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Imagem: Sintrasem (22/fevereiro/2017)

Pequena notícia da história recente: o pacote de maldades de Gean, a luta dos trabalhadores e o cheiro de ralo do Capital.

Foto: Trabalhadores municipais em ato –  SINTRASEM (22/fevereiro/2017) 

24/02/2017 – Redação UàE

É sexta-feira de carnaval. A greve dos trabalhadores chegou ao fim com recuo do prefeito Gean. Os trabalhadores da cidade transbordam alegria. Afinal, a luta que travaram foi dura. E com muita disposição forçaram o prefeito a ceder em ataques aos serviços públicos contidos no pacote de maldades lançado nos primeiros dias do mandato.

O pacote, aprovado pela Câmara, alinhava uma reestruturação da cidade. Do conjunto de medidas, além da Lei 597/17, que altera o estatuto dos servidores, na qual Gean confrontado pelos trabalhadores voltou atrás em um conjunto de pontos, destacam-se: Lei 10.191/17, que institui o programa de Parcerias Público Privadas de FLorianópolis; a Lei 599/17 que cria o fundo previdenciário único da prefeitura; as leis 10.188/17 e 10.192/17 que autorizam o uso de fundos da prefeitura para as parcerias, bem como a aplicação dos fundos no sistema financeiro; a Lei 10.190 que autoriza a prefeitura a parcelar sua dívida com a previdência dos servidores municipais; dentre outras (que podem ser conferidas em quadro anexo[1]) que modificam a estrutura do município no sentido de dispô-lo ainda mais para os empresários.

Nos últimos dois meses, a vida da cidade foi intensa. Gean, os vereadores, os juízes e os empresários tiveram que se ver com os trabalhadores. O terreno árduo da luta de classes foi batido pé a pé. Este texto propõe uma interpretação desta história, buscando apreender seus significados e lições, uma contribuição desde o olhar socialista.

Preâmbulo

Dia 1º de janeiro de 2017. O povo sente a ressaca de um ano duro. Gean Loureiro recebe as chaves da cidade de Florianópolis. Vinte e três vereadores tomam posse das cadeiras da Câmara Municipal. O calor abafado, o cansaço dos trabalhadores indicava, ao menos aos mais ingênuos, que a vida urbana seguiria normal – suada, difícil, mas normal. Em poucos dias essa sensação mudaria por quase todos os cantos da cidade.

Dia 02 de janeiro. O prefeito corta trinta por cento do orçamento municipal[2]. Dia 11 de janeiro. O prefeito apresenta um pacote de trinta e oito medidas à Câmara dos Vereadores[3]. Austeridade, cortar os gastos com os serviços públicos, melhor, com os servidores, concessões, privatizações, marca de Florianópolis. A justificativa: a cidade estaria quebrada, uma dívida astronômica, gastando mais do que arrecada, gastando, principalmente, com a folha de pagamentos. O discurso: o prefeito não pode ficar só reclamando, não pode cruzar os braços, é preciso apertar os cintos, mesmo com a grave crise econômica o caminho é agir para transformar a cidade[4].

No mesmo dia, a Câmara se reúne e define um rito extraordinário para votar o pacote encaminhado pelo prefeito. Antes de abrir o período legislativo, que iniciaria apenas em fevereiro, por ampla maioria os vereadores decidem ignorar o procedimento padrão para votação da legislação e acelerar a aprovação do pacote[5]. Dali a 13 dias a cidade selaria seu destino. Florianópolis será posta à venda.

Dia 16 de janeiro. Os servidores municipais, categoria diretamente afetada pelas medidas, se reúnem em assembleia convocada pelo sindicato. É deflagrada a greve. A reivindicação: a negativa ao pacote de maldades do prefeito, e que ao menos os projetos de lei pudessem ser discutidos com a sociedade[6].

Dia 24 de janeiro. É iniciada a votação na Câmara. Os municipários em conjunto com outros trabalhadores que repudiaram as medidas, protestam no plenário e no calçadão em frente à Câmara. A guarda municipal e a polícia militar são acionadas para coagir os trabalhadores. A despeito da brutalidade da repressão, da acidez do ar infestado com os sprays de pimenta, com as bombas de gás, com a ira dos trabalhadores, do seu aquário os vereadores aprovam as primeiras medidas[7].

Entre 30 e 31 de janeiro. Os vereadores encerram a votação. Apenas uma medida foi arquivada; seis foram retiradas de pauta para tramitação usual, e outras cinco haviam sido retiradas pelo prefeito antes do início dos trabalhos. Assim, com 26 das propostas do pacote aprovadas o novo prefeito de Florianópolis e seus colegas vereadores foram capazes de reestruturar a cidade em menos de um mês[8].

