[Opinião] Reforma de Córdoba: a radicalidade da luta pela universidade

Imagem: Montagem UàE a partir de foto licencíavel da tomada da Universidade de Córdoba pelos estudantes

Flora GomesPublicado originalmente no Universidade à Esquerda – 21/06/2021

A juventude já não pede. Exige que se reconheça o direito de exteriorizar esse pensamento próprio nos corpos universitários por meio de seus representantes. Está cansada de suportar os tiranos. Se foi capaz de realizar uma revolução nas consciências, não pode desconhecer-se a capacidade de intervir no governo de sua própria casa.” (Trecho do manifesto de Córdoba)

Há exatos 103 anos, na cidade de Córdoba na Argentina, era publicizado o texto intitulado “Da Juventude Argentina de Córdoba aos homens livres da América”, mais conhecido como o “Manifesto de Córdoba”. Diante das amarras que enrijeciam  a estrutura arcaica das universidades do país, os estudantes, dotados de um espírito jovem e radical, disputaram o sentido e destino desta instituição. Apesar dos anos que nos separam desta publicação, o que almejavam esses estudantes à época traduz em linhas gerais qual deve ser o sentido das nossas disputas hoje.

Leia o manifesto na íntegra: Manifesto de Córdoba

Contexto de publicação

 

Na época da publicação do Manifesto a sociedade argentina possuía traços extremamente coloniais, ainda que a independência do país tenha se consumado em 1818. Marcada pelo conservadorismo católico, a secularização oriunda da transição para a República teve limites, sobretudo na estrutura da Universidade de Córdoba. Foi fundada em 1621 – sendo uma das mais antigas da América –  e até o início do século XX ainda possuía relações estreitas com os jesuítas e o ensino da teologia.

Entre o final do século XIX e início do século XX, o movimento operário no país começa a se estruturar. Entre 1870 e 1914, os trabalhadores se organizavam em torno de movimentos anarquistas, socialistas e sindicalistas. Em 1918 foi fundado o Partido Socialista Internacional, que se converteu no Partido Comunista em dezembro de 1920. Entre 1902 e 1910 houve diversas manifestações operárias duramente reprimidas pelo Estado. O primeiro de maio de 1909 ficou conhecido como a “Semana roja” (vermelha). Na data, houve grandes mobilizações de trabalhadores em busca de melhores condições laborais. Nesta, foi explicitado o papel ideológico do catolicismo na sociedade da época, já que os manifestantes destruíram igrejas não só pelo apelo simbólico do enfrentamento, mas porque elas funcionavam como trincheiras para os policiais.

Esses movimentos são importantes de serem resgatados pois a radicalidade que se instaura em Córdoba em 1918 com pautas aparentemente particulares de estudantes, se espalha pela sociedade e é agarrado também pelo movimento operário, dando um sentido comum e universal. A força do movimento operário junto aos estudantes foi fundamental para disputar o tom do movimento, visto sua amplitude abrigava desde socialistas até liberais.

Em linhas gerais, a estrutura das universidades eram extremamente arcaicas. As cátedras eram vitalícias e separadas entre escolas profissionais. Os professores eram nomeados devido ao seu vínculo com a oligarquia local, sem qualquer debate acerca de sua referência intelectual ou mérito. Por consequência, a intenção ao se preencher essas cadeiras pouco se relacionava com o ensino e a transmissão de conhecimento, mas traduziam uma busca por prestígio social. Para obtenção do título era necessário realizar juramentos religiosos. Na biblioteca não havia sequer obras de estudiosos modernos.

Por isso, no manifesto, os estudantes apelam para o tipo de conhecimento que deveria ser produzido nessa instituição e qual deveria ser o papel dos professores:

“Nosso regime universitário – mesmo o mais recente – é anacrônico. Está fundado sobre uma espécie de direito divino; o direito divino do professorado universitário. Acredita em si mesmo. (…) 

