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[Editorial] 98 anos do Manifesto de Córdoba: a herança que reivindicamos!

Imagem: UFSC à esquerda

Allan Kenji Seki – Redação UFSCàE – 21/06/2016

“Resolvemos chamar todas as coisas pelos nomes que têm. Córdoba se redime. A partir de hoje contamos para o país uma vergonha a menos e uma liberdade a mais. As dores que ficam são as liberdades que faltam. Acreditamos que não erramos, as ressonâncias do coração nos advertem: estamos pisando sobre uma revolução, estamos vivendo uma hora americana.”

A cidade de Córdoba, se constituía como um reduto conservador e organizado, no interior da Argentina, como a face urbana da dominação agrária. A maioria em Córdoba sequer havia participado do movimento de independência em 1810. A Universidade de Córdoba, fundada em 1621, ignorava solenemente os “novos conhecimentos”, tais como a matemática, as línguas estrangeiras, a física, o direito público ou a música. Nas palavras de Sarmiento:

Universidade de Córdoba, (…) e em cujos claustros sombrios oito gerações de doutores em ambos os direitos, ergotistas insignes, comentadores e casuístas passaram a sua juventude. Ouçamos o célebre deão Funes descrever o ensinamento e o espírito dessa famosa universidade, que durante dois séculos proveu uma grande parte da América de teólogos e doutores: “O curso teológico durava cinco anos e meio. A Teologia participava da corrupção dos estudos filosóficos. Aplicava-se a filosofia de Aristóteles à Teologia formando uma mistura entre o profano e o espiritual. Argumentos puramente humanos, sutilezas e sofismas enganosos, questões frívolas e impertinentes: foi isso o que veio a formar o gosto dominante dessas escolas.” (…) Essa cidade douta não teve até hoje um teatro público, não conheceu a ópera, ainda não tem jornais, e a imprensa é uma indústria que não pôde se enraizar ali. O espírito de Córdoba até 1829 é monacal e escolástico; nos salões, a conversação gira sempre em torno das procissões, das festas dos santos, dos exames universitários, da profissão das monjas, da recepção das borlas de doutor.” (SARMIENTO, 2010, p.  205-206).

Em 1816, a Universidade de Córdoba havia passado por uma reforma que acaba por se caracterizar, como a maioria das reformas universitárias do período, em apenas algumas mudanças na forma administrativa. A Argentina contava até o momento com três universidades nacionais (Córdoba, Buenos Aires e La Plata) e duas provinciais (Santa Fe e Tucumán). A despeito do caráter majoritariamente conservador da sociedade de Córdoba, a juventude estava embalada no momento latinoamericano que, desde o inicio do século XX, vivia profundos processos de efervecência revolucionária – México, Peru, Equador, Colômbia, para citar alguns. A Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, marca definitivamente os anseios por um mundo livre, e ao contrário da caracterização que muitos buscam imprimir, como se a luta da juventude de Córdoba fosse mera expressão do reformismo, é no contexto da organização revolucionária da classe trabalhadora latinoamericana que desenrola uma das cenas mais célebres de sua juventude.

A organização da juventude em Córdoba parte de questões pontuais como o fechamento do internato médico por falta de recursos financeiros e por questões morais. Na faculdade de engenharia, criavam-se novos critérios para matricula nas aulas, evitando que os que não fossem filhos da oligarquia local pudessem assistí-las. As cátedras eram distribuidas pelos conselhos da universidade aos oligarcas católicos ou jesuitas, sem nenhum critério de conhecimento e eram exercidas de modo vitalício. Essas questões pontuais, só puderam servir como disparadoras de um ascenso da juventude porque se construia entre ela um profundo senso político. Isso é o que leva os estudantes das faculdades de medicina, engenharia e direito a realização de uma greve no dia 31 de março, lançando um breve manifesto à juventude argentina.