No entanto, ainda no dia 26 de janeiro. Os servidores municipais decidiram por manter a greve[9]. A exigência: a revogação do pacote. O grito: Fora Gean. E a greve continuou, ganhou força e apoio. Durou 38 dias , apesar de todas as táticas utilizadas pelos donos da cidade para enfraquecer os trabalhadores.

Em apenas dois meses a cidade viveu intensamente a árdua luta de resistência entre os trabalhadores organizados e o Capital e seus asseclas organizados no Estado. Para que essa experiência continue viva e seja apreendida pela classe trabalhadora no que tem de mais significativo, sua beleza não pode implicar em uma romantização.

O movimento da classe dominante – A burguesia sai da sombra

A intensidade da luta dos trabalhadores frente ao pacote de maldades de Gean exigiu esforço e o acionamento de distintos sujeitos da classe dominante. Precisaram de todos: os três poderes da república, suas instituições de coerção, a mídia empresarial, políticos de outras localidades e finalmente a própria burguesia por meio de suas entidades de classe. Precisaram utilizar de muitas estratégias para aplacar a greve e seus apoiadores – e em todas as tentativas uma faceta daqueles  sujeitos ficou desnuda: sua brutalidade e hipocrisia.

A agilidade e a violência com que o prefeito encaminhou as medidas, o ativismo dos vereadores para aprová-las rapidamente, o uso escandaloso dos aparatos de repressão para garantir a votação, e, enfim, a descarada ação orquestrada entre estes senhores dizia algo: estavam soberbos, certos de que poderiam fazer o que quisessem e esmagar a resistência dos trabalhadores. Teriam apenas que se acertar entre si, acomodar seus pequenos interesses, talvez tivessem em mente apenas sua própria disputa. E assim, em um mês de mandato, conseguiram destravar ainda mais a cidade para nutrir o Capital.

Mas a greve dos municipários continuou, ganhou força e adesão na categoria e apoio de outros trabalhadores. Então, como num jogo de cartas marcadas, ainda aparentemente centrado na figura do prefeito, acionaram o Judiciário. Rapidamente a greve é decretada ilegal.[10] Nada de novo sob o céu, os trabalhadores já conhecem esse passo, quando se organizam para lutar e paralisam suas atividades, as togas se coçam e cospem: ilegal, ilegal!

Aqui é preciso fazer um parêntese. O judiciário, este velho senhor de perucas estranhas, já mostrara a cara anteriormente. Foi acionado primeiro pelos trabalhadores para impedir a votação de medidas que afetavam o plano diretor da cidade – esta luta antiga e renhida dos trabalhadores, que em suas comunidades foram construindo passo a passo uma proposta, e desde então são desrespeitados em nome dos interesses das construtoras e do mercado imobiliário. Esperançosos, o núcleo diretor do plano participativo, e alguns vereadores de oposição, pediram que a votação de 7 medidas fosse suspensa[11]. E em primeira instância conseguiram. O prefeito e seu procurador logo recorreram. E o velho judiciário, muito imparcial e cerimonioso decidiu: pouco importa esse plano participativo dos trabalhadores, que se toquem os trabalhos[12].

E quanto mais a greve crescia com o apoio de outros trabalhadores, nos bairros, quanto mais a cidade, a cidade real, as pessoas, os trabalhadores que constroem a vida urbana cotidianamente, se somava a luta dos municipários – que começava a entendê-la como sua luta – mais coercitivamente atuavam os poderes da república do capital. Vereadores tentavam negociar, propunham nada e coisa nenhuma; o prefeito, desinformar, dividir os trabalhadores chamando cada setor para reuniões em separado[13]; e o Judiciário, ah o Judiciário. À pedido do prefeito, o Judiciário decretou a greve ilegal e determinou uma pesada multa sobre o sindicato; não teve efeito. Aí então, escancarou-se: pediu a prisão dos diretores do sindicato, sua destituição da direção e a nomeação de um interventor no instrumento organizativo dos trabalhadores.[14] Ainda sem efeito. Pediu o desconto dos dias parados, atacou individualmente cada trabalhador que fosse à greve. Mesmo assim, os trabalhadores não cediam.