O conceito de autoridade que corresponde e acompanha um diretor ou um professor em um lar de estudantes universitários não pode apoiar-se na força de disciplinas estranhas à substância mesma dos estudos. A autoridade, em um lar de estudantes, não se exercita mandando, mas sugerindo e amando: ensinando. Se não existe uma vinculação espiritual entre o que ensina e o que aprende, todo ensino é hostil e por conseguinte infecundo. Toda a educação é uma longa obra de amor aos que aprendem. Fundar a garantia de uma paz fecunda no artigo combinatório de um regulamento ou de um estatuto é, em todo caso, amparar um regime de quartel, mas não um trabalho de ciência. Manter a atual relação de governantes e governados é agitar o fermento de futuros transtornos. As almas dos jovens devem ser movidas por forças espirituais. Os meios já gastos da autoridade que emana da força não se conformam com o que reivindica o sentimento e o conceito moderno das universidades. O estalo do chicote só pode atestar o silêncio dos inconscientes e dos covardes. A única atitude silenciosa, que cabe em um instituto de ciência é a do que escuta uma verdade ou a do que experimenta para acreditar ou comprová-la. Por isso queremos arrancar na raiz do organismo universitário o arcaico e bárbaro conceito de autoridade que nestas casas de estudo é um baluarte de absurda tirania e só serve para proteger criminalmente a falsa dignidade e a falsa competência” (Trecho do manifesto de Córdoba).

Além dessas questões que estavam presentes há anos na sociedade argentina e foram se tornando cada vez mais intoleráveis, a economia argentina passa a sentir os duros efeitos econômicos da primeira guerra mundial, traduzida em queda da taxa de empregos e aumentos dos preços. Somado a isso, a Revolução Soviética de 1917 impulsionou rumo à radicalização do movimento operário.

O movimento 

Alguns fatores internos levaram à eclosão do movimento. As universidades haviam passado por uma redução orçamentária em 1918. No ano anterior, o reitor da Universidade de Córdoba havia negado subsídios para a elaboração de um jornal proposto pelos estudantes do curso de direito. Além disso, o Centro de Estudantes de Ciência Médicas rechaçou a nova regulamentação das práticas no Hospital Nacional das Clínicas. Já os estudantes do Centro de Engenharia escreveram uma nota de oposição à política dos exames complementares.

Com esse conjunto de fatores, em 31 de março foi declarada uma greve. Devido à radicalização, as aulas foram suspensas no dia 2 de abril. As reivindicações seguem se intensificando e as autoridades decidem pelo adiamento das aulas e pela solicitação de reforço policial. Com isso, os estudantes se articulam e enviam a Buenos Aires delegados para exercerem pressão sob o poder executivo.

Em 11 de abril é nomeado, diretamente pelo presidente Hipólito Yrigoyen, um interventor para a universidade: José Nicolás Matienzo. Este foi escolhido a dedo devido a  seu caráter liberal, esperando amortecer as reivindicações dos estudantes. Nesse contexto houve uma reestruturação singela da universidade, alterando o caráter vitalício dos Cargos do Conselho Superior. A nomeação de Matienzo foi posteriormente rechaçada no Manifesto:

“Agora advertimos que a recente reforma, sinceramente liberal, trazida à Universidade de Córdoba pelo Doutor José Nicolás Matienzo não inaugurou uma democracia universitária; sancionou o predomínio de uma casta de professores.”

 Em seguida, foi convocada uma assembleia para nomeação de um novo reitor para 15 de junho. As eleições agudizaram o conflito e sua legalidade foi contestada pela Federação Universitária de Córdoba. Os estudantes então sobem o tom do movimento e a suspensão das aulas se extendem. Em resposta, intensifica-se a presença das Forças Nacionais para custodiar a Universidade,  a Escola Prática de Medicina e o Hospital Nacional das Clínicas. Em 21 de junho é publicado o manifesto.

A Federação Universitária da Argentina declarou greve estudantil por quatro dias em solidariedade aos estudantes de Córdoba. O movimento se nacionaliza e cresce a articulação com sindicatos, políticos de esquerda e intelectuais.

Um mês depois da publicação do manifesto, é convocado  I Congresso Nacional de Estudantes Argentinos, em Córdoba. Como saldo de teses, levanta-se o caráter comum dos diversos envolvidos no movimento e a urgência em transformar a universidade. Em linhas gerais defendia-se a coparticipação dos estudantes na estrutura administrativa; a participação livre nas aulas; periodicidade definida e professorado livre das cátedras; o caráter público das sessões e instâncias administrativas com co-governação estudantes, professores e licenciados; a extensão da Universidade para além dos seus limites e difusão da cultura universitária; a assistência social aos estudantes; a autonomia universitária; o ensino livre com liberdade acadêmica e o  direito de escolha entre cátedras.

