[Opinião] Violência mascarada: qual o papel da UFSC na Rota de Inovação de Florianópolis?

Imagem do documento Floripa 2030: Agenda Estratégica de Desenvolvimento Sustentável de Florianópolis na Região

Maria Luisa Moreira – para o UFSC à Esquerda – 09/10/2019

Por uma escola e uma cultura desinteressadas.

A vida e o trabalho empreendedor (“cada um por si e deus por todos”) consome em uma velocidade incalculável os últimos suspiros de vida de Florianópolis. Para aqueles que desembarcam no “Floripa Airport”, se hospedam no futuro Beach Club do Campeche, passam a tarde nas praças reconstituídas pela VVOA, participam de uma conferência no Centro Sapiens e fecham a noite no Primavera Garden, a primeira brincadeira é que estão em algum país desenvolvido do Hemisfério Norte e não no Brasil. No entanto, para aqueles que trabalham na cidade, que carecem de transporte público e não conseguem se sustentar em uma kitnet perto do trabalho, a visão não é a mesma. Esse projeto de cidade que está sendo desenvolvido de forma consensual entre a Prefeitura (especialmente o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis), as empresas (de tecnologia inovadora, Koerich, Hospital Baía Sul etc.) e as associações patronais (de turismo e construção civil) não é ingênuo, ele impõe interesses particulares aos interesses universais da cidade. Exatamente por ser uma estratégia muito bem articulada em questão de parecer a melhor e mais democrática alternativa, é a mais perigosa.

A necessidade de se criar um consenso entre os agentes do turismo, dos pólos tecnológicos, das grandes empresas e da Prefeitura, gerou uma Organização Sem Fins Lucrativos: o FloripAmanhã. A ONG tem diversos projetos para a cidade, como o Adote uma Praça e o Centro Sapiens, mas o mais desenvolvido em questão de gliterização do trajeto inovador é o Floripa 2030. Quase como um sonho fantástico, o projeto, elaborado em seminários agregando todos os setores citados, imagina Florianópolis como a nova Cingapura: transporte marítimo entre diversas porções da Ilha, habitação popular para todos, uma rota inovadora de Norte a Sul e arranha-céus empresariais. A apresentação da proposta, no entanto, similar a uma apresentação de slide, consegue esconder seus interesses aparecendo de maneira sedutora em princípio. 

Não será possível entrar em todas as intenções e consequências do projeto neste texto, é necessário mais aprofundamento, é preciso estar à altura desta estratégia. Por hora, alguns aspectos são indiscutíveis por hoje já serem visíveis: o aumento do preço dos aluguéis, que expulsará os trabalhadores dos lugares centrais, tendo esses que depender do transporte público, que é caro e claramente subdesenvolvido; a consciente e necessária transformação intensa da vida e da cultura: um modo de ser extremamente precarizado que não partirá apenas da produção da cidade, mas se apoiará em diversos modos sobre ela; e por fim, a intensidade da violência policial na Ilha. 

Afroempreendedorismo, design ativista, saúde mental na era do caos, tecnologia contra o preconceito e “a rua é de quem?” são alguns dos temas de conversa que aconteceram durante a Semana Balaclava no Centro Sapiens, nos bares da rua Victor Meirelles, um ponto focal da cultura empreendedora e da especulação imobiliária em Florianópolis. A antiga Pedreira, onde nasceram aqueles que construíram a cidade, onde nasceu a Batalha das Mina e sempre foi lugar sem investimento do Centro da cidade, hoje isenta de impostos as StartUps que ali queiram reinar. A contradição é tanta que, nesses mesmos lugares, após shows produzidos pelo FloripAmanhã, uma roda de samba foi reprimida com balas de borracha pela Polícia Militar, o que tem se tornado rotineiro no Centro Sapiens.

A cultura empreendedora, a cultura de interesse do capital está, dessa maneira, criando garras cada vez maiores na cidade. Os bairros mais afastados e tradicionais do Sul, aos poucos recebem hambúrgueres artesanais, choperias e marcas sustentáveis.  Através de eventos de lazer, revitalização de espaços públicos e uma intensa propaganda da relação de trabalho do empreendedorismo, a mudança na vida na cidade, todos os aspectos dela, é engolida com fácil digestão por aqueles que se transformam. Estes, inclusive, se deparando com o desemprego, se tornam os próximos “empreendedores”: ubers, rappis ou vendedores ambulantes.