Enquanto isso o prefeito, com as chaves da cidade na mão, trabalhava em dois sentidos: vencer a greve; vender a cidade. Para o primeiro, foi à mídia e na RBS, na RIC – no veículo empresarial que o recebesse, iniciava o discurso: a cidade está quebrada, são mais de um bilhão em dívidas, 600 milhões para pagar esse ano, o SINTRASEM não pode prejudicar os demais trabalhadores da cidade, é preciso apertar os cintos, assim por diante[15]. Num ato tragicômico, cortou seu próprio salário, do vice e dos seus secretários[16]. E fez mais. Mostrou trabalho: foi às obras saudar os trabalhadores que revitalizavam a cidade, foi às operações de combate aos “comerciantes ilegais”, eufemismo para os vendedores de rua[17]. Ele não estava de braços cruzados, estava batalhando pela cidade. Batalhando para vender a cidade.

E foi viajar, foi a Brasília, a São Paulo, etc[18]. Buscar recursos com o Governo Federal, para preparar a cidade para os investimentos. Foi aos bancos buscar créditos para as obras, para apresentar a nova cidade mágica do seu governo – uma mina para os investimentos. E se esforçou para trazer para uma grande empresa, que trará “muitas oportunidades”, ele e sua equipe trataram finamente os empresários:

“Queríamos expandir para outro mercado. Avaliamos Florianópolis como um lugar muito bom para morar e estratégico por estar perto de mercados como Curitiba e Porto Alegre. Sem falar que a alíquota do ISS é menor (2,4%), enquanto que no Rio de Janeiro é 5%. A Prefeitura foi ágil em todo o processo. Sensacional todo o engajamento da equipe e interesse em ajudar, acelerando em um ano a nossa vinda. Queremos servir como embaixadores e trazer mais empresas do ecossistema para a cidade”Alex Tabor, presidente do Peixe Urbano[19].

A máscara da Câmara de vereadores já havia caído. O prefeito estilhaçou a sua própria. Ele que há poucos meses havia sido eleito, exaltando a saúde e a educação como prioridades. Que falava apaixonadamente sobre a valorização dos servidores municipais. Que fazia o velho, batido, roto discurso do político bom moço, caridoso, que se preocupa com as pessoas, logo após pegar as chaves da cidade deixou muito, muito claro que a prioridade, a preocupação era outra: os negócios!

A classe política da cidade, como a do país, ficou nua – não passam de representantes dos interesses do Capital, atuam para ele e para si próprios, para engordar às custas dos trabalhadores, por meio da apropriação do fundo público. E lá estão as PPPs[20], os fundos para PPPs para aplicar no sistema financeiro, serviço voluntário, à custa dos serviços e dos servidores públicos, à custa das condições de vida da classe trabalhadora com cujo suor produz este fundo público.

Nu também ficou o judiciário, com as togas arriadas e os caninos à mostra. Nua ficou a república em sua microescala – a cidade – assim como está nua a República Nacional. Suas formas, seus três poderes, seus ritos, não podem mais esconder seu conteúdo de classe – esta é a república do capital. E lhe serve não apenas para dominar a classe trabalhadora, mas como meio de extração de sua força vital, como meio de apropriação para manter as bolsas adiposas da acumulação de capital.

Com o grito “Fora Gean” ecoando pelas ruas da cidade, em cada bairro, no asfalto e no morro; com a hipocrisia do prefeito, dos vereadores, da justiça escancarada; com os trabalhadores ganhando mais e mais apoio; o guardião das chaves de Florianópolis enfraquecido fez o mesmo, buscou suporte. Procurou os políticos de seu partido, e Eduardo Pinho Moreira, vice-governador de Santa Catarina, e Udo Döhler, prefeito de Joinville, deram-lhe um conselho amigo[21]; estes da mesma classe política, do mesmo partido cheio de lama, falaram: “nada de ceder, sarrafo nos trabalhadores.”  Buscou os empresários, e eles disseram, não apenas a ele, mas ao público – em 15 de fevereiro publicaram um manifesto:

Um futuro melhor para Floripa

Florianópolis está empobrecendo. A cidade não produz riquezas para melhorar a renda das famílias. Não cria os 10 mil empregos anuais exigidos pela população. Como consequência, alastra-se o desemprego, a desagregação das famílias, a miséria e a marginalização.

Acreditamos que o desenvolvimento econômico é o caminho para as melhorias sociais e que, bem administrado, como se espera, é o melhor aliado da preservação e valorização do nosso rico patrimônio ambiental e cultural.

Entendemos que o plano diretor da cidade, além de ser o instrumento fundamental para organizar a ocupação espacial do território, deve ser a mais importante ferramenta estratégica para orientar as forças econômicas.

Defendemos uma gestão municipal eficiente como condição para reorientar os rumos da cidade para um cenário de crescimento sustentável e melhorias sociais. Para isso, muitas vezes se faz necessário a adoção de medidas econômicas com caráter impactante, que visam alcançar resultados imediatos a fim de vencer os desafios impostos à cidade.

