Júlia Vendrami – Redação UàE – 17/02/2022
Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.
Eletricitários, movimentos sociais e partidos de esquerda têm enfrentado diuturnamente o projeto de privatização da Eletrobrás, maior empresa de energia elétrica da América Latina. Ao mesmo tempo, a pauta não parece ter grande apelo para a sociedade como um todo, que pouco se mobiliza para garantir que a estatal continue pública. A privatização da Eletrobrás foi anunciada na gestão do ex-presidente Michel Temer e já está em tramitação desde 2018. Ela adquiriu mais concretude medida provisória 1.031/2021 editada por Bolsonaro e Paulo Guedes e que posteriormente virou a lei Lei 14.182/21, estabelecendo a forma de privatização da empresa, além de vários outros pontos.
Nessa semana, a primeira etapa da privatização da Eletrobrás foi aprovada no Tribunal de Contas da União. Conforme foi noticiado pelo jornal Universidade à Esquerda, as análises da unidade técnica do TCU encontraram diversas falhas no processo de modelagem econômico-financeira da privatização da Eletrobrás, que darão um prejuízo aos cofres públicos de R$ 16,2 bilhões. Depois disso, outra “falha metodológica” escancarou a subvalorização que tem sido feita para privatização da Eletrobrás.
Para compreender o que a privatização da Eletrobrás significa para o Brasil, pretendo apresentar nessa série de textos uma parte dos estudos que tenho realizado sobre o setor elétrico brasileiro. O estudo foi realizado principalmente a partir da disciplina de Análise Política da Questão Energética e Ambiental, do Programa de Pós-Graduação em Energia do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, que é ministrada pelo excelente professor Célio Bermann. Além disso, as elaborações do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Energia Elétrica de Florianópolis e Região (Sinergia-SC) contribuíram para as análises realizadas, bem como o estudo sobre Teoria Marxista de Dependência promovido pela Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora Vânia Bambirra (EFoP).
A proposta é também que se inicie um diálogo e debate sobre o tema, por isso fico bastante contente com textos de resposta e comentários, que podem ser enviados para o Universidade à Esquerda. Inicialmente, será apresentado um brevíssimo histórico do setor elétrico brasileiro e quais ideias embasaram as mudanças que foram realizadas no setor nas últimas décadas.
Breve histórico da eletricidade no Brasil
A indústria de infraestrutura brasileira que produz, transporta e distribui a eletricidade, como parte integrante da cadeia da indústria elétrica, tem sido submetida, historicamente, a um movimento de permanente mudança em sua estrutura organizacional de produção. Estas, comumente, têm acontecido no interior de debates realizados pela burguesia. A classe trabalhadora nunca foi convidada a participar de qualquer discussão sobre como organizar a indústria de eletricidade, apesar de possuir excelentes quadros que dedicam suas vidas para elaborar sobre o tema.
Sinteticamente é comum caracterizar a evolução desta indústria em três grandes movimentos. Primeiro, no princípio, quando é organizada a partir de investidores privados. A indústria investe nos seus próprios meios de gerar energia elétrica e em comercializar nos locais onde for mais lucrativo, principalmente grandes centros urbanos. O segundo, um período de grande expansão, quando a indústria de eletricidade é desenvolvida pelo Estado. Terceiro, o atual movimento de mudança, vem sendo reorganizada no sentido de retorná-la na totalidade ao controle privado.
Em geral, estes movimentos de mudanças da indústria de eletricidade têm sido explicados como resultado de tendências externas, manifestadas por novas concepções organizacionais que visam o aperfeiçoamento da indústria de eletricidade. Aparentemente, as ideias vencedoras em cada época, acabam determinando a forma como a indústria de eletricidade vai se estruturar naquele período histórico.
Já é sabido que a privatização acelerada marcou os anos 90 no Brasil. Em relatório do BNDES, constata-se que no Brasil foi implementada a maior reforma patrimonial do mundo. De 1990 a 2002, os seguintes setores foram transferidos à iniciativa privada (sendo 48,3% para investidores estrangeiros): financeiro; siderúrgico; petroquímico; mineração; parte da geração de eletricidade; a quase totalidade da distribuição de eletricidade e de gás; o transporte – fluviais, marítimos, portos, ferrovias e rodovias –; de telecomunicação; e parte do serviço de saneamento; entre outras, atividades fundamentais ligadas as indústrias de base e infraestrutura, que até então eram desempenhadas pelo estado brasileiro. Vamos avaliar o pensamento que embasou esse processo, especialmente no setor elétrico, principalmente demarcado pelas posições do Banco Mundial.
Posição do Banco Mundial no setor elétrico
Em 1993 o Banco Mundial (BM) publicou um documento no qual apresenta sua política para o setor elétrico dos países chamados por eles de “países em desenvolvimento” no documento “O papel do Banco Mundial no setor elétrico”. Esse grupo inclui a América Latina e Caribe, toda a África, parte da Ásia e parte do leste Europeu. Optaremos por denominar tais países como países dependentes, ou países da periferia, entendendo a dependência, conforme Ruy Mauro Marini, “como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência”.
