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EaD na educação básica: entrevista com professora da rede pública de Florianópolis

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Júlia Vendrami – Redação UàE – 07/07/2020

Com o objetivo de entender como está acontecendo a implementação do Ensino à Distância (EaD) e a luta contra ele nesse período pandêmico, o UFSC à Esquerda e o Universidade à Esquerda têm realizado algumas entrevistas. Na semana passada, entrevistamos a estudante Mariah, do Centro Acadêmico de Artes Visuais da UDESC, para entender como está acontecendo a implantação do EaD e o boicote a ele naquela instituição. Ontem publicamos a entrevista com os estudantes da UNESP Araraquara.

Da mesma forma, entrevistamos a Márcia Luzia dos Santos, professora dos anos iniciais do ensino fundamental da rede municipal de ensino de Florianópolis, para entender como está acontecendo o EaD no ensino básico. Márcia é doutora em educação pela UDESC (2019), mestra em educação pela UFSC e graduada em pedagogia séries iniciais pela UDESC.

UFSC à Esquerda Como tem acontecido o processo de implementação do EaD nas escolas da rede de ensino básico de Florianópolis?

Márcia: Acerca da implementação, podemos afirmar que esse foi um processo feito sem nenhuma discussão com os professores, a Prefeitura Municipal de Florianópolis resolveu instituir o ensino remoto, ou teletrabalho, como eles chamam. Assim que começou a pandemia as aulas foram interrompidas. Isso é louvável, porque de fato não haveria como ficarmos dando aula para as crianças com a pandemia a piorando a cada dia. Tivemos 15 dias de férias, nossas férias foram transferidas de julho para março e depois disso começou o teletrabalho.

Os professores não foram consultados, não tiveram nenhuma participação, não foram orientados, não teve nenhuma discussão mais aprofundada, nem com o sindicato. Não passamos por nada disso. Foi jogado que agora faríamos teletrabalho.

Um dos problemas que enfrentamos foi a questão dos professores ACTs [admissão em caráter temporário]. Muitos professores ACTs encerrariam seus contratos em abril ou maio e precisariam estar trabalhando para ter o contrato renovado. Tudo isso caiu como uma bomba nas escolas. A nossa preocupação era fazer o teletrabalho para garantir o contrato dos professores ACTs. Pois, ao invés do Prefeito [Gean Loureiro] estender o contrato de trabalho dos companheiros ACTs, o que ele fez foi uma chantagem. O teletrabalho seria aprovado na Câmara de Vereadores e em contrapartida o contrato de trabalho dos ACTs seria renovado.

Tivemos discussões internas na escola, com posicionamentos favoráveis e contrários. Muitos nem sabiam o que dizer, mas o que mais pesou para acatarmos o teletrabalho foi a questão dos contratos de trabalho dos professores ACTs.

Como funciona: A prefeitura tem uma plataforma virtual e cada escola teve a incumbência de se virar, usando seus professores de tecnologia para organizar a plataforma.

Na escola, nós tomamos alguns cuidados. Por exemplo, não usamos vídeos, para atendermos o máximo de crianças e não haver tanta diferença entre as que acessam a plataforma e as que pegam trabalho impresso. Aliás, a decisão de fornecer trabalho impresso foi da escola, pois não havia nenhuma deliberação da Secretaria Municipal de Educação para isso. Sempre pensamos em não deixar nenhuma criança de fora desse processo.

Hoje fazemos dois modelos de atividades, temos dois trabalhos, pois temos que planejar as aulas para as crianças acessarem no portal e transpor para aula impressa, de forma que sejam o mais parecidas possível.

Avaliação o trabalho desenvolvido até o momento

Depois de três meses de trabalho remoto, não posso ter uma avaliação positiva disso. É uma atividade que ajuda as famílias que querem manter uma rotina de estudo com as crianças, mas eu não considero isso uma aula, por mais que eu me empenhe.

Eu sou professora alfabetizadora, trabalho com o segundo ano. Alfabetizar remotamente é impraticável, porque são necessárias várias mediações nas quais é preciso ter o contato presencial com a criança. A criança precisa estar em contato comigo e com outras crianças para desenvolver seu processo de aprendizagem. Fazer suas perguntas, suas hipóteses de escrita, estar com o professor para mediar esse processo. Remotamente eu não faço isso, eu delego esse trabalho para as famílias. Isso é o que mais me impacta, parece que estamos delegando o trabalho do professor para a família.