Apoiamos a manutenção do plano diretor aprovado pela Câmara dos Vereadores em 17 de janeiro de 2014, através da Lei Complementar nº 482, e a fixação do prazo de até 180 dias para que a nova gestão possa aprimorá-lo, por meio das contribuições enviadas pela sociedade e com o apoio técnico de entidades representativas de urbanistas, arquitetos e engenheiros.

Não podemos permitir que Florianópolis tenha o mesmo destino de grande parte das capitais brasileiras. As forças produtivas da cidade, aqui representadas pelas entidades signatárias, respondem por aproximadamente 80% da geração de riqueza da cidade e por 60% dos empregos formais. Juntos, neste momento, buscamos soluções que garantam a qualidade de vida para todos os que aqui vivem.

O manifesto, apresentado aqui em sua íntegra, foi assinado por 33 entidades empresariais e de gestores técnicos do Capital.[22] O conjunto de organizações que organizam a sociabilidade burguesa na cidade foi instado a se manifestar, e, muito preocupados com o futuro das famílias em Florianópolis, externaram sua ansiedade com o empobrecimento da cidade, com o desenvolvimento econômico, com o plano diretor.

Omitiram apenas que por desenvolvimento econômico, esta expressão versátil que cabe onde for, entendem o andamento da taxa de lucros que enche seus bolsos, que as melhorias sociais que dele derivariam não são nada além da organização da cidade para a exploração dos trabalhadores. Deixam claro que o plano diretor que tanto defendem é a preparação do território para seus investimentos, e nada tem a ver com um plano participativo construído pelos trabalhadores para uma vida digna na cidade. Esquecem que sua preocupação com a miséria, com a desagregação familiar, é apenas a de manter os trabalhadores bem comportados, em seu lugar, consumindo o que lhe é próprio, aguentando de cabeças baixas o tacão de ferro que os senhores das entidades lançam sobre suas cabeças. E por último deixam evidente que não vão permitir que Florianópolis tenha o destino de outras capitais (talvez como Porto Alegre, ou o Rio de Janeiro em que a burguesia enfrenta convulsões sociais com a luta dura dos trabalhadores); mostram sua força: 80% da geração de riqueza (quanto a custo do fundo público?), 60% dos empregos formais, e que apesar de suas divergências esforçam-se para se unir.

No dia anterior, 15 de fevereiro, se pronunciou sozinha a ACIF. Muito menos sutil em suas ameaças, em sua indignação, os comerciais e industriais de Florianópolis lamentaram a decisão dos trabalhadores de manter greve, apesar das decisões do Judiciário acerca de sua ilegalidade:

A Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (ACIF), entidade que representa mais de quatro mil empresas, vêm a público lamentar a decisão do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Florianópolis (Sintrasem) de desrespeitar reiteradas decisões do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e manter comprometidos serviços essenciais para a comunidade, notadamente nas áreas de educação e saúde.

Pior: a falta de disposição para o diálogo, reforçada por “ameaças” de paralisação de outros segmentos, aumenta a tensão entre os moradores da Capital. O fechamento de escolas e postos de saúde, diante de decisão em contrário do Judiciário, é inadmissível. É fundamental, por isso, que a Justiça exija o cumprimento de suas determinações e que a Prefeitura Municipal mantenha postura firme.

Infelizmente a cidade enfrenta uma das maiores crises de sua história. As medidas tomadas pelo Executivo municipal para enfrentar o problema, com amplo respaldo entre a população, são essenciais para evitar que Florianópolis percorra o mesmo caminho trilhado por estados e municípios que enfrentam grave crise, com atraso de salários e outros pagamentos[23].

Indignados de que os trabalhadores não respeitaram as decisões dos senhores das togas, localizaram no Sindicato a indisposição para o diálogo, o Sindicato é o grande problema da cidade. Afinal, como podem os trabalhadores se organizarem, como podem não obedecer às autoridades burguesas, não pensar na grave crise que enfrenta o município e como ela pode ter um final devastador? Não pensam como o Capital quer que eles pensem? Assim, tinham que localizar nas formas organizativas dos trabalhadores a fonte da sua ira. E mais, eles, diferente do coletivo das entidades burguesas, defenderam o executivo; o executivo, mas também não o prefeito.

Instado a se pronunciar, o Capital, à partir das suas entidades burguesas, assim o fez. Mas sem se comprometer com o prefeito ou com os vereadores, sem se comprometer com os políticos que o defendem e que defendem seus interesses próprios. Sim com sua política, a política do Capital que implementaram. Saíram à sombra dos políticos, do judiciário, não por solidariedade aos seus, mas sim porque havia muito em jogo.

