Foto: Carlos Figueroa.
Martim Campos – Redação Universidade à Esquerda – 24/05/2021
Depois de 40 anos com a Constituição elaborada no governo de Pinochet (1973-1990) em vigor, a qual recebeu 21 reformas ao longo dos anos, esta foi finalmente derrubada em outubro de 2020 com as manifestações de rua do povo chileno. Na semana passada, a lista dos independentes e de partidos de esquerda ganharam mais de dois terços nas 155 cadeiras disponíveis para a assembleia que irá escrever a nova Constituição.
Para analisar as eclosões das movimentações de massa dos últimos anos, Mauro Iasi, em seu texto para o blog da boitempo, elenca dois vetores de compreensão: a gravidade da persistente crise econômica por conta da execução de uma cartilha de privatizações, com o desmonte do Estado e rendição aos ditames do capital financeiro e do imperialismo; e pelos limites da conciliação de classe que se renderam ao pragmatismo esperando ampliar a democracia enquanto mantinham as premissas do saneamento financeiro do Estado. Através da articulação desses fatores poderíamos observar as manifestações que ocorrem no Chile, Equador, Colômbia, entre outros países.
Diferente de outros países, no Chile não houve a escrita de uma nova Constituição no processo de transição da ditadura para a redemocratização. O país passou pela experiência de derrota do socialismo da Unidade Popular no Chile em 1973 com o golpe do general Pinochet e das classes dominantes chilenas a serviço do imperialismo, sendo o precursor das medidas neoliberais que depois se expandiram para outros países da América Latina. Além disso, a Constituição serviu para complementar os planos de transformação social através dos decretos-lei 2.756 e 2.758 (1979), chamado “As Sete Modernizações do Estado”, com o objetivo de favorecimento do grande capital através de privatizações, afetando as áreas da saúde, das relações trabalhistas e seus direitos, da previdência e do campo ambiental, com a pauperização cada vez maior da classe trabalhadora.
Observando o caso chileno, a reinvindicação das manifestações intensas em 2019 pautavam contra o aumento do preço da passagem de metrô, com o protagonismo dos estudantes secundaristas na luta. A demanda se transforma e os manifestantes exige algo mais radical: um novo processo constitucional.
Os meses de outubro dos últimos dois anos foram significativos para a história de movimento das massas do país: em outubro de 2019, foi feito o maior protesto já feito no Chile, com mais de dois milhões de manifestantes em Santiago. Manifestantes que foram brutalmente reprimidos pelo Estado com os jatos de soda cáustica, cegando os olhos de muitos, matando e desaparecendo com a vida daqueles que protestavam por melhores condições de vida. Como saldo de suas lutas, o resultado foi a convocação de uma assembleia constituinte em outubro de 2020, a qual conseguiu queimar a constituição pinochetista.
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O plebiscito aprovou por grande maioria a nova Constituinte com 78,27% dos votos, frente a 21,73% de negativa. Foi escolhido no momento a forma de uma convenção constitucional, formada por 155 cidadãos escolhidos por voto popular, que não precisariam estar inseridos em um partido e composta de forma paritária entre homens e mulheres.
A princípio, essa votação estava prevista para Abril, mas foi adiada por cinco semanas por conta de um novo aumento dos números de contaminados por Covid-19.
No domingo (16/05), um dos fatos que teve destaque foi o número de cadeiras distribuídas entre as pessoas independentes que desequilibraram o poder para as mãos da esquerda.
Para a escrita da nova Constituição, a direita tem menos de um terço das cadeira a sua disposição: conseguiram apenas 38 das 155 cadeiras. As outras 118 cadeiras foram divididas entre os 65 candidatos independentes, tais como os mais próximos da esquerda, como a Lista del Pueblo, que somam juntos algo próximo de 25 cadeiras na Assembleia; 17 cadeiras foram reservadas e preenchidas por povos originários, tais como os Rapanui e Mapuches; e a frente de esquerda com 28 constituintes e a centro esquerda com 25 cadeiras.
Paralelamente, a direita sofreu uma derrota nas eleições municipais, chegando a perder 50 das 345 prefeituras e seu número de vereadores caiu. Também não ganhou no primeiro turno nenhum dos 16 governos regionais, uma eleição realizada pela primeira vez no Chile. Pela primeira vez, os 14,9 milhões de eleitores chilenos votaram para eleger os governadores das 16 regiões administrativas do país – antes indicados pela presidência da República –, além de prefeitos e vereadores.
Agora, a Assembleia Constituinte terá até junho de 2022 para submeter ao plebiscito a nova proposta de Constituição.
O momento atual da insurreição no Chile é fruto das movimentações no país que ocorreram nos últimos anos, de sua capacidade de transformar a insatisfação em luta nas ruas, amadurecendo suas demandas até a proposta mais radical de ruptura com o modelo econômico vigente no país e de recusar as conciliações com uma democracia burguesa e violenta. É um momento histórico para o povo chileno, para os mapuches, trabalhadoras, trabalhadores e estudantes que querem construir um Chile diferente.
Para que o brilho das faíscas insurrecionais não ofusque outros elementos do cenário, é importante prestar atenção na repressão e ataque vindos do lado reacionário que possam sufocar a força de insurreição e do seu potencial de liberação histórica para que a sua ordem e domínio não sejam perturbados. Como Mauro Iasi destaca com as ideias de Lênin, nem toda ação revolucionária leva à uma revolução. Cabe lembrar que mesmo com a constituição nas mãos o embate colocado é travado no interior da ordem burguesa e capitalista sempre pronta para reprimir alternativas mais radicais de mudança.
Em uma composição de forças heterogêneas, ainda não sabemos como serão discutidos certos pontos da constituinte, se haverá ou não uma fragmentação de independentes e alianças, se a força que emerge dessa insurreição conseguirá de fato se materializar na nova constituinte e como serão superados os limites de conciliação de classes que estão na base desse processo da insatisfação popular.
E como colocado no texto de Clara Fernandez,“Há muita disputa nos rumos que a construção da constituição e os movimentos de revolta ainda têm pela frente. Entretanto, é um grande marco e merece uma grande celebração o enterro desta constituição marcada com sangue de muitos trabalhadores e revolucionários na história deste país e do nosso continente.”
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