[Entrevista] EaD na UDESC: A luta dos estudantes pelo ensino de qualidade

Júlia Vendrami – Redação UàE – 29/06/2020

Desde que as aulas presenciais foram acertadamente paralisadas nas universidades brasileiras, devido à pandemia do novo Coronavírus, discute-se o retorno das atividades de ensino, enquanto a pesquisa e a extensão seguem funcionando. O retorno do ensino na modalidade presencial é inseguro para a saúde da comunidade universitária e para o restante da população, já que envolve o deslocamento e exposição de um grande número de pessoas ao vírus. Dessa forma, o ensino à distância tem sido proposto para as universidades, sob o nome de ensino remoto, que é colocado como uma forma de precarização pior que o EaD ou como uma alternativa emergencial “menos pior”, dependendo dos interesses envolvidos. Seja qual for o nome que prefiram utilizar, está havendo muito debate muita luta, como será mostrado nesta entrevista.

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A Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) iniciou suas aulas na modalidade EaD na segunda-feira passada (22). O Curso de Artes Visuais da UDESC organizou um boicote dos estudantes às aulas. Por isso, o UFSC à Esquerda conversou com a estudante Mariah, do Centro Acadêmico de Artes Visuais da UDESC, para entender como está acontecendo este processo.

UFSC à Esquerda Como está sendo o processo de retorno às aulas no formato EaD e como os estudantes estão se contrapondo a isso?

Mariah Na UDESC, assim que começou a quarentena começamos a discutir a possibilidade de um ensino remoto, e a princípio o Departamento da Artes Visuais, o Centro de Artes (CEART) e os estudantes de artes visuais posicionaram completamente contra. Mas assim que percebemos que a pandemia e o isolamento se tornariam uma situação realmente longa, começamos a pesquisar qual é a possibilidade de algum tipo de retorno às atividades.

A reitoria organizou grupos de trabalho com representantes do Diretório Central dos Estudantes (DCE), professores e chefes de departamento, para fazer uma pesquisa sobre qual a condição material de continuarmos as atividades, porém era visível que a intenção era direcionar para um retorno das atividades. Tinham perguntas sobre como iríamos para a UDESC, se abrissem os laboratórios, se teríamos como ir até lá.

O processo foi relativamente rápido e tivemos um Conselho Universitário (CONSUNI) no dia 21 de maio, no qual foi apresentado o resultado da pesquisa geral da universidade, ali começou a discussão sobre como voltar. A reitoria estava construindo uma proposta de retorno e a Associação de Professores da UDESC (APRUDESC) fez uma consulta com pedagogas e professoras que trabalham com EaD e começou a elaborar outra proposta de retorno.

No final de maio o reitor lançou uma notícia no site da UDESC dizendo que as aulas retornariam em junho, mas sem data definida ainda. Começamos a pressionar porque não havia acontecido outro CONSUNI, não haviam sido discutidas as propostas de retorno, não tinha sido nada encaminhado ainda. No dia 2 de junho ele publicou uma resolução ad referendum dizendo que as aulas iniciariam dia 22 de junho. É uma resolução relativamente curta e cheia de furos. Esses 20 dias foram de muitas dúvidas, tanto dos professores quanto dos estudantes, sobre como isso iria funcionar.

É uma resolução relativamente curta e cheia de furos. Esses 20 dias foram de muitas dúvidas, tanto dos professores quanto dos estudantes, sobre como isso iria funcionar.

Antes de publicar a resolução ad referendum, a reitoria conversou informalmente com chefes de departamento e representantes estudantis. Nossas demandas não foram ouvidas ou consideradas adequadamente. No dia 3 de junho o reitor mandou uma comunicação interna para os professores substitutos ameaçando que quem não desse suas aulas e cumprisse a carga horária, seria demitido. Então o meu curso que estava pensando em não retornar às aulas, começou para proteger o trabalho dessas professoras, porque temos quase metade dos professores substitutos e a maioria é das matérias práticas.

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Como funciona o retorno às aulas da forma que está acontecendo: todos os estudantes continuam matriculados nas suas matérias, todos os professores estão sendo obrigados a dar suas aulas como antes. No meu caso, do curso de artes visuais, é muito complicado, pois tem muita prática de atelier e muita prática que não tem como ser feita em casa. Por exemplo, tinta à óleo é toxica em lugares fechados, precisa de um espaço específico para trabalhar, não dá pra fazer dentro de casa, cerâmica precisa de espaço e fornos industriais, gravura precisa das prensas, são técnicas bem difíceis de fazer em casa.

No meu caso, do curso de artes visuais, é muito complicado, pois tem muita prática de atelier e muita prática que não tem como ser feita em casa.

Todos os cursos do CEART têm muitas dificuldades. Design usa muito o computador, precisa de software específicos que são caros e computadores que suportem programas pesados. Música precisa de espaço para ensaio, além dos próprios instrumentos, que nem todos os estudantes têm. Moda está tendo bastante dificuldade pois é moda industrial, alguns professores estão adaptando atividades que os estudantes normalmente fariam tiragens enormes, para trabalho em fábrica, em escala industrial, para uma atividade manual e praticamente artesanal, que não é o tipo de formação que o curso de moda da UDESC dá.

Além de termos muitas aulas práticas que seriam complicadas de ser dadas no formato remoto, numa pesquisa do departamento de artes visuais com os estudantes descobrimos que quase 50% do curso não tem condições, como computador e internet em casa para participar das aulas. No bacharel foram 48% dos estudantes e na licenciatura 51%. São números muito altos, estamos deixando metade do curso pra trás. Por isso decidimos fazer o boicote. Sabemos que as professoras terão que começar, pois estão sendo obrigadas, a gente entende, mas isso não exclui que isso tudo está acontecendo de forma muito errada.

Desde que foi publicado o ad referendum, os conselheiros do CONSUNI estão tentando convocar um CONSUNI extraordinário para votar e discutir outras propostas. Eles conseguiram o número mínimo de assinaturas para autoconvocação do CONSUNI e enviaram para a Secretaria dos Conselhos Superiores (Secon), mas o processo foi devolvido pois havia algumas burocracias do pedido que estavam erradas, então os conselheiros consertaram e enviaram novamente. Foi respondido que o que eles queriam incluir na pauta, a votação da proposta de retorno feita pela APRUDESC, seria a mesma coisa que a proposta da reitoria porque as duas eram sobre o ensino remoto. Por isso não havia motivo para o CONSUNI ser convocado de modo extraordinário.

A partir dessa resposta, os professores entraram com um processo judicial contra a reitoria, pra pedir que um juiz obrigasