Imagem: Paraguay – Las Ciudades Perdidas; Livio Abramo,1965. Xilogravura. Instituto Livio Abramo
José Braga* – Redação UFSC à Esquerda – 04/12/2020
O cancelamento do vestibular de 2021 da UFSC em função da pandemia de COVID-19 exige de nós um debate amplo e denso sobre as formas de ingresso – um tema caro ao movimento universitário, principalmente ao movimento estudantil há muitos anos. A reitoria e a maioria do conselho universitário tentaram reduzir este debate a uma escolha pragmática sobre qual a melhor forma de operacionalizar a entrada, e com isso escamoteiam as implicações sociais e políticas que a adoção de um método de ingresso produz.
Analisar e debater efetivamente estas implicações não seria próprio da atividade universitária? Este debate forçaria que todos assumissem abertamente suas posições – e com isso tivessem que vir a público defender o indefensável: a lógica meritocrática do vestibular e seus congêneres. Reside aí a recusa ao debate.
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O movimento estudantil, e o universitário em geral, há muito reivindica o fim do vestibular e a expansão das vagas nas instituições públicas. A prova torna ainda maior o filtro que os trabalhadores brasileiros passam para poder acessar o ensino superior. Efetivamente ela não faz mais do que reforçar a ideologia da meritocracia, conformar a educação escolar no ensino médio e movimentar um mercado de cursinhos preparatórios.
Embora muitos vestibulandos vivam um drama pessoal em função da prova, e possam se sentir merecedores da vaga que possam vir a conquistar, eles podem olhar para o lado e ver que há muitos colegas que se dedicaram tanto quanto eles e que não foram classificados. Sabem também que há muitos jovens que teriam tanto ou mais desejo de entrar na universidade, de viver a universidade em sua plenitude, mas que por diferentes contingências da vida não podem se preparar para a prova – e os exemplos são inúmeros: desde aqueles que não podem pagar um cursinho, aqueles que vivem a precariedade imposta sobre a escola pública, aqueles que dividem-se entre estudos e trabalho, dentre outras situações. E nada disso os faz menos preparados para estar na universidade.
Se o número de vagas já restringe as possibilidades da juventude, os vestibulares (e mesmo o ENEM) se colocam como uma barreira ainda maior. E tem justamente este efeito: aqueles que entram se sentem merecedores, pois teriam se esforçado e se dedicado mais que seus concorrentes. Mas, isto é falso, apenas puderam ter mais condições de se preparar, puderam pagar um cursinho (e/ou uma escola de ensino médio) em que os professores se dedicam especialmente a preparar os alunos para o vestibular, por privilégios ou contingências, puderam ter boas condições para fazer a prova ou sorte de ter caído conteúdos com os quais tem afinidade, de uma baixa da nota de corte, etc.
A meritocracia nada tem a ver com mérito. Ela é uma ideologia que esconde os efeitos da desigualdade imperante numa sociedade dividida em classes sociais. Ela não pode ser uma força organizativa de uma instituição que tem o papel de produção e socialização de conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos.
O ENEM não foge a esta lógica. Quando foram propostas às modificações na prova e seu uso como método de ingresso na universidades pelo então Ministro da Educação, Fernando Haddad, em 2009, o movimento estudantil, e também o de docentes e técnicos protestaram largamente. O próprio MEC na época indicava sua relação de continuidade com os processos vestibulares.
Desde muito, os movimentos formulam como alternativa a esta questão a proposta dos sorteios públicos. Se por um lado não se deixou de luta por expansão das vagas nas universidades públicas (sem aceitar a forma perversa de desvios do fundo público para a iniciativa privada), por outro era necessário pensar num método de entrada que tornasse mais equânime as possibilidades dos jovens de entrar na universidade. Inclusive no contexto de debate do “Novo ENEM” em 2009 esse foi um debate importante para os centros acadêmicos e para o diretório central dos estudantes da UFSC.
O sorteio permitiria que as diferentes condições de vida dos jovens, e principalmente as adversidades dos jovens trabalhadores, não se tornassem um obstáculo ao menos para entrada da universidade. Tornaria também livre o ensino médio de voltar suas energias para a preparação para uma prova – seja para o vestibular, seja para o ENEM. E os esforços de professores e estudantes poderiam estar colocados em realizar outras experiências com o conhecimento.
A arbitrariedade do sorteio é ao menos uma arbitrariedade em igualdade de condições. Bastaria para um jovem se inscrever. E não as arbitrariedades meritocráticas do vestibular e do ENEM.
Na reunião do Conselho Universitário de hoje foram majoritárias às posições anti-universitárias. A reitoria e a maioria dos conselheiros poderiam ter proposto a comunidade um debate denso sobre os métodos de ingresso. Preferiram ao contrário por naturalizar o vestibular e o ENEM. Seu tratamento pragmático do tema tenta escamotear sua aposta na meritocracia.
Esta escolha pela ideologia meritocrática uniu grande parte do conselho: da reitoria, com a direita tradicional, aos professore-proprietários, a nova direita universitária – empreendedora do conhecimento, bem como sujeitos que são identificados por parte da comunidade como “progressistas”. O modo como o debate foi tratado pela maioria dos conselheiros, apequenando-o, demonstra que a imposição da tecnocracia, do anti-intelectualismo, encontra conivência, e mesmo integração ativa, na comunidade universitária.
A posição da atual direção do Diretório Central dos Estudantes – Luís Travassos (que foi seguida pelos conselheiros técnico-administrativos) no debate teve o mérito de apontar como considerar apenas o ENEM desde 2009 é muito excludente, e de retomar o debate sobre a proposta do sorteio público. No entanto, poderiam ter aproveitado o momento para questionar mais fortemente a própria lógica do vestibular e do ENEM.
A postura de tentar uma proposta intermediária de divisão (uma porcentagem por ENEM, uma porcentagem pelos vestibulares antigos, e outra por sorteio), foi seu limite. Mesmo cedendo e retirando de sua proposta a parte reservada ao sorteio foram derrotados. Mas, essa derrota não foi contingencial – às forças dominantes da universidade expressas no conselho são conservadoras. E é esta postura de tentar gerir, conter danos, negociar com estes mesmos setores dominantes da universidade que tem sido há muito o limite dos representantes. Com isso, abdicam do papel do movimento universitário em espaços e momentos como este de denunciar os interesses mesquinhos, as ideologias conservadoras e tensionar a universidade em uma direção transformativa.
O tempo é exíguo até a próxima sessão do Conselho. Mas o movimento pode ainda ser chamado a se pronunciar e pressionar o Conselho, mostrar que há alternativas que modificariam profundamente a lógica do ingresso na universidade e, no mínimo, tornar desconfortável sua decisão.
Evidentemente, um debate profundo precisa ser feito. Questões sérias precisam ser pensadas, por exemplo, como incidiriam as cotas (como mecanismos de reparação histórica) sobre o sorteio, haverá ou não segunda opção, etc. Mas, um esforço coletivo poderia tratá-las uma a uma.
Tampouco o sorteio resolveria todos os problemas do acesso da juventude a universidade e não pode ser tratado como tal. A quantidade de vagas nas universidades públicas é ainda muito reduzida, as condições de permanência dos estudantes são precaríssimas. E teríamos que efetivamente nos enfrentar com elas.
No entanto, a comunidade universitária poderia dar um passo transformativo substituindo completamente o vestibular e o ENEM pelo sorteio público. Uma decisão como essa revigoraria o próprio espírito universitário, nos colocando em outra direção.
*O texto é de inteira responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do Jornal.
Muito boa a análise.