A Universidade Federal também tem sido sede para eventos similares como o Floripa Conecta, que reservou por dias a Praça da Cidadania para exposição de carros e o Hall da Reitoria para a exposição de StartUps, inclusive entrando em choque com uma Assembléia Estudantil que aconteceria no mesmo horário. Esse evento, com atividades em toda a Ilha, foi camuflado por pautas “fofas” como marcenaria para mulheres e sustentabilidade, ao ponto que foi realizado e financiado pelos seguintes atores: FIESC, SEBRAE, Fundação CERTI, ACATE, ACIF E CDL Florianópolis, em parceria, é claro, com a Prefeitura de Florianópolis.

A UFSC está no centro da Rota de Inovação de Florianópolis

A atuação da Universidade Federal em conjunto com as entidades, associações e empresas que constroem o FloripAmanhã, tem se dado principalmente através da Fundação CERTI (Centro de Referência de Tecnologia Inovadora). Essa Fundação, apoiada e criada por um grande grupo de empresas, trabalha de diversas formas para inserir um discurso e prática de vinculação direta do trabalho acadêmico com o capital e perpetua o mesmo discurso empreendedor que a ONG FloripAmanhã. Isso se dá por eventos como o Floripa Conecta, mas também pela atuação dos professores como aliados intelectuais/técnicos para a aprovação de projetos como os anteriores dentro da Prefeitura.

Não é possível defender, dessa maneira, que a universidade hoje se encontra imune à transformação que ocorre em todos os níveis da vida social. Não é possível defender que as empresas privadas não estão comendo pelas beiradas a vida universitária e o trabalho acadêmico. No entanto, a situação se agrava qualitativamente e quantitativamente com a possibilidade de implementação do Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – Future-se. Essa minuta tem sido amplamente debatida na Universidade Federal de Santa Catarina e se tornou indiscutível a facilidade que coloca a produção do conhecimento produzido aos interesses do capital. Um programa que prevê gestão da Universidade Pública por Organizações Sociais e a dependência financeira da mesma por empresas privadas hoje significa o fim da autonomia universitária.

Que vida sobrará onde não existir nenhuma crítica? Que cultura será possível quando ela for sempre de interesse do capital? Que debate será feito quando tudo se reduzir a pautas empreendedoras? A vida que hoje temos na universidade, com shows gratuitos, dezenas de cineclubes, feiras, debates, um movimento estudantil forte é por conta de um trabalho de crítica desvinculado dos interesses do capital no âmbito acadêmico, mas principalmente na liberdade de militância das três categorias (técnicos, professores e estudantes). 

A iminência do fim do restaurante universitário, o desleixo com a moradia estudantil e o fechamento do Centro de Convivência, resultado dos cortes orçamentários, colocam em jogo a vida universitária que temos hoje, que não se encontra em nenhuma faculdade privada. A retomada do Centro de Convivência, nesse sentido, aliada à luta dos estudantes contra os cortes orçamentários e contra o projeto de Universidade defendido pelo Estado, é simbólica por reivindicar uma vida universitária com autonomia, uma cultura de interesse daqueles que a mantêm: os estudantes e os trabalhadores.

A Universidade, mesmo sendo empurrada por dentro e por fora para o caminho da mercantilização, ainda persiste em lutar contra a exploração dos trabalhadores. Os estudantes estão no centro dessa luta hoje. Portanto, existe uma responsabilidade de lutar não só dentro da Universidade por uma cultura e uma vida desvinculada dos interesses do capital, mas que isso se estenda para todos. Que a discussão sobre a precarização da vida universitária se expanda para explicitar a precarização de todas as esferas da vida dos trabalhadores. Enfrentará, assim, a exploração que é imposta e intensificada com nome de empreendedorismo, travando a luta por uma cultura e uma escola independentes de interesses privados.

*O texto é de inteira responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do Jornal.

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