identificado que há uma correlação alta entre o número de viagens em transportes coletivos e contaminação por Covid-19, sendo possível explicar surtos em bairros devido ao intenso uso de ônibus, metrôs, etc.

O quadro complexifica se considerarmos a permanência da crise sanitária e a ineficiência dos programas de vacinação. Uma completa paralisação da economia não parece de fato viável, contudo, os termos da retomada não foram dados de modo a preservar as vidas dos trabalhadores.

As poucas experiências de lockdown que aconteceram no Brasil podem ser um indicativo desses termos que a classe trabalhadora poderia pautar para a retomada. Em Araraquara, município no interior de SP, o decreto de lockdown fechou ao público supermercados e farmácias, mas manteve a possibilidade de delivery para a manutenção do comércio de alimentos e medicamentos.

Mesmo se considerássemos que o delivery não é a melhor solução, ainda seria possível reduzir a circulação se a abertura fosse, por exemplo, escalonada, de modo que estoquistas pudessem trabalhar em um dia e no outro a loja estivesse aberta para os clientes.

Um vírus que se propaga pelo ar, através de aerossóis que tendem a manter-se em suspensão e acumular-se conforme a permanência no local e pouca ventilação, exige que a circulação seja diminuída para que se diminuam também as taxas e alivie a pressão sobre o sistema de saúde.

Nada disso é possível sem políticas que viabilizem uma menor circulação. Não apenas uma política acertada de distribuição de renda — o que inclui a taxação em todos os setores econômicos que possam utilizar-se dessa política para embolsar fundos públicos —, mas esse período histórico demonstrou a necessidade do controle da economia, contendo as exportações para manter o preço de mercadorias fundamentais, pautando as novas formas de trabalho — seja no teletrabalho ou na modalidade presencial — além de políticas de estoques de grãos, para a estabilização dos preços dos alimentos.

Não partirá do mercado qualquer medida de solidariedade com os trabalhadores. Já tivemos na história provas de que as mortes são calculadas e, se elas não interferirem tanto assim na obtenção dos lucros, não serão evitadas — mesmo que elas gerem multas bilionárias, vide os desdobramentos dos crimes ambientais da Vale. Deve partir de nós, da classe trabalhadora, a elaboração de saídas que sejam responsáveis e consequentes, rompendo com a ideia de que há um dilema entre salvaguardar a vida e prosperar a economia.

* Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

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