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Sessão Aberta do CUn da UFSC que deliberou sobre o future-se em 03/09/2019

[Opinião] O pior que podemos fazer agora é abrir mão da Universidade

Foto: Sessão Aberta do CUn da UFSC que deliberou sobre o Future-se, em 03/09/2019. UFSC à Esquerda.

Maria Alice de Carvalho* – Redação UàE – 21/09/2020

Os cursos da UFSC estão entrando em sua quarta semana de aulas na modalidade remota. Mesmo antes da aprovação do ensino remoto pelo Conselho Universitário (CUn), já discutia-se entre estudantes, docentes e técnicos quais seriam as implicações da adoção dessa modalidade: desde a exclusão de estudantes e precarização do trabalho docente, até questões de aspectos pedagógicos que seriam perdidos com a falta de contato em sala de aula.

Com o pouco que já se foi experienciado nessas primeiras semanas, essas hipóteses se confirmam. Todas as semanas sabe-se de algum colega próximo do curso que está buscando como trancar disciplinas; professores que passam horas do dia gravando vídeos e editando-os; estudantes frustrados com o tanto de atividades assíncronas para realizar e participações nos fóruns do moodle com as quais muito pouco se aprende.

Todas essas implicações do ensino remoto têm, cotidianamente, gerado frustração em estudantes e em professores — não faltam relatos nas redes sociais, por exemplo. A maioria sem saber como dar vazão a essa insatisfação e, muitas vezes, sem saber sequer significa-la sozinhos.

Algo que reúne todas essas angústias, que reúne todas essas experiências frustrantes que aparecem no campo do individual, é que estamos todos perdendo algo que a nós é muito caro: a Universidade.

Isso porque é impossível que chamemos de uma formação universitária aquilo que estamos sendo obrigados a experienciar com a modalidade remota: aulas que antes ocorriam em quatro créditos da semana, hoje ocorrem em apenas um ou dois créditos quinzenalmente; trabalhos finais que antes exigiam de nós passar horas na biblioteca lendo e articulando teorias e argumentos, hoje são substituídos por diversos trabalhinhos pouco rigorosos para marcar frequência; professores que antes preparavam aulas e apresentavam exposições complexas com posterior debate com a turma, hoje adaptam apoiador para celular para gravar aulas que dificilmente chegam ao nível de complexidade que antes chegavam; práticas laboratoriais se resumem hoje, na maior parte das vezes, a meros exercícios em simulações e softwares.

E os exemplos são intermináveis para expressar que, com o ensino remoto, chegou-se a tal nível de flexibilização do ensino que não mais podemos chamar o que “vivemos na UFSC” de formação universitária. 

Tanto aqueles que hoje estão com seus cursos trancados por não possuir equipamentos, quanto aqueles que ainda estão experimentando o ensino remoto, entraram na Universidade com a expectativa de experienciar uma formação completa, transformadora e totalmente diferente daquela tida no ensino básico e em outras instituições. A expectativa era de que o contato com a Universidade mudaria a sua relação com o mundo.

Tanto na área de ciências exatas quanto na de ciências humanas, o estudante é exposto a uma miríade de novos conhecimentos. Seus valores são colocados em questão. Todo esse contato com conhecimentos e espaços diferentes permitem ao estudante ir além daquilo que era capaz sozinho e quando não era colocado em questão. Algo que só é possível através do contato com elaborações rigorosas e complexas do conhecimento.

Nesse aspecto, uma crítica se faz necessária àqueles que tentaram justificar o ensino remoto dividindo a universidade entre o que era necessário, nesse momento, para os estudantes pobres e o que era necessário para os estudantes ricos. Os argumentos eram de que as aulas deveriam ser o mais flexível possível para aqueles que possuem pouco acesso (as famosas atividades assíncronas); de que o calendário deveria continuar para que os estudantes mais pobres pudessem se formar logo e irem trabalhar para ganhar a vida; que o principal era garantir o acesso para que esses estudantes mais pobres pudessem se adaptar à modalidade a distância.

Pensando particularmente nos estudantes pobres e de baixa renda, um conhecimento rigoroso e uma formação complexa estão no centro das políticas históricas de permanência estudantil. Afinal, as juventudes que lutaram por esse reconhecimento não o fizeram para que o pobre apenas entre na universidade e consiga permanecer para pegar seu diploma. Mas, ao contrário, para que entre e tenha todas as condições necessárias garantidas para se dedicar aos estudos, à pesquisa, à vida universitária, às relações culturais e artísticas que o formam enquanto intelectual, pesquisador e como ser humano. 

Essa reivindicação por uma flexibilização, por uma formação “mais fácil” para garantir o acesso, tem servido tanto para justificar uma suposta defesa da permanência estudantil quanto tem servido como argumento para as grandes empresas educacionais que nesse período de crise geram uma maior divisão no ensino: fica mais escancarada a venda de uma educação para os pobres e uma educação para os ricos; aos primeiros são oferecidos cursos a distância, com toda a flexibilidade possível, enquanto aos segundos são resguardados cursos presenciais de maior rigor.

Em suma, o discurso fácil que muitos  — inclusive no próprio movimento estudantil — têm adotado de que, para defender os pobres na universidade, se deve defender a flexibilização do ensino, é falho e até mesmo injusto. A flexibilização do ensino é historicamente utilizada contra a classe trabalhadora, em sua adaptação às formas de trabalho mais produtivas em diferentes momentos para o capital.

Nenhum estudante, muito menos aqueles mais pobres, entrou na Universidade Pública, mudou de cidade ou de estado, abriu e abre cotidianamente mão de outras coisas, para ter uma formação meia boca. Todos estão no espaço universitário para ter acesso ao mais rigoroso e complexo conhecimento historicamente produzido. E para dar continuidade ao desenvolvimento artístico, científico, filosófico e tecnológico de seu tempo.

E o que se perdeu também de vista, nesse caminho, é que uma formação universitária completa e, portanto, de qualidade, é importante não apenas para o conjunto dos estudantes ingressantes nesta instituição, como para a sociedade como um todo, que deposita nas universidades um espaço para responder suas questões no nível mais avançado possível.

Sendo assim, com o que enfrentamos na UFSC, e nas outras universidades do país, o pior que podemos fazer agora é abrir mão da universidade e da formação universitária que queremos. A luta dos estudantes e outras categorias da universidade deve ser essa: a de garantir o acesso, à todos, a um conhecimento completo e rigoroso, como nos demanda a sociedade e tal como ansiamos desde que resolvemos fazer da formação universitária um caminho alternativo de nossas vidas; e não o acesso à aulas gravadas, vídeos no youtube, simulações em softwares e discussões vazias no moodle.

*As opiniões aqui expressas são de responsabilidade da autora e podem não representar a opinião do jornal.

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