Em primeiro, porque o pacote de maldades de Gean, embora de autoria sua e de sua equipe (e não esqueçamos que dois professores da UFSC a compõe: Maurício Pereira e Carlos Alberto Justus da Silva), tem sua raiz no que pensam e querem os empresários para garantir que mesmo com a crise continuem acumulando riquezas sobre o lombo dos trabalhadores. As políticas de austeridade, de ataque aos serviços públicos, de privatizações não estão em voga por estados e munícipios a esmo. São aplicadas pelo Governo Federal, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, entre tantos outros estados e munícipios,[24] não apenas porque assim querem os políticos, porque assim desejam os corruptos, os partidos aliados. Mas porque esta é a resposta da burguesia à crise, e é claro que os seus políticos têm interesses próprios nisto – em garantir a sua corrupção –, garantindo a corrupção dos burgueses, garantindo que mais e mais o fundo público esteja à sua disposição para que se aproveitem. O custo são as condições de vida, osanos futuros, dos trabalhadores. É isto que ocorre em Florianópolis.

E ainda, aqui a luta dos trabalhadores ecoou. Pôs em algum risco não apenas a projeto de retirada de direitos dos servidores. Mas a estabilidade política do Capital. O clima da cidade começava a ficar distinto. O prefeito recém eleito perdia apoio, as instituições perdiam apoio, os trabalhadores ganhavam consciência. Aos poucos, ainda de forma incipiente, mas os trabalhadores viam que podiam se organizar, e desobedecer. A política de reestruturação poderia ser posta em risco em sua totalidade. E isto não era admissível. Isto não poderia ser permitido.

Por isso, tanto tentaram coagir, ameaçar, e cada vez que o faziam, a indignação dos trabalhadores aumentava, a raiva dos trabalhadores circulava a cidade ante o cheiro de ralo da burguesia que impregnava as ruas. Então, Gean cedeu. A burguesia cedeu. Numa parte, para não perder o todo. Para garantir a normalidade. E propôs alguns recuos.

Obs.: Enquanto isso, a mídia empresarial seguiu com seus colunistas vociferando, escancarando a ira dos que mandam, dos que exploram. Ora temperando as palavras com raiva, ora com hipocrisia – preocupados com a população sem acesso à saúde e à educação por conta da greve. Seu papel nesse momento não pode ser subestimado. Mas, tampouco, foi largamente efetivo como outrora. Cada vez mais desmoralizados, sua maquiagem derrete em frente às câmeras mostrando sua verdadeira face.

O movimento dos trabalhadores – a greve e sensação de convulsão na cidade

Foto: Sintrasem (08/02/2017)

 

Com a deflagração da greve contra o pacote de Gean em 16 de janeiro, os municipários botaram em movimento o cotidiano da cidade, das gentes – a cidade profunda. O primeiro cenário de luta: a votação na Câmara. A greve forçou uma tentativa de unidade na luta dos trabalhadores, ainda que incipiente, para barrar o pacote de Gean. Nossa classe, ainda fragmentada por diversas razões – pelo que implicam as três décadas do deserto neoliberal na constituição dos sujeitos, pelo sindicalismo pelego, o sindicalismo cidadão e de resultados, pelo oportunismo de distintas organizações pretensamente de esquerda, pela acomodação de um setor da classe com os anos do governo neoliberal do partido dos trabalhadores, por tantos motivos – nossa classe, ainda que com suas dificuldades, foi ao plenário, foi às ruas dizer que não admitia as medidas. A greve dos municipários, a paralisação dos trabalhadores da COMCAP[25] no primeiro dia de votação lançou força à resistência.

E o prefeito e os vereadores responderam com repressão. Enviaram a guarda e a polícia para atacar os trabalhadores em luta. Com isso, aprovaram o pacote. Mas criaram ainda mais indignação nas ruas da cidade. Ficou evidente o que seriam capazes de fazer para garantir a venda da cidade.

Ainda que derrotados na Câmara, os trabalhadores decidiram por seguir lutando. Assim, desde 26 de janeiro foi se dando a greve. Se aprovaram sua política por cima das cabeças dos trabalhadores, que agora a revogassem! E essa decisão que tomaram, embora dura, essa decisão de não baixar as cabeças às instituições do Capital, lhes valeu a greve. E a greve foi conquistando os trabalhadores em outros cantos da cidade. A forte adesão dos municipários[26], e sua insistência em continuar a despeito de cada coerção que o Estado lhes impunha, ganhou sutilmente o coração de muitos.