O documento inicia com a justificativa de que o Banco Mundial procura contribuir com o desenvolvimento do setor elétrico porque este é um requisito para o crescimento e modernização dos países periféricos. Porém apesar dos seus esforços (ou seria por causa deles?), a performance do setor tem se deteriorado desde da metade dos anos 70, a partir do chamado choque do Petróleo. Os motivos alegados para isso seriam: fatores exógenos ao controle do país, como o preço do Petróleo e a inflação; políticas tarifárias inapropriadas; fatores relacionados às empresas, como “objetivos conflitantes” e falta de “responsabilidade de gestão”.
Especificamente são criticados programas de eletrificação rural e extensão da rede com “objetivos sociopolíticos”, mesmo admitindo que uma parte relativamente pequena da população dos países dependentes já estava conectada à rede elétrica.
Vale ressaltar que em 1993 o BM caracterizava o Brasil como um país em “não conformidade contínua” com os preços e acordos financeiros, e que por isso, o banco teria parado de emprestar dinheiro para o setor elétrico brasileiro desde 1986.
Um exemplo que ilustra bem a “não conformidade” do Brasil é uma pesquisa com tarifas de energia elétrica de 63 países dependentes, que mostrou que as tarifas diminuíram entre 1979 e 1988 e que nesta época as tarifas estariam em um patamar de cerca de metade do preço que é cobrado nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que são, em geral, países centrais do capitalismo, (Figura 1).
Como os preços não estavam cobrindo os custos de manutenção e ampliação das redes, os governos dos países periféricos investiram fundo público no desenvolvimento de redes elétricas, o que é uma postura criticada pelo Banco Mundial. Para eles, os governos não devem gastar dinheiro com infraestrutura, mas priorizar o pagamento das suas dívidas externas. Além disso, para eles, o baixo custo das tarifas encorajaria desperdícios e faria com que as iniciativas de aumento da eficiência energética se tornassem financeiramente não atrativas.
Na verdade, o baixo custo da energia elétrica é um fator decisivo para o desenvolvimento da indústria e afeta toda a economia do país e qualidade de vida da população. Isso por si só já deveria ser motivo suficiente para caracterizar um importante investimento por parte dos governos.
Para eles, a “interferência” do governo no setor elétrico estaria causando a inabilidade do setor em aumentar as tarifas. Os governos deveriam passar a considerar a precificação não como uma questão social, mas como uma questão de “disciplina financeira”. Ainda, como os capitais internos dos países seriam muito pouco desenvolvidos para fazer uma contribuição significativa no financiamento dos sistemas de energia, a solução para ampliar as redes de energia seria buscar financiamento do próprio Banco Mundial ou de capitais estrangeiros.
Um resumo da posição do banco mundial pode ser visto quando debatem os motivos para os problemas identificados nestes países, que alegam ser que:
“as políticas governamentais no setor elétrico têm frequentemente enfatizado que a) o setor elétrico é o motor para promover o desenvolvimento econômico e, por isso, deve ser sustentado pelo investimento público e b) empreendimentos elétricos podem ser uma ferramenta para alcançar a equidade, emprego e qualidade de vida. Enquanto essas políticas facilitarem a disponibilidade de acesso à energia, elas perpetuam a ideia de que as pessoas têm direito à eletricidade à baixo custo.”
O trecho deixa bastante explícito que as concepções do Banco Mundial vão no sentido de que a eletricidade não deve ser barata e acessível para a classe trabalhadora, independentemente das condições de vida que as pessoas estão enfrentando. A forma como ressaltam que a energia elétrica era barata demais nos países que não seguiam “a cartilha” deles aponta a direção que alguns destes países, inclusive o Brasil, iria tomar nos anos seguintes.
A atuação do Banco Mundial no setor elétrico é um dos exemplos do seu papel como intelectual coletivo internacional e instrumento dos países imperialistas na dominação dos países de economias de capitalismo dependente, a exemplo do Brasil. Através da criação de estratégias e modelos o BM atua transferindo serviços públicos ao capital para geração de lucro privado e garantindo a manutenção da relação de subordinação entre os países. Na sequência analisaremos de que forma esse processo se deu especificamente no Brasil.
Referências
BANCO MUNDIAL. The World Banks role in the Electric Power Sector. Washington, 1993, pp.19-33.
BNDES, Publicação realizada pela área de Desestatização e Reestruturação, Julho de 2002, paginas 12 e 19, www.bndes.gov.br
GONÇALVES JÚNIOR, Dorival. Reformas na indústria elétrica brasileira: A disputa pelas ‘fontes’ e o controle dos excedentes. 2007. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
MARINI, Rui Mauro. “Dialética da dependência.” Em Rui Mauro Marini: Vida e Obra. (2a edição) Editora Expressão Popular, 2011.
Excelente relato feito por Julia Vendrami, “Eletrobrás em xeque (I): As políticas do Banco Mundial para o setor elétrico”.
Após alguns revezes do pós governo Dilma, diria um retrocesso das politicas energéticas no pais e as tentativas da reestatização das fontes geradoras tais como as usinas hidrelétricas privatizadas no PND do governo FHC e o retorno no governo Lula que deu esperança de crescimento e desenvolvimento no pais como um todo.
O mal que nos cerca é ainda a destruição do patrimônio publico para os grandes conglomerados e o subdesenvolvimento do pais.( Antônio Rogerio dos santos/ eletricitário/ Sindicalista/R.I