A greve do dia 31 leva a reitoria a fechar a universidade no dia 2 de abril, recusando todas as propostas estudantis. Em resposta, os estudantes tomam as ruas da cidade em protestos e rapidamente os impactos se fazem sentir, estudantes das demais universidades argentinas respondem ao chamado de Córdoba e fundam em Buenos Aires a Federação Universitária Argentina (FUA), congregando estudantes de todo o país e tornando a reivindicação pela reforma universitária uma pauta nacional. Poucos dias depois, o presidente Hipólito Yrigoyen se vê forçado a receber os representantes da FUA e, em seguida, no dia 11 de abril, decretar intervenção na Universidade, destituindo o reitor e o conselho universitário e nomeando José Nicolás Matienzo. Durante a intervenção foi possível conquistar o fim do caráter vitalício dos cargos nos conselhos e dirigentes, os estudantes conseguem eleger a maioria de seus candidatos docentes para o conselho universitário, mas, no dia 28 de maio,  o cargo de reitor, eleito por um pequeno colégio eleitoral, fica com o candidato mais conservador e representante da oligarquia agrária. Muitos professores apoiaram a causa dos estudantes, mas não se manifestaram, presos pela hierarquia e pelo desejo de conservarem seus cargos. Ficou claro, portanto, que pelas vias institucionais nada seria alcançado.

Apesar de poucos, estudantes declaram greve geral universitária e rapidamente recebem apoio dos estudantes de todo o país e, o mais importante, recebem o apoio dos operários e sindicatos de trabalhadores. Trabalhadores, partidos e intelectuais de esquerda como José Ingenieros e Manuel Ugarte aderem em apoio aos estudantes e exercem importante influência. A greve geral ganha fôlego, toma as ruas e em 21 de Junho de 1918, alguns dos dirigentes da FUA redigem o Manifesto Liminar ou La juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de Sudamérica, que ficou conhecido popularmente como o Manifesto de Córdoba de 1918.

A luta e a greve prosseguiram pelos meses seguintes. Em julho, os estudantes organizam o I Congresso Nacional de Estudantes Argentinos, demonstrando o caráter não espontaneista dos processos de organização e elevada consciência política. Com a crescente relação entre estudantes e trabalhadores, cresce a preocupação do governo com o caráter socialista da revolta. Em 7 de agosto, o reitor renuncia e a Universidade de Córdoba é fechada. Imbuídos de um profundo senso de auto-governo estudantil, em 9 de setembro, os estudantes tomam a universidade, a direção e o controle sobre todas as faculdades e reabrem a instituição pelas suas próprias mãos. O presidente Yrigoyen se vê impossibilitado de reprimir os estudantes e nomeia como interventor o próprio Ministro da Educação Nacional, José Salinas, que é forçado a estabelecer o princípio da autonomia universitária em relação ao clero e aos interesses privados, nos meses seguintes a administração da universidade é reformada e são criados pela primeira vez medidas de compartilhamento dos poderes de decisão entre trabalhadores e estudantes. Além disso, a demanda por assistência estudantil cria uma primeira experiência de política de permanência.

A luta dos estudantes de Córdoba constitui o marco decisivo da construção dos movimentos estudantis em toda a América Latina e organizou um modo particular de lutas por uma outra universidade para o continente, em contraposição ao modelo americano e europeu. A juventude de Córdoba permanece viva e atualizada para o presente como um momento revolucionário com valorosas lições para a juventude. Os estudantes do movimento revolucionário tiveram que inventar, no calor da luta, seus próprios caminhos. Tiveram, sobretudo, a disposição de sonhar com possibilidades ainda não imaginadas. Quando sequer havia eleição para os conselhos e dirigentes, tiveram a ousadia de imaginar o co-governo estudantil. Imaginaram uma política de assistência estudantil e o fim das cátedras vitalícias. Desejavam uma universidade profundamente comprometida com a produção de conhecimento para um mundo novo.

A atualidade de Córdoba deve ser encarada, sobretudo, por aquilo que nos falta no tempo presente. A capacidade de imaginar o novo, de sonhar uma vez mais com o impossível. Isso, enquanto frações inteiras de nossas juventudes se dobram diante de “impossibilidades”, daquilo que já está estabelecido, restringindo-se, somente, a disputar um pequeno lugar ao sol. A capacidade de sonhar e contestar o mundo como o recebeu das gerações anteriores é o que faz da juventude um momento singular da história de toda a sociedade. A juventude não está presa nas amarras de um cargo, de uma vaga, de um interesse qualquer ou de meia dúzia de moedas. A juventude é o setor mais livre entre aqueles que compõem a universidade e por isso mesmo, os que possuem o justo direito de exigir o impossível.

Viva a juventude revolucionária de Córdoba!

Viva a juventude brasileira!

Saudações,

Coletivo UFSC à Esquerda.

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