Imagem: Montagem por UFSC à Esquerda com base na foto de Henrique Almeida Agecom/UFSC.
Maria Alice de Carvalho e Nina Matos * – Redação UFSC à Esquerda – 18/06/2021
As últimas semanas na UFSC foram marcadas pela discussão da possibilidade de retorno presencial de algumas disciplinas e atividades práticas ou teórico-práticas. O retorno foi autorizado pela Câmara de Graduação em 21 de maio, deixando os colegiados de curso encarregados de discutir quais disciplinas necessitam e poderão ser ofertadas presencialmente em seus currículos a partir do semestre 2021.1, passando sua avaliação para aprovação dos departamentos e posteriormente dos Centros de Ensino.
Além disso, os cortes orçamentários seguem inviabilizando investimentos em infraestrutura e contratação de professores, o que impede um retorno presencial para todas as atividades da universidade.
Nesse estágio em que a universidade está entrando agora, de uma possível “transição” entre o ensino remoto e o ensino presencial, nos é apresentada como única e melhor saída a adoção do ensino híbrido. Este último, porém, não é novidade nas disputas dentro do ensino superior e, caso aderirmos a ele, com certeza não passaremos impunes por esse processo.
Apesar de aparecer como algo criativo e consequente da drástica conjuntura da pandemia, o ensino híbrido já é antigo entre nós. Selma Venco, em coautoria com Olinda Evangelista em sua coluna ao jornal Universidade à Esquerda, demonstrou isso claramente ao retomar os processos históricos que desencadeiam na proposta do ensino híbrido. Além disso, as autoras desmistificam os interesses em jogo ao trazerem o lançamento da Associação Nacional de Educação Básica Híbrida (ANEBHI) em julho de 2020.
“Péssima notícia – entre tantas – para todos que defendemos a escola pública! Seguindo a lógica das novas estratégias de intervenção do capital, nasceu em julho de 2020 esse Aparelho Privado de Hegemonia (APH) que produziu, com seus parceiros, o incrível ‘consenso’ de que é ‘necessária’ a implantação do ensino híbrido na escolarização básica para melhorar sua ‘qualidade’”.
A saída pelo ensino híbrido pelas universidades públicas, neste cenário, tem servido para legitimar essa forma de ensino, dando mais abertura aos conglomerados educacionais em suas formulações para o ensino superior. Assim como o fez ao adotar o ensino a distância.
Um exemplo disso foi a declaração que Rodrigo Galindo, CEO da Cogna, deu ao programa Liderança Digital em abril deste ano. “O ensino híbrido é o ensino do futuro”, afirmou ele ao descrever como o processo de digitalização e hibridização do ensino é uma tendência anterior à pandemia. Segundo ele, o conglomerado educacional já apostava na substituição do ensino presencial desde ao menos 2011, tendo a pandemia apenas acelerado o processo de digitalização ao romper com o “preconceito” ao EaD.
O falso marketing de que o ensino híbrido nos serve
Como apontaram Selma Venco e Olinda Evangelista, citadas acima, o ensino híbrido nos é vendido como “necessário” para uma melhor “qualidade” e “acessibilidade” do ensino. Ou seja, nos é apresentado como se fosse de interesse nosso — o que é uma grande mentira.
Para exemplificar os riscos do hibridismo e porque ele não nos serve, peguemos a forma como ele vem sendo aos poucos implementado na UFSC. O que vem sendo proposto é que retornemos presencialmente as atividade práticas e teórico/práticas, ou seja, aquelas indispensáveis de ocorrerem no corpo a corpo — como estágios obrigatórios ou disciplinas em laboratórios —, deixando as atividades mais estritas de apropriação de conteúdo na modalidade a distância.
A primeira coisa que isso nos evidencia é que, de fato como esperávamos, o ensino remoto não foi capaz de dar conta da complexidade de nossa formação, de forma que alguns cursos — sobretudo os da área da saúde — tiveram que deixar disciplinas importantes para trás diante da inviabilidade de serem realizadas a distância. Nos levando agora a uma pressa pelo retorno parcial para a formação de estudantes já em fim de curso.
O retorno presencial, portanto, é também de interesse de muitos estudantes que não apenas pretendem concluir suas graduações, mas também realizá-las com qualidade. A questão que nos fica, porém, é de se é também de nosso interesse que esse retorno presencial ocorra pelo formato do hibridismo.
Que o ensino híbrido é uma proposta das iniciativas privadas já foi demonstrado aqui, mas porque não é essa também uma proposta nossa?
O hibridismo parte do princípio de que a parte de nosso processo formativo composta pela passagem de conteúdos não carece e não deve ser presencial. Essa ideia é vendida como uma “modernização” do ensino e até mesmo como uma “otimização”, partindo-se do pressuposto de que ao passo que os conteúdos são passados a distância, mais tempo nos sobrará no presencial para a parte “prática” e de debate. Nos poupando da parte “chata” de escutar o professor, como se este não cumprisse um papel fundamental em nossa formação.
Primeiramente, não nos é necessário retirar os conteúdos para que o debate ocorra. As duas coisas não apenas cabem no mesmo espaço, como se complementam. Se temos tido pouco tempo para exercitar as discussões, não é esvaziando as salas de aula de conteúdo e tirando o papel do professor que resolveremos esse problema. Podemos nós mesmo formular saídas para isso.
Há, historicamente, uma tendência equivocada em tratar como dicotômicas as exposições dos conteúdos trabalhados em uma aula e os momentos de interação mais personalizados entre estudantes e professores. Nas defesas do hibridismo, os interessados reforçam a necessidade de um ensino que seja “focado no aluno e em seu processo de aprendizado”. Porém, fica a questão: reciclar vídeo-aulas é uma forma genuína de alcançar esse objetivo, ou serve apenas para precarizar o trabalho docente?
A ideia de que a educação mantém-se como uma coisa antiquada e desajustada em relação aos avanços tecnológicos e ao que se espera da juventude, por parte do capital, da juventude, embasa a tese de que a inserção indiscriminada das tecnologias é fundamental para que se altere as relações que temos com o conhecimento.
Nessa linha, então, a educação não deveria mais estar focada em garantir que os estudantes tenham uma compreensão ampla das experiências anteriores a si, da lógica, da ciência, mas sim que cada um tenha “competências” e flexibilidade para arcar com qualquer condição de vida imposta. E que o processo de aprendizagem seja o mais simplificado e em menor tempo possível.
Em segundo lugar, de onde se tirou a conclusão de que a transmissão de conteúdos é um processo meramente mecânico e de apenas uma via?
Estar em sala com o professor, em sua presença física, enquanto este nos transmite seu conhecimento até então formulado e acumulado é fundamental. Tanto por o processo de apreensão das ideias carecer de uma experiência integral — o que de longe não é garantido por uma tela —, quanto para fazer desse momento também algo construtivo, onde os estudantes podem realizar questões e apontar discordâncias com o professor.
Em sua coluna ao Jornal Universidade à Esquerda, Lalo Minto aponta os risco dessa tendência:
“No pensamento dominante, as noções de presença e distância no ensino tendem a se esfumaçar cada vez mais, como se estivessem ultrapassadas. Nesse sentido, advoga-se por um ensino que teria como qualidade intrínseca a não separação entre presença e distância, um artifício pseudológico para dizer que se parte da aprendizagem ocorre fora do ambiente escolar (por iniciativa do aluno ou de forma espontânea), o ensino seria “naturalmente” híbrido, isto é, parte presencial, parte não presencial.
Por trás disso estão posicionadas as ideologias que fragmentam artificialmente o ensino e a aprendizagem, alçando esta última à condição de protagonista. Difundidas por organismos internacionais, institutos privados, fundações e outras formas de aparelhamento privado, essas formulações tentam neutralizar todo um acervo crítico, motivador e resultado de lutas concretas no campo educacional, que aponta para a relevância das condições em que ocorre o processo de ensino-aprendizagem, ressaltando a inseparabilidade das condições objetivas e subjetivas para o trabalho docente, bem como deste em relação à estrutura social, política, econômica e cultural na qual se desenvolve.”
Durante a experiência do ensino remoto na UFSC, nos foi ficando cada vez mais evidente que a modalidade a distância não apenas é incapaz de dar conta das atividades de cunho prático, mas também de realizar a transmissão de conteúdos — por mais que forcemos.
No formato a distância, o conteúdo das aulas se comprime e sua complexidade se perde; a atenção e o interesse se dissipam conforme aumenta o período frente às telas; o professor pode ser substituído por vídeo-aulas antigas; se você não entender algo do conteúdo em um determinado momento, ou discordar, há pouco ou nenhum espaço em que isto possa ser colocado e debatido.
Legitimar, portanto, a lógica do ensino híbrido como se este nos servisse não seria mais um risco a se correr?
Até mesmo porque, por mais que nos digam que seja por um período excepcional, já estamos há mais de um ano sendo afirmados de que não passaremos impunes pela experiência do ensino a distância. E muito menos passaremos pela experiência do ensino híbrido, que deve chegar para ficar.
O discurso da excepcionalidade foi o mesmo que garantiu, no início da pandemia, que nossas casas fossem convertidas em sala de aula — abrindo espaço para uma nova forma de relação com o conhecimento, assegurando que o ensino híbrido seja oferecido hoje como a saída possível e necessária.
Ao passo que afirmarmos que os conteúdos podem tranquilamente ser transmitidos por telas, de forma passiva, não poderemos voltar atrás. Ainda mais se passarmos por esse processo como se ele fosse de interesse nosso, frente à nossa insatisfação com o ensino a distância e pressa por retornarmos à universidade — seja como for e para o que for.
A prova de que o ensino híbrido não será passageiro já fica evidente nas alterações que vêm sendo realizadas em algumas universidades, como é o caso da USP, onde foi lançado o “Programa de Estímulo à Modernização e Reformulação das Estruturas Curriculares dos Cursos de Graduação na USP – Novos Currículos para um Novo Tempo”, que se propõe a implementar o hibridismo de forma definitiva em alguns cursos.
“Os ensinamentos adquiridos durante a pandemia trarão uma nova realidade para o ensino de graduação. O ensino presencial ou remoto, ou seja, o ensino híbrido (Blended learning) deverá estar presente nos cursos de graduação. Este tipo de ensino não irá substituir as atividades presenciais, mas possibilitará que as atividades presenciais sejam melhor aproveitadas, de forma integrada, contextualizada e participativa no processo ensino-aprendizagem.”, declarou a reitoria da USP.
Por fim…
Por mais que estejamos frustrados com a perda que tivemos em nossa formação, após mais de um ano na modalidade a distância, e por mais que tenhamos pressa em retomar o presencial como parte de nosso processo formativo e passagem pela universidade, devemos ter atenção em como fazê-lo.
Talvez nosso retorno tenha que, de fato, ocorrer de forma parcial, aos poucos. Mas que em momento algum aceitemos o hibridismo como um projeto de interesse nosso. Pelo contrário, ele aprofunda ainda mais o processo de desqualificação de nosso ensino já em curso e com o qual cotidianamente nos enfrentamos.
Se acreditamos que é fundamental retomar algumas atividades de ensino de forma presencial, precisamos refletir sobre quais são essas atividades e de que modo esse retorno deve ser feito. Não podemos apenas aceitar os modelos preparados pelos grandes conglomerados educacionais, como se eles dessem conta de responder e representar nossos anseios!
*Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.