Foto: Alejandra De Lucca V. / Minsal
Helena Lima* – Redação Universidade à Esquerda – 27/03/2021
Hoje o debate sobre a propriedade intelectual das indústrias farmacêuticas chega a uma situação de emergência pela defasagem da vacinação nos países dependentes. Apesar das proposições da África do Sul e da Índia, os países centrais se recusam a abrir mão de sua prioridade na aplicação das vacinas e na defesa da manutenção das patentes.
É preciso retomar, dessa forma, que antes da pandemia (nas prioridades de pesquisa), durante o combate do coronavírus (na não socialização dos desenvolvimentos dos estudos) e agora na produção e distribuição das vacinas (na manutenção das patentes), a busca por lucro da indústria farmacêutica e a lógica capitalista da formulação dos medicamentos foram fatores estruturantes do caos sanitário em decorrência da pandemia do coronavírus.
Os países centrais pagaram mais de dez bilhões de dólares para os produtores de vacinas do coronavírus no ano passado, assinando contratos de portas fechadas para estarem à frente na vacinação. Além da prioridade na fila da vacina, estes países impediram o acesso pleno aos países dependentes através da formação de patentes sobre o conhecimento. Hoje temos o resultado desta política, das 200 vacinas administradas até fevereiro, 75% foram aplicadas em dez países centrais.
Casos semelhantes, provenientes das mesmas contradições, são recorrentes em todos os momentos em que um novo medicamento é aplicado em situações de crise sanitária.
Em 1998, quando regiões da África foram fortemente atingidas pelo HIV, diversos países pediram para as farmacêuticas, instaladas nos países centrais, a quebra das patentes dos medicamentos desenvolvidos para o tratamento da doença, o que também foi negado naquele momento. Ainda em 2000 o tratamento não-genérico custava dez mil dólares por ano, e os medicamentos antirretrovirais levaram dez anos para chegar nos países mais pobres a um preço acessível.
No Brasil, o acordo do Estado com a farmacêutica internacional Gilead Sciences impediu a fabricação de genéricos do medicamento sofosbuvir no país, primeiro tratamento eficaz para a hepatite C. Quando a farmacêutica obteve as patentes em 2019, os preços subiram de 16 dólares para 240 dólares por cápsula. Nessas condições, o SUS só foi capaz de tratar 14% dos 700 mil brasileiros afetados pela doença fatal.
Centenas de outros exemplos similares podem ser debatidos, como o tratamento de crianças com Atrofia Muscular Espinhal (AME), que estava custando dois milhões de dólares nos Estados Unidos em 2019, ou a pressão na Índia feita pela farmacêutica suíça para impedir medicamentos acessíveis.
O que agrava esta situação nos países dependentes é que a concessão de patentes é extremamente desigual em função da divisão internacional do trabalho, que centraliza nos países ricos o investimento no desenvolvimento científico, tecnológico e criativo. Em 2018, enquanto o Brasil teve cerca de 30 mil patentes registradas, o Estados Unidos registrou cerca de 3 milhões.
O professor Lalo Minto debateu em sua coluna neste jornal sobre as prioridades de pesquisa e produção da indústria farmacêutica no Brasil. Enquanto existem trinta fábricas de produção de vacinas para gados, que garantem nossa auto suficiência, existem apenas duas fábricas de vacinas para uso humano atendendo às demandas dos planos nacionais de imunização via SUS – Fiocruz/Bio-Manguinhos e Instituto Butantan. Dessa forma, a autonomia do país na produção de vacinas é extremamente precária.
O sigilo das indústrias farmacêuticas impõem outras questões. Nunca havia existido um processo tão rápido na formulação e aplicação de vacinas. A produção de medicamentos pelas empresas sem uma socialização plena de seu processo e de suas contradições faz com que a população tenha que acreditar cegamente nos especialistas com interesses divergentes dos coletivos.
A socialização e debate aberto na formulação dos medicamentos poderiam estimular o debate público que elevasse o desenvolvimento científico, se afastando da romantização que existe hoje sobre a vacina. Assim, arquivos confidenciais, como aconteceu no caso da Pfizer, não teriam de ser vazados por hackers para que se vá a público os debates internos sobre a eficácia da vacina, suas contradições e seus riscos.
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