A partir de final de setembro ocorre uma série de medidas normativas para a reestruturação do funcionamento das universidades. Organizam-se conselhos, modificam-se estatutos e reorganiza-se o corpo docente, com abertura de concursos.

É necessário enfatizar que o movimento de Córdoba foi heterogêneo. Abrigou concepções liberais-burguesas, socialistas – inspiradas pela Revolução de 1917, anti-imperialistas – dada a estrutura arcaica herdada do colonialismo europeu, entre outras.

Ele reverberou em grande parte da América Latina, de diferentes modos em cada país. Em grande medida foi impulsionado por uma perspectiva anti-imperialista, dada a necessidade de se opor às estruturas europeias de produção do conhecimento herdadas pela história colonialista no continente

O Peru foi o primeiro país onde os gritos da reforma ecoaram.  Em 1919 os estudantes de San Marcos impulsionaram a criação de Universidades Populares Gonzales Prada. No Chile, a Federação de Estudantes do Chile expandiu pelo país a perspectiva renovadora nas universidades, defendendo a autonomia universitária, a representação estudantil nos órgãos representativos, o exercício docente livre e a extensão universitária. No Uruguai, houve um intercâmbio intenso com o movimento argentino devido à proximidade geográfica. Já na Venezuela, o movimento encontrou forte resistência da ditadura de Juan Vicente Gómez no final da década de 1920. Quando o ditador morre, a juventude retorna em 1940 para expandir os ideais da reforma. No Brasil, os ecos de Córdoba também trouxeram elementos pautados pela reforma universitária.

O que a luta em Córdoba nos ensina?

Pensar a radicalidade da Reforma de Córdoba é analisar tanto a estrutura do movimento quanto seus anseios. Em primeiro lugar, fica explícito como a luta pela universidade não é – e nem pode ser – restrita aos que estavam vinculados a ela. A disputa pela produção de conhecimento que esteja à altura dos dilemas de nossa época é de interesse geral. Por isso, na conjuntura que as universidade públicas estão atravessando, com o retorno híbrido de ensino, com a perda cada vez maior do caráter intelectual da carreira docente, com  cortes orçamentários severos, dentre outros gigantes desafios impostos, não devem se encerrar na universidade. Sindicatos, partidos, movimento operário e movimentos sociais devem se integrar na luta pela defesa da universidade.

Em segundo lugar, o movimento deixa uma lição sobre a importância de lutar por uma autonomia universitária plena. Seu corpo social deve determinar seu destino e ditar seus próprios interesses. Ao contrário, atualmente, há intervenção direta do capital e do Estado.

As políticas de pesquisas são impostas por órgãos alheios à universidade (como CAPES, CNPQ e fundações). A iniciativa privada tem cada vez mais pautado o caráter dos conhecimentos e os conteúdos produzidos no interior das instituições. A escolha do reitor passa pela mão direta do Estado, mesmo quando respeitada a nomeação da lista tríplice. É válido lembrar que este mecanismo foi instituído durante a reforma universitária durante a ditadura empresarial-militar.

O Manifesto também explicita o papel importante de figuras como professores e reitores. Ao contrário do que tem se tornado praxe no corpo docente das universidades, pelas próprias demandas de produtividade impostas por meio de burocracias e tarefas administrativas, os professores deveriam ser uma referência intelectual para seus alunos. Eles carregam a árdua tarefa de transmitir, por meio dos conhecimentos, o desejo de saber e de transformação da sociedade. Já sobre o cargo de Reitor é necessário retomar que este não é administrativo, e sim, político. Ele deve ser uma figura intelectual dirigente, uma referência para o corpo universitário.

Com vigor político e delicadeza poética, o Manifesto é um texto fundamental para nossa geração, que tem como tarefa defender o ensino universitário, livre, criativo e produtor de sentido. De muitas formas os conservadores tentam apagar ou tornar insignificante esta data. Insistimos na memória deste dia para inspirar as lutas que temos pela frente. Mais do que nunca a universidade precisa ser defendida naquilo que carrega de mais precioso: a produção de conhecimento. Que o espírito jovem de Córdoba contagie nossa sociedade!

*Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e podem não refletir a opinião do jornal

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