E foi essa altivez frente às muitas ameaças de coerção, que chegou ao cúmulo de solicitar a prisão dos diretores do sindicato, que lhes deu força. O efeito foi contrário ao que esperava o prefeito e o judiciário: quanto mais seu chicote estalava, mais os trabalhadores se fortaleciam, mais outros trabalhadores se solidarizavam.

O espraiamento da base da categoria pela cidade, o que poderia ser uma adversidade, contribuiu. Estavam lá os municipários, nos bairros, conversando com os outros trabalhadores. Atos em apoio se fizeram nos bairros. Outros trabalhadores passaram a pressionar a prefeitura em defesa do serviço público. Passavam a compreender o que significava o ataque aos servidores – era um ataque aos serviços, à possibilidade de acessar com qualidade os seus direitos. Logo o “Fora Gean” deixou de ser o grito apenas dos municipários, mas sim o grito da cidade profunda.

É evidente que a paralisação das atividades teve forte impacto. Com a assistência e a saúde paradas com ampla adesão, a greve foi sentida na cidade. A saúde teve um papel particular, empurrou todos aos hospitais já largamente precários. Escancarou a falta que os serviços fazem aos trabalhadores. Em seguida, a paralisação quase total do magistério, que no dia 07 de fevereiro declarou que o ano letivo não se iniciaria em Florianópolis – a greve ganhou novo fôlego. E mais trabalhadores demonstravam seu apoio.

E as ruas e praças foram palco de grandes manifestações, de grandes assembleias[27]. Milhares de trabalhadores em movimento. A consciência crescendo nos recantos da ilha e atravessando a ponte. Outras categorias indicando que poderiam aderir à luta. Os políticos, as togas, os empresários suaram. Estavam desmascarados os três poderes. O Capital podia perder a mão, a política de reestruturação da cidade podia entrar em cheque.

Então, os senhores do dinheiro e seus asseclas se mexeram ainda mais. Foram à mídia. Lançaram seus manifestos. Atiçaram ainda mais seus colunistas míopes e raivosos. Atacaram o Sindicato. Gean descaradamente ia aos jornais dizer que o sindicato mentia aos trabalhadores.[28] E os jornais da grande mídia empresarial o deixavam falar livremente. Os empresários, aos jornais preocupados com o futuro da ilha da magia. Afinal, como pode em uma cidade tão cheia de belezas, uma cidade mágica (para os seus investimentos) os trabalhadores constituírem um sujeito coletivo e pensarem por si próprios? Como pode nesta cidade os trabalhadores não guardarem qualquer deferência pelos poderes democráticos da república burguesa? A justiça já bradou: ilegal! Todos já pedimos: dialoguem – que no latim dos empresários significa “baixem as cabeças e não se atrevam a questionar nossas diretrizes”.

E a classe dominante espumou ainda mais quando nas últimas semanas da greve, quando chegou 24 dias de resistência, quando ela deveria estar enfraquecida e moribunda, ainda não estava. E principalmente espumaram quando souberam que os trabalhadores da COMCAP se preparavam para aderir ao movimento, quando os trabalhadores do transporte urbano indicaram que iam paralisar em solidariedade[29]. A cidade ia efetivamente parar – com educação, saúde, assistência, o munícipio paralisado, com a COMCAP e os motoristas e cobradores; a cidade preparada para a exploração dos trabalhadores ficaria à míngua.

A parede das cápsulas entre as diferentes categorias de trabalhadores da cidade podia se romper. A greve que já contava com forte apoio da população, poderia ganhar um salto qualitativo. A cidade, cujo fio de normalidade já era muito fino e praticamente desfeito, poderia entrar em convulsão. O que poderia acontecer dali para frente, era incerto para todos.

E mais, os trabalhadores da COMCAP não iriam aderir apenas em solidariedade aos servidores estatutários. Os trabalhadores da COMCAP estavam mirando as Parcerias Público-Privadas que poderiam acabar com a companhia. Sua adesão à greve botava em jogo não apenas o ataque aos servidores públicos, mas sim outro dos cernes da política de reestruturação da cidade implementado pelos políticos. A cidade do Capital, preparada para nutrir os empresários, os investidores, montada para as reformas vindas e vindouras de Brasília, preparada para a terceirização das atividades fim, preparada para a reforma trabalhista, pronta para pesar ainda mais a mão dos empresários, não poderia ser ameaçada.

Então, Gean fez seu primeiro recuo. Em 16 de fevereiro, a prefeitura encaminhou à Câmara de vereadores um projeto de lei para alterar a recém-aprovada Lei 10.191/17, oriunda do pacote de maldades, que estabelece o Programa de Parceria Público-Privadas de Florianópolis – a lei que dispõe os serviços públicos como área de investimentos para o Capital, a lei que dispõe ainda mais o fundo público para a recuperação dos lucros dos empresários. A alteração: as PPPs não se aplicam à Companhia de Melhoramentos da Capital[30].

