Relembrar Córdoba: 96 anos de lutas pela universidade pública.

Relembrar Córdoba: 96 anos de lutas pela universidade pública

Relembrar Córdoba: 96 anos de lutas pela universidade pública.
Relembrar Córdoba: 96 anos de lutas pela universidade pública.

As universidades chegaram a ser assim fiel reflexo destas sociedades decadentes que se empenham em oferecer este triste espetáculo de uma imobilidade senil. (…) A juventude já não pede. Exige que se reconheça o direito de exteriorizar esse pensamento próprio nos corpos universitários por meio de seus representantes. Está cansada de suportar os tiranos. Se foi capaz de realizar uma revolução nas consciências, não pode desconhecer-se a capacidade de intervir no governo de sua própria casa.(Manifesto de Córdoba, 1918).

Há 96 anos estudantes da Universidade de Córdoba, na Argentina, publicaram um documento que ficou conhecido como o Manifesto de Córdoba. Naquele texto, expressaram seu repúdio à ordem vigente nas universidades da época. Afirmaram como sua por direito – por ser, afinal, o setor estudantil parte maior e integral das instituições de ensino – a participação efetiva na direção das universidades. E tal direito exerceram, conquistando-o por meio da insurreição; materializando suas propostas em uma série de reformas que modificaram radicalmente o funcionamento das universidades argentinas e, indiretamente, as de outros países latino-americanos.

Mais além, a Reforma de Córdoba teve forte impacto sobre a organização estudantil em toda a América – inclusive, no Brasil, na fundação da União Nacional dos Estudantes (UNE), 20 anos depois. Influenciou também o pensamento de intelectuais de esquerda latino-americanos que refletiram sobre o ensino superior a partir de uma perspectiva popular e anti-imperialista – como o peruano José Carlos Mariátegui, o cubano Julio Antonio Mella, o argentino José Ingenieros, e os brasileiros Álvaro Vieira Pinto, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes.

A importância do movimento cordobenho, entretanto, não se encontra apenas em seu peso histórico, nem em sua originalidade. Reside, principalmente, na medida em que muitas de suas propostas e reivindicações mantêm-se atuais após quase um século, atestando a dificuldade da organização estudantil e popular em sobrepujar as forças conservadoras que agem sobre as instituições de ensino superior.Daí decorre a necessidade de relembrarmos Córdoba, exercício que também nos coloca face a face com nossas próprias limitações enquanto sujeitos políticos nas universidades.

Córdoba não ocorreu num vácuo histórico, nem foi apenas um movimento estudantil. No início do século XX, a ordem social na América Latina passou por profundas transformações, implicando em novas relações de classe, em função, sobretudo,da incipiente industrialização, que resultou na emergência de uma nova burguesia e de organizações proletárias. Na Argentina, os interesses desses setores chocaram-se com os das velhas oligarquias e da Igreja, que mantinha estrito controle sobre as instituições de ensino. As burguesias industriais apoiaram politicamente as reformas de caráter liberal menos radicais, enquanto o setor operário buscou uma articulação com a esquerda estudantil, visando transformações de caráter efetivamente popular.

Havia um caldeirão político-cultural em ebulição. Concepções liberal-burguesas; socialistas, revigoradas pela revolução na Rússia (ocorrida apenas um ano antes); anti-imperialistas, dados o anacronismo das instituições de ensino estruturadas conforme o padrão colonialista europeu; e assim por diante. Nesse contexto surgem as pautas do movimento de Córdoba. Por outro lado, a situação das universidades eram duramente enfrentadas cotidianamente pela juventude. Desse panorama é possível extrair alguns paralelos com a conjuntura política atual nas universidades brasileiras: instituições divididas entre um propósito popular e a subserviência a interesses do mercado, sofrendo intervenções estrangeiras que atestavam a hegemônica dependência cultural dos países de capitalismo central, o poder desigualmente distribuído e hierarquizado, de modo a conservar o status quo etc.

Inconformados com a arcaica política universitária, dominada pelo professorado catedrático, os estudantes declararam greve discente e manifestaram-se pela implantação deseu projeto universitário. O programa cordobenho estruturou-se em torno de trêsgrandes eixos: a democratização da gestão, a conquista da autonomia da instituição para formular suas próprias políticas de atuação, e o direcionamento da estrutura de funcionamento e das atividades universitárias para a resolução dos problemas nacionais – numa perspectiva classista e anti-imperialista.

É importante pontuar a radicalidade das propostas estudantis acerca da democratização da gestão. Reivindicavam não apenas o voto universal nas eleições dos dirigentes, mas sim o co-governo estudantil em todas as instâncias deliberativas, além da intervenção do corpo discente sobre os métodos de ensino e aprendizagem. Propunham, portanto, a total subversão das relações de poder estabelecidas entre professorado e alunos, dentro e fora da sala de aula. Constituíram um programa admirável, particularmente se pensarmos há quantas décadas convivemos com a farsa que é a “participação” discente e trabalhadores nos espaços de deliberação das universidades do Brasil.

O movimento estudantil hoje limita-se a combater mudanças mais reacionárias, mas existe uma grande dificuldade em avançar em pautas que questionem as estruturas da universidade. Denuncia-se as novas formas de privatização do ensino superior, as fundações, a EBSERH, o ensino tecnicista, mas mesmo estas pautas estão “largadas aos quatro ventos”. O que tem de mais contínuo, como pauta do movimento de estudantes, é a luta contra as opressões e pela permanência estudantil, que implica em abolir o caráter elitista da universidade. Contudo,ainda estamos distantes de uma transformação cultural do mundo universitário. Nas “Horas Felizes” ouve-se samba de raiz, mas os carros com funk ainda afligem os frágeis corações burgueses. E mais distantes ainda de algo essencial: a retomada de um amplo programa de transformação da universidade brasileira.

Mesmo uma pauta que atinge cotidianamente a maioria dos estudantes, como é a pauta da violência no campus, que foi central nas eleições do DCE, e que continuará sendo alvo de discussões, não foi ainda capaz de radicalizar o debate para pensar numa solução dentro de um projeto devir a ser para nossa universidade. Enquanto a universidade continuar sem problematizar o aumento da violência e, ao invés disso, utilizar de meios repressivos e excludentes como solução para este tipo de questão, só estará contribuindo para a manutenção do status quo. Se não partir da universidade uma postura crítica em relação à sociedade e aos seus próprios problemas, de onde virá?

A reforma de Córdoba aponta: é preciso reinventar a universidade. É preciso romper com as estruturas autoritárias e desiguais, sintonizar-se com às necessidades atuais da sociedade (mas nunca com suas demandas pragmáticas). Ir além de pautas cotidianas específicas e fortalecer aquelas que vão no cerne das grandes questões de nosso tempo. E acima de tudo: a juventude de Córdoba de 1918, nos mostra há 96 anos que toda reforma em nossas universidades, se não forem conduzidas a partir de um programa ampliado de transformações radicais,não será mais do que a adequação dessa instituição aos ditames da sociedade de mercado.

Olhar para o manifesto de 1918 permite vislumbrar corajosamente a distância entre nossos sonhos e nossos desafios, entre nossas virtudes e a soma de nossas derrotas. Quando nos perguntamos, não o que há de atual nesse manifesto, mas no que ele tem a nos dizer sobre nossa universidade hoje, partilhamos do mesmo sopro de coragem de nossos companheiros da geração de 1918, rumo a construção de um projeto de universidade que não caiba mais em um único nome – ou às sobras de uma única organização política.

Pois há certos projetos que se gestam no seio da juventude e que ninguém poderá falar em verdade que algum dia eles tiveram donos. A radicalidade irredutível de uma boa ideia é que ela não pode ser calada por um selo de propriedade. Córdoba nos inspira hoje a continuar cerrando as fileiras de lutadores pela universidade e pela educação pública. Hoje, somos todos cordobeños!

Florianópolis (SC)
UFSC à esquerda, 21 de Junho de 2014.

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