Quando as pessoas dizem que o ensino remoto não funciona porque os professores são pouco capacitados para lidar com a plataforma, com a tecnologia, eu não observo isso, esse não é o problema. Nós lidamos com a tecnologia no dia-a-dia, a escola é um espaço informatizado, muitas vezes com materiais e sinal de internet precário, mas nosso planejamento envolve a tecnologia. O problema não é sabermos ou não lidar com a tecnologia. O problema é que não existe como trabalhar com os alunos da educação básica apenas de forma virtual. Isso não é uma metodologia viável. Não favorece a aprendizagem e nem ao ensino.

Uma coisa é usar tecnologia como recurso na aula e estar presente interagindo com os alunos. Nesse sentido a tecnologia é muito bem-vinda. Não somos homens das cavernas, a questão é que a tecnologia por si só, sem o professor e sem o aluno, não resolve nada. Nas aulas remotas o que fazemos é  um roteiro, uma prescrição, uma lista de atividades  para as crianças  fazerem, só que sem a minha orientação presencial, sem interação, sem mediações adequadas e isso não é menosprezar todo o esforço que as famílias têm feito, mas é chamar a educação pública a essa responsabilidade.

Como professora, sinto muita falta do retorno, sinto que meu trabalho está cindido. Tenho em mãos apenas uma parte do meu trabalho, eu planejo as atividades, faço meu trabalho, mas por mais que eles preencham o material e eu corrija, eu não sei quais foram as hipóteses de escrita e alfabetização matemática, não sei se a criança fez sozinha, não sei qual foi a dificuldade dela para resolver essa tarefa, entre outras questões que se perdem pela ausência do trabalho presencial.

O ensino remoto e os impactos no dia-a-dia das famílias

Outra questão a ser considerada são as demandas que advém dessa proposta de ensino que impacta também a vida das famílias, porque elas não são professores, não são formados para isso. As famílias têm várias outras demandas, muitas vezes a demanda é garantir a comida do dia seguinte. Quem trabalha na escola pública sabe que atingimos todo o tipo de público.

Temos o exemplo de uma mãe que tinha perdido o emprego e conseguiu durante a pandemia um novo emprego em outro bairro, teve que se mudar com a criança porque não havia ônibus e como se deslocar. Estava em um emprego novo, morando na casa de um familiar, tendo que dar conta de tudo isso e ainda ensinando a criança. São várias questões das famílias da classe trabalhadora que o ensino remoto tende a potencializar. Potencializar as desigualdades sociais, desigualdades de acesso, desigualdades de atenção.

São várias questões das famílias da classe trabalhadora que o ensino remoto tende a potencializar.

Por isso, a primeira atividade que fizemos na pandemia foi um questionário para saber a situação socioeconômica da família. Se estavam precisando de ajuda, se havia espaço em casa, quem iria se responsabilizar pela ajuda a criança, se tinham idosos morando junto, quantos irmãos tinham, se alguém estava saindo de casa para trabalhar ou se estavam todos em casa. Fizemos um panorama.

Soma-se a isso a preocupação de como as famílias estão lidando com mais essa sobrecarga de trabalho. Por isso, no meio desse processo fizemos outro questionário. Fizemos uma carta esclarecendo nossa posição sobre o ensino remoto, explicando que sabemos que eles fariam o possível para ajudar seus filhos e que não podemos culpar a família por não conseguir dar conta de dar toda a atenção para a criança, ou não estar conseguindo alfabetizar, pois não é a função delas. Ademais, não podíamos dar mais esse encargo para a família da classe trabalhadora que nesse momento está tão preocupada com tantas outras coisas. Por isso queríamos saber o que eles estavam achando desse processo e de que forma poderíamos facilitar essas atividades. Ainda não conseguimos tabular tudo, pois a maioria das famílias pega material impresso, não faz via online e ainda não tivemos retorno.

O acesso a internet é mais um problema que as famílias enfrentam. No início das atividades remotas várias famílias tentaram fazer online, mas a maioria usa dados móveis no telefone, o que dificulta a realização das tarefas. Outras têm telefone, mas não têm Whatsapp, não têm acesso a internet. Outro problema que relatam é que o celular não é uma ferramenta adequada para crianças, principalmente as pequenas. Por isso a maioria das famílias opta por ir na escola buscar material a cada 15 dias.

Sobrecarga de trabalho

Além de fazermos as aulas online, uma parte das professoras, as que moram na comunidade como é o meu caso, nos oferecemos para ajudar o diretor a imprimir e organizar o material de todas as turmas do primeiro ao nono ano, para entregar. Também estamos entregando cestas básicas. A escola também assumiu essa função. Nós professores estamos ajudando nisso. Estamos ajudando a mapear as famílias necessitadas, às vezes é difícil, não sabemos o que aconteceu com determinada família.

O teletrabalho acabou nos sobrecarregando. Em casa perdemos a noção de tempo trabalho, eu digo que é um trabalho intemporal. Antes eu dava aula das 8h às 12h, depois das 13h às 17h. Na minha hora atividade, às terças-feiras, eu planejava as aulas e corrigia. Hoje isso não acontece, eu trabalho sábado, domingo, mistura-se ao trabalho doméstico. Além disso, fazemos a busca pelas crianças para poder atingir o maior número possível. O trabalho dos professores de 1º ao 5º ano é muito mais intenso, pois temos contato mais direto com os pais do que os professores dos anos finais. Tivemos que achar as fichas cadastrais com os contatos dos pais dos estudantes, alguns não correspondem, estão desatualizados. Fizemos grupos de Whatsapp e outras formas de divulgação da entrega das atividades. Se você forma um grupo de Whatsapp, você atende os pais qualquer hora, final de semana, à noite.

Há três meses que estamos trabalhando assim e tem família que ainda não temos contato. Já tentamos colocar nos grupos, ligar. Têm também famílias que não conseguem fazer por causa das suas condições, outras que não sabemos nem se estão no bairro ainda, não sabemos se é caso de evasão. Essas questões não são palpáveis e interferem no trabalho.

Não adianta, a tecnologia não vai dar conta da desigualdade tão grande que temos. O problema não é só o acesso. O meio de acesso não é o suficiente, muitas famílias não estão em condições de assumir essa função e não é esse o seu papel. Não estamos em uma estratégia de homeschooling, temos uma desigualdade social enorme. Diante dessa desigualdade social, o imediato é colocar o pão na mesa e não alfabetizar a criança. Imagina a família que tem três ou quatro filhos. Todas essas questões estão aí, emergem do nosso quotidiano. Dificultam e não dá para pensarmos que está tudo bem e tranquilo, pois não está.

Nós temos um número irregular de acessos. Temos crianças que acessam em algumas semanas e outras semanas não. Quando planejamos as atividades, tanto em sala quanto agora, é um planejamento sequencial. Não estamos dando nenhum conteúdo novo, por decisão da escola e depois por indicação da Prefeitura também. Trabalhamos o que a criança já conhecia, mas mesmo assim precisamos de uma sequência. O conteúdo exige sequência, o planejamento pedagógico exige sequência, mas essa sequência não se cumpre, pois os acessos são inconstantes. Quando estamos em sala na escola pública, se uma criança falta, acionamos toda a equipe pedagógica, o conselho tutelar, todo um apoio para descobrir o que está acontecendo com essa criança. Se formos fazer isso agora, vamos atrás de boa parte dos alunos diante da descontinuidade de acessos e busca de materiais.

UFSC à Esquerda Vemos no Brasil, tanto na educação básica quanto no ensino superior, uma desvalorização muito grande do professor e a colocação da centralidade na tecnologia, como um fetichismo da tecnologia, gostaria que você comentasse sobre isso.

Márcia Esse fetiche em torno da tecnologia não é novidade, já vem acontecendo há bastante tempo.  Quando fiz a pesquisa de doutorado pesquisei empresas que fornecem formação docente, muitas ligadas à tecnologia. Por exemplo, a plataforma SmartLab, que a prefeitura comprou os serviços e que funcionava precariamente por conta das dificuldades com a internet e próprio instrumento de acesso. Notamos que na maioria dessas plataformas há uma transposição do que estava no livro didático para plataforma tecnológica.

A tecnologia aparece como sinônimo de inovação na educação, como se toda inovação fosse em torno do endeusamento da tecnologia. E o professor tem que ser transformado, tem que ter outra formação, tem que ser reconvertido, como diz a professora Olinda Evangelista, para que ele possa entender, usar as tecnologias e se apoiar nelas. Parece que se o professor não usa a tecnologia ele é mal formado, não entende nada, está aquém do seu tempo, está ultrapassado, não serve mais. Da mesma forma como temos as pedagogias pós-modernas, como se fossem o salto, o auge que deixaria todos os outros métodos para trás. A tecnologia hoje faz isso, como se por si só ela desse conta.