Os políticos, as togas e os burgueses não poderiam tolerar que outras leis do pacote entrassem em questão. Não poderiam tolerar que os trabalhadores se unissem e lutassem contra todo o pacote. Gean começou a ceder.

E dali nos próximos sete dias cederia ainda mais para pôr fim à greve. Enviou um projeto a Câmara que alterava a Lei Complementar 597/17[31], a lei do pacote que atacava o direito dos servidores, e assim atacava os serviços públicos. O projeto tinha pouco impacto real sobre os ataques perpetrados na lei do pacote. Gean tentou dizer que estava negociando, foi à mídia – ou a mídia foi à ele. Nada mais que um gesto vazio. O Sintrasem denunciou.[32] Os trabalhadores não aceitaram.

No dia anterior o Sintraturb, em assembleia dos trabalhadores, indicou paralisação para a semana seguinte para lutar ao lado dos municipários. O clima de instabilidade seguia na cidade. A sensação de que os trabalhadores poderiam tomar para si o destino da cidade ainda circulava. E mais, se a greve se arrastasse poderia se encontrar com outros ciclos de lutas – em março há já em preparação a paralisação internacional de luta das mulheres, há paralisação contra a reforma da previdência – logo começaria o ciclo das data-bases, logo deve se acirrar a luta contra a reforma da previdência e a trabalhista.

Então, os políticos resolveram ceder. Envolveram os três poderes. Convocaram uma audiência de conciliação no tribunal de justiça, sob os olhos argutos de uma toga. Gean, que não tinha aparecido para nenhuma negociação, deu as caras. Na proposta de acordo, a Câmara está lá. E os vereadores de sua base devem aprovar as propostas, não porque queiram, mas para não enfraquecer ainda mais o parlamento e o executivo, para não inflamar ainda mais os trabalhadores.

Gean cedeu. Comprometeu-se a encaminhar para a Câmara alterações no projeto que deixavam praticamente intacta a Lei Complementar 597/17. Cedeu na incorporação de gratificações, indenizações e adicionais, permitindo aquela inerentes aos cargos; cedeu para que estas se incorporassem na aposentadoria, desde que os servidores tenham 10 anos ininterruptos ou 15 alternados de contribuição; recuou no adicional por tempo de serviço, os anuênios e triênios, com a condição de que os trabalhadores não tenham duas ou mais faltas injustificadas por ano; recuou no adicional por serviço noturno; recuou na remuneração das licenças por doença de familiares; nas férias para as auxiliares de sala; nas licenças-prêmio com 45 dias, desde que sejam utilizadas para capacitação; recuou na hora atividade e comprometeu-se a regularizar os plantões da saúde e assistência. Além disso comprometeu-se a retirar da Câmara o PLC 1594/17 que trata da criação da previdência complementar, a não perseguir e punir os grevistas e a direção do sindicato, e a não cortar o ponto dos trabalhadores desde que estabeleçam plano para repor 52% dos dias parados.[33]

A categoria, em assembleia na tarde de ontem, aprovou os termos do acordo e encerrou a greve. Os municipários empurraram Gean a recuar. E ele cedeu os dedos para não perder os braços. A vitória não foi o acordo. Os trabalhadores é que venceram.

Reflexões: o cheiro de ralo da burguesia e os desafios aos trabalhadores

O acordo, embora não seja a principal vitória, não foi menos importante. Os municipários forçaram Gean e os políticos a recuarem em um pilar da política de reestruturação do Estado vigente em todos os níveis da República – o ataque aos servidores públicos. Os trabalhadores conseguiram desenhar no terreno da luta de classes um limite para a voracidade burguesa.

Que esse limite possa voltar a ser cruzado não torna menor seu significado. Gean teve que engolir seco sua soberba, ver-se com sua hipocrisia, com o discurso vazio propalado em campanha. Os políticos, os empresários, foram forçados a ceder, muito estava em jogo. Mas, tampouco há que se romantizar: nessa luta resistência, o acordo significou uma derrota a menos para os trabalhadores.

O conjunto do pacote de medidas ainda está em vigência. Com as parcerias público-privadas, o serviço voluntário, a disposição do fundo público para o sabor do Capital – esta corrupção mais intestina do capitalismo na dependência – a facilitação das permissões e licenças para organizar o território em favor dos investimentos, enfim com a cidade reestruturada, pronta para as reformas pró-burguesia no porvir nacional, pronta para encher os bolsos do capital, com isso o anúncio nos classificados dos jornais burgueses segue em letras garrafais: Florianópolis segue à venda.

A vitória dos trabalhadores, a vitória que poderá construir outras a seguir, passa pelo significado da própria experiência. Organizados, altivos frente às coerções, com apoio de outras categorias, os municipários lograram defender um flanco das condições de vida e trabalho, não apenas suas, mas dos trabalhadores da cidade. E esse é um primeiro entendimento que foi ganhando a população – os ataques aos servidores e aos serviços públicos não atingem apenas os trabalhadores destas categorias, mas o conjunto da classe, pois com o desemprego crescente, com os baixos salários da ampla maioria dos empregados, os serviços públicos são essenciais para a reprodução da vida de nossa classe.

E é isso que está em jogo com a reforma, as condições de reprodução da vida dos trabalhadores em nome da recuperação financeira do Capital. E os capitalistas não têm escrúpulos. Mostraram os dentes assim que sentiram uma leve ameaça.

Foi assim, pois a sensação de normalidade começou a ser rompida na cidade. Os trabalhadores, e não apenas os municipários, começaram a sentir que podiam se rebelar. Aos poucos outras categorias foram acenando adesão. Aos poucos as cápsulas dos trabalhadores foram estalando, ainda com todos os problemas que a organização dos trabalhadores enfrenta, laços tênues foram se formando e vislumbrando um destino comum de lutas.

É claro, para que isso se efetive concretamente há ainda muito a ser encarado. Os trabalhadores hão de se ver com as direções pelegas, com o sindicato cidadão, com o sindicato de resultados, com o corporativismo, com o individualismo, com as crenças de saídas humanizadoras no capitalismo. E com tanto mais, com a esperança no parlamento, na justiça.

Mas, aos poucos o ouro de tolo dos burgueses começa a rachar. Em Florianópolis, como tem acontecido por todo o país, o rei ficou nu. As vestes respeitáveis dos políticos caíram, a pretensa democracia da Câmara dos senhores ficou estatelada por sobre a brutalidade da violência da guarda e da polícia; as togas se arriaram, mostrando a face feroz e interessada do judiciário; a máscara de bom-moço do prefeito ruiu. E os empresários, ah eles mostraram a cara. O cheiro de ralo do Capital impregnou as ruas da cidade.

E mostraram que eram capazes de rifar os seus. Assim como nacionalmente rifaram o Partido dos Trabalhadores que os serviu ativamente por doze anos. Sutilmente afastaram-se do prefeito, e se fosse preciso era melhor sacrificá-lo do que sacrificar a política de arrocho e privatização. Quando os gritos de “Fora Gean” tomaram as ruas da cidade, ele, o prefeito que já tinha assumido com forte rejeição, que havia vencido por pouco a contenda eleitoral com a candidatura também reacionária de Ângela Amin, ele podia ser descartado. Antes que o grito se qualificasse.

E o grito poderia ter se ampliado. Para vencer a política de reestruturação em todos os níveis, as políticas devastadoras de apropriação do fundo público e de intensificação da exploração do trabalho há que se enfrentar com todos os seus agentes. E aqui, na ilha da magia, poderia ter ganhado eco: um grande Fora Gean; Fora às togas de plantão; Fora aos políticos; e um estrondoso Fora ACIF; Fora FIESC; Fora Floripamanhã; Fora as 33 organizações dos empresários que saíram em defesa da privatização da cidade; Fora Capital.

Nestes dois meses de greve, aos poucos os corações da cidade foram conquistados pela luta dos municipários. O ar se tornou pesado. Ainda que apenas uma possibilidade, pairava no horizonte a ira dos trabalhadores – e em algum momento, como num barril de pólvora esquecido, ela poderia explodir e tomar as ruas. Crescia a sensação de que a vida não seguia normal, de que os trabalhadores poderiam tomar os rumos da sociedade em suas mãos. E ela corre pelos meios-fios, sobe as calçadas, e têm envolvido, aos poucos, vagarosamente, como um visco, os corpos e os pensamentos dos trabalhadores.

Há alguns anos, ela tem vindo à tona. Como em ondas, assoma à superfície, nos braços e na voz de cada trabalhador em luta. Esta foi mais uma delas, e muito há ainda que se refletir dessa experiência, muito a debater e a significar. Mas, há uma esperança. A única que talvez possamos cultivar, ou melhor, construir: a esperança de que ela virá novamente – e não mais como uma onda, mas um maremoto que não deixará pedra sobre pedra.

São talvez essas possibilidades que foram abertas com a luta dos trabalhadores do município, a grande vitória desta greve.

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