Thiago Zandoná* – Redação UàE – 05/10/2018
A candidatura de Guilherme Boulos e Sônia Guajajara da coligação entre o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Partido Comunista Brasileiro (PCB) representa a maior derrota da esquerda socialista desde 2013. Nas eleições mais instáveis desde a redemocratização, onde o pacto de classes esteve rompido, a esquerda não oferece um programa a altura dos anseios sociais.
A partir das jornadas de junho, há 5 anos, a crescente manifestação popular através de mobilizações, atos e ocupações, revela que uma parcela significante dos trabalhadores e estudantes não se sentem representados pela convencionalidade política.
Se antes o discurso populista conciliava, após o aumento dos ataques sociais (devido a intensificação da crise) e descontentamento político (marcado pelas jornadas de 2013), o terreno político se acirrou e as disputas pelas frações de classes se intensificaram.
Nesse terreno de frustração e ansiedade por algo substancialmente diferente, condenar a população à opção binária PT ou fascismo é destrutivo para a esquerda socialista. Era preciso apresentar um outro caminho, que questionasse os parâmetros da ordem estabelecida e indicasse um projeto revolucionário.
O pacto conciliatório estava decomposto. Um resultado disso foi o desalento de parte dos brasileiros com o lulismo. Pesquisas apontam que o interesse do eleitorado, que era abaixo de 50% em 2014, aumentou para 70% em 2018, mostrando que, longe de abandonar a política, o povo aspira por novos rumos.
Em busca de um caminho diferente e de outra figura de apoio, parte da população estava em disputa no começo do processo eleitoral. As treze candidaturas à presidência da República deste ano revelavam isso. As frações da burguesia, que estava fragmentada, entrou para pleitear a classe média (descontente com as políticas há anos) e as frações da classe trabalhadora. O “centrão”, grande aliado do PT até o impeachment, entrou de cabeça na coligação de Alckmin (PSDB).
Diante da crise da Nova República, as eleições deste ano eram, mais do que nunca, um momento importante de diálogo com a classe trabalhadora. Entre a reacionária agenda de contrarreformas da burguesia, caberia à esquerda socialista apontar uma saída radical e diametralmente oposta do que está dado.
Estabelecendo as devidas críticas ao fracasso conciliatório do Partido dos Trabalhadores, um programa socialista deveria oferecer saídas contundente às estruturas econômicas que servem aos interesses das classes dominantes. Um ótimo primeiro passo seria propor o desmonte do Sistema da Dívida Pública.
Porém, as propostas contidas no programa Vamos sem medo de mudar o Brasil, da candidatura de Boulos e Guajajara, no que tange a dívida, limitam-se a “regulamentação financeira […] que possibilitará a redução do gasto com a dívida pública e a utilização da taxa de câmbio de forma mais estratégica” (p.16 do Programa). A “legislação para facilitar cobrança de dívidas” aparece como a saída, nas poucas páginas destinadas a essa questão.
A postura vacilante do programa prossegue ao sugerir “mudança no perfil da dívida pública federal visando o alongamento de prazos, a eliminação da indexação dos títulos emitidos às variáveis macroeconômicas SELIC, inflação e câmbio e, assim, a redução do pagamento de juros sobre a dívida e seu caráter concentrador de renda”. Para isso, propõe-se “realização de auditoria para evitar novos contratos lesivos ao povo brasileiro junto a instituições financeiras” (p.19).
Ou seja, o programa de Boulos se compromete com a continuidade do pagamento da dívida pública brasileira. Não é capaz de reconhecer que possam haver fraudes ou problemas na formação da dívida. Nesse aspecto, diferencia-se pouco de qualquer outro candidato liberal, a diferença reside somente na forma em que a dívida crescerá daqui pra frente e nos prazos para pagá-la. Não reconhece a dívida como parte da acumulação fictícia de capital e nem como forma de transferência de valor do Brasil para capitais estrangeiros.
O programa que o PSOL e PCB apresentam aos brasileiros foi referenciado, principalmente, na plataforma Vamos!, iniciativa da Frente Povo Sem Medo (criada após o impeachment de Dilma Rousseff, em 2015, para combater o conservadorismo e a direita).