O que eu vejo é a tecnologia servindo como argumento para desqualificar ainda mais o professor, que não está sendo desqualificado só agora, mas há um bom tempo. Além disso, o que divulgam é a venda de plataformas tecnológicas, o consumo da tecnologia tanto pelos futuros trabalhadores, estudantes, famílias, assim, como o consumo da tecnologia pelo poder público. Esses recursos tecnológicos adquiridos são uma forma das empresas se apropriarem de uma fatia significativa do fundo público dirigida à educação. Ao invés de se trabalhar com uma formação do professor que o faça pensar no processo ensino-aprendizagem, a formação o prepara para o uso da tecnologia, como se fosse o suficiente.

O que eu vejo é a tecnologia servindo como argumento para desqualificar ainda mais o professor.

Ao mesmo tempo em que a pandemia está abrindo o mercado e tentando impor o ensino à distância na educação básica, criando um nicho de mercado para as plataformas virtuais entrarem nesse nível de ensino, vejo a contradição desse processo, prova-se que a tecnologia por si só, sem a presença do professor, não funciona na educação básica. Sem o ensino presencial, ela não dá conta de avançar na aprendizagem. Por mais que eu dê uma videoaula, por exemplo, se não estou ali interagindo com as crianças, vendo o caminho que elas fazem para aprender o conteúdo que eu estou passando, mediando o processo de ensino-aprendizagem, isso não funciona. Os professores precisam refletir sobre isso. Ainda que exista um avanço do capital sobre a educação básica e que tenhamos a tentativa de efetivação desse trabalho na rede pública, ele não está dando certo. Nós somos a prova de que esse trabalho não se efetiva.

Nós, professores, temos que registrar esse momento, mostrar as dificuldades que estamos passando para mostrar que isso não se efetiva. Por mais que a propaganda seja bonita, o problema do ensino remoto não é um problema de despreparo dos professores e falta de acesso das crianças. A falta de acesso é um problema, mas isso não esgota o problema do ensino remoto. O problema do ensino remoto se traduz na falta de interação que é necessária e essencial no processo de ensino-aprendizagem, entre o professor e o aluno e também dos alunos entre si.

O problema do ensino remoto se traduz na falta de interação que é necessária e essencial no processo de ensino-aprendizagem, entre o professor e o aluno e também dos alunos entre si.

UFSC à Esquerda O capital aproveita a crise para implantar coisas que seriam inimagináveis em outros momentos. No caso do ensino à distância para educação básica, eu imaginava que não seria possível, já que hoje, no capitalismo, é necessário que as famílias deixem suas crianças na escola para poder trabalhar. Você acha que, apesar dessa dificuldade, é possível que a educação a distância seja implantada na educação básica após a pandemia?

Márcia Diante da desigualdade social que temos, não. Não vejo que na rede pública se implante o ensino virtual, no qual a família, os pais, as mães, as avós, os irmãos mais velhos, dessem conta de continuar o processo de ensino que está acontecendo hoje. A escola física continua sendo essencial para dispensar uma grande massa de trabalhadores para o capital, como você falou. Isso não significa que não teremos um incremento da atuação do capital na venda de produtos tecnológicos para as escolas públicas.

A educação básica pública vem passando por um processo de privatização na forma não-clássica, porque o serviço público vem adquirindo apostilas, plataformas virtuais, contratando empresas que formem os professores etc… A pandemia aprofunda e abre um nicho grande de mercado para a venda de plataformas virtuais e toda sorte de produtos tecnológicos voltados à educação. Acho isso bastante preocupante, é um assalto ao fundo público.

A escola física não desaparece, mas sofre impactos. O dinheiro que era para ser usado para fornecer educação de qualidade, potencializar formação de professores, condições de trabalho, condições físicas e materiais da escola, vai ser desviado para o mercado de produtos educacionais, os “Edtechs”, como eles chamam. Na minha pesquisa apareceu isso, em Santa Catarina temos grandes redes de venda de produtos de tecnologia voltados para a educação. Existe um mercado que se potencializa na pandemia, como o [bilionário Jorge Paulo] Lemann diz “Eu não vejo isso como crise, vejo como oportunidade”. De fato, o capital acha oportunidades. Eles não estão em crise, quem está em crise é o trabalhador que está perdendo direitos.

Eles não estão em crise, quem está em crise é o trabalhador que está perdendo direitos.

Marx diz que a crise do capital não coincide com a crise da classe trabalhadora. Quando o capital está em crise o trabalhador pode estar com alguns direitos garantidos, mas para sair da crise, o capital assalta os direitos dos trabalhadores. Além disso, a crise do capital não é o esgotamento do capital, mas faz parte de sua estrutura sociometabólica. O capitalismo vive de crises, a cada crise ele se recompõe e atua de outras formas para continuar mantendo a propriedade privada e aprofundar a extração de mais valia.

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