[Opinião] Parceria UFSC e Sebrae: erosão da Universidade  

Foto: Assembleia em que o Centro de Filosofia e Ciências Humanas votou pela contrariedade às EJs, em novembro de 2013; por Movimento contra as EJs no CFH

Flora Gomes* – Redação Ufsc à Esquerda – 28/10/2020

A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) divulgou em 19 de outubro um acordo firmado com o Programa de Educação Empreendedora, vinculado ao Academy UFSC. Este último é fruto de uma cooperação entre a Secretaria de Inovação (Sinova), vinculada a reitoria, e o Departamento de Ciências da Administração. O acordo é firmado justamente no momento em que as Universidades Públicas deveriam estar produzindo conteúdos críticos acerca dos mecanismos que contribuem para o aprofundamento da crise que estamos atravessando. 

O Academy UFSC compõe parte do plano elaborado pela Sinova intitulado “Startups Humanas Inteligentes Inovadoras e Sustentáveis (iShis)”, que teria como objetivo, conforme exposto no site, “integrar as ações de inovação e empreendedorismo, desenvolvidas no âmbito da universidade, ao ecossistema inovador catarinense”. O papel do Academy UFSC, portanto, seria o de ajustar a formação dos membros da comunidade universitária ao que é chamado por seus formuladores de “ambiente inovador”.  

Chama a atenção que a estratégia está atrelada ao Programa Nacional da Educação Empreendedora do  Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).  O Sebrae faz parte do “Sistema S”, grupo composto por diversas instituições do empresariado, cujo objetivo em comum é adequar a força de trabalho às exigências do capital em seus diversos ramos de produção.  A UFSC assinou, portanto, uma parceria que dá um passo adiante no projeto de transformar radicalmente o sentido da Universidade Pública. 

As intenções de cooperações como essa são explicitadas pela própria entidade. O Sebrae apresenta o falso problema das universidades brasileiras e, em sequência, a falaciosa solução. A dificuldade, do ponto de vista do empresariado, seria o suposto distanciamento das universidades em relação ao mercado. Em um artigo sobre empreendedorismo nas universidades brasileiras, o Sebrae afirma que  

“Novos tempos exigem novas posturas, principalmente quando é preciso vencer as barreiras da economia e do mercado de trabalho. E o empreendedorismo é um bom caminho para os profissionais dispostos a inovar e a aliar suas habilidades e conhecimentos à tecnologia e a meios de comunicação/interação como as redes sociais. 

(…)

A universidade deve potencializar e inspirar o empreendedorismo, o sonho gran­de e a inovação no aluno, a fim de gerar desenvolvimento econômico e social na comunidade”

A falácia reside no fato de que isso – o chamado “distanciamento da universidade em relação ao mercado” – não é um problema. As universidades devem ser autônomas não apenas em relação às investidas do mercado, mas também no tocante ao Estado. Isso porque a  produção de conhecimento de qualidade não pode selar compromissos nem com as proposições do capital nem tampouco com os projetos de governo. Aproximar a universidade do mercado por meio de uma  educação empreendedora, tal como propõe o Sebrae, é pôr fim à função fundamental desta instituição.

Temos assistido ofensivas diretas e intensas de projetos como esses em direção à universidade. E por que iniciativas como essas, cujos interesses estão nitidamente atrelados aos capitais, precisam avançar no interior das universidades públicas?

A inserção de programas como este cumpre a função não apenas de adequação da força de trabalho produzida no interior dessa instituição às necessidades diretas do capital, mas, e sobretudo, porque ao fazê-la, as universidades públicas perdem a capacidade crítica. Uma maneira eficaz de transformar radicalmente trincheiras como a universidade é inserir cotidianamente elementos que vão tornando gradualmente palatável tal projeto. Estão na mira, como expõe o Sebrae, os currículos dos cursos. Basta ver iniciativas como a Brasil Junior, cujos porta-vozes são estudantes regulares das universidades públicas, para constatar tal naturalização.

Expor os limites e contradições de determinadas teorias é a forma pela qual, em todas as áreas de conhecimento, são produzidos avanços. Por isso, a crítica é o motor capaz de gerar resistências às ferozes intenções do capital para a classe trabalhadora. Não à toa ela está na mira dos capitais. Cada vez mais vemos presente currículos de cursos adaptados para as necessidades do mercado, sob argumento da necessidade de reforçar a “formação profissional”. Assim, abandonam-se as densas discussões teóricas que postulavam sobre os problemas do nosso tempo para ajustar a formação à mera adequação profissional.

Ao invés de promover capacitações que adequem os estudantes, sujeitos críticos em potencial,  à  ideologia do empreendedorismo, a UFSC deveria estar fazendo o oposto, principalmente em um momento como este.  As universidades públicas são as instituições que devem justamente produzir a crítica ao empreendedorismo, realizar pesquisas que demonstram o papel desta ideologia na crise que estamos atravessando e de que forma essa ajusta a classe trabalhadora a uma submissão passiva às exigências de um novo modelo produtivo. Este último exige que cada trabalhador, ao realizar sua atividade específica,  incorpore as metas produtivas do capital como próprias. 

São anos de investidas por parte do Estado – com marcos legais que ultrapassaram todos os governos da nova república – e entidades privadas, que tornaram possível a apresentação em meados de 2019 do desastroso projeto “Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – Future-se”, enviado ao Congresso em maio deste ano e cuja a aprovação resultaria no fim da universidade pública. 

Assista: O Future-se e as Universidades públicas: Parte 1 e 2,

A forte luta travada no ano passado por aqueles que defenderam a Universidade deste projeto também teve como força motriz a rejeição de todas as expressões deste em mecanismos já existentes na universidade, tais como Empresas Juniores, fundações privadas, parcerias público-privadas, entre outros. 

Leia também:  O Future-se e as Universidades 

O Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC já foi um espaço de forte resistência a investidas como essa. Frente à possibilidade de implementação de uma Empresa Júnior (EJ) em um curso do CFH, alunos promoveram forte mobilização com discussões para resgatar a função histórica da Universidade e o porquê de iniciativas como as EJs serem incompatíveis com essa instituição. O Movimento contra as EJ’s deixou não apenas o legado de uma assembleia histórica – cuja experiência democrática deveria ser um exemplo para as lutas presentes – mas porque suscitou uma série de debates que permanecem vivos na memória dos estudantes, sendo transmitidos de geração em geração. 

Parcerias como esta que acaba de firmar a UFSC com o Sebrae não podem seguir sendo normalizadas nas universidades públicas. A assimilação do projeto que pretende tornar essa importante instituição em um espaço de mera formação profissional implica na perda de um espaço para formulação crítica, o que é, ao fim e ao cabo,  destituir a classe trabalhadora de uma importante arma. A luta por uma formação crítica e de uma universidade autônoma é, portanto, uma pauta para toda a classe trabalhadora. 

*Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e podem não refletir a opinião do jornal

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