Por fora das instâncias partidárias, a escolha da candidatura de Guilherme Boulos à Presidência constitui, de partida, um desacato à democracia do PSOL. Afinal, parte considerável da base do partido era crítica à figura de Boulos por conta da forte ligação com Lula. Expressão clara dessa proximidade foi a participação de Lula, na Conferência Cidadã, louvando a candidatura de Boulos. No mínimo uma afronta ao partido, o qual nasceu exatamente como crítica ao lulismo.
Mesmo entrando num pleito com poucas chances de ganhar, PSOL e PCB apresentam um programa rebaixado que não absorve importantes críticas ao lulismo e, inclusive, em muitos momentos se assemelha ao legado do PT. A exemplo, as propostas para a educação.
O programa compromete-se a garantir o acesso ao Ensino Superior através da ampliação da educação pública e a “regulação do exercício privado da oferta educacional” (p.79). É notório, entretanto, o papel que teve as gestões petistas para alimentar os setores privados de educação criando, inclusive, o maior conglomerado educacional do mundo (Kroton) através de recursos públicos via Programa Universidade Para Todos (ProUni) e Financiamento Estudantil (FIES).
Para os estudantes com dívida no FIES, o programa contém-se a propor “uma moratória de 1 ano para as dívidas estudantis” (p.80).
Ao tratar dos recursos públicos ao setor de ensino privado, o programa expressa que é preciso uma “revisão no peso e no formato dos programas ancorados em repasses financeiros ao setor privado, operando uma transição que não provoque descontinuidade nos contratos existentes, após feita a auditoria do funcionamento dos atuais programas, mas que implemente uma dinâmica na qual a prioridade será o investimento público na rede pública” (p.87).
Porém, a proposta de ampliação das vagas no Ensino Público não se diferencia da proposta do PT. E o diferencial “combate a oligopolização do setor” não aponta a saída realmente contraposta: estatizar o setor inteiro de educação superior, criado e engordado a base de recursos do Estado, transformando todas as matrículas privadas em públicas e, com isso, perdoando as dívidas dos empréstimos estudantis subsidiados.
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Ao invés de revogar, o programa de Boulos defende com garras o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE – Lei n. 13.005/2014), fortemente desaprovado pelo campo crítico da educação por conta do seu conteúdo privatista.
Ao guiar-se pelo PNE, reduz o entendimento de Ensino Superior Público para Ensino Superior Gratuito, abrindo terreno para que os programas destinados ao setor privado sejam mantidos em prol da “educação pública”. O Plano prevê, por exemplo, “recursos aplicados nos programas de expansão da educação profissional e superior, inclusive na forma de incentivo e isenção fiscal” (PNE 2014-2024, Art. 5º, §4).
Se por um lado, Boulos propõe, com razão, reverter os ataques do governo Temer, como a Base Nacional Comum Curricular e a Reforma do Ensino Médio; por outro, se apoia no PNE para aprofundar programas educacionais existentes. Como se com maior “fiscalização” fosse possível reviver as ilusões petistas de fornecer educação para todos num país dividido por classes.
O programa acanha-se nas críticas ao PT e propõe uma direção que não vai muito além do arranjo atual, do legado do petismo. Com base num programa rebaixado, Boulos não consegue apresentar uma resposta contundente. Sua participação nos debates em rede nacional não leva a qualquer polarização, que não a PT x fascismo.
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Nos debates, Boulos conduz suas argumentações com frases de efeito, como “50 tons de Temer” e “Não vou chamar o Meirelles, vou taxar o Meirelles”. O cúmulo é que a figura que melhor polarizou foi a de Cabo Daciolo que levantou críticas a todos (ao PT, à URSAL, à direita, ao Bolsonaro) e a tudo (FMI, Globo, estátuas da liberdade da Havan, Banco Mundial, Legislativo, Executivo, Judiciário). Nas últimas pesquisas de intenção de voto, Boulos registrou 0%, perdendo para Daciolo (que chegou a marcar 2%), Amoêdo (3%), e Álvaro Dias (2%).
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Mesmo em uma eleição para perder, é fundamental que o partido paute um projeto realmente socialista, que vá muito além de falatório de efeito. Pois, ao contrário, não expõe-se outra saída que não o aprofundamento da social-democracia para a classe trabalhadora. A perda maior é não fazer nenhum apontamento crítico socialista. A total conformação ao horizonte da ordem é aniquilador para a esquerda.
*O texto é de inteira responsabilidade da autora e pode não refletir a opinião do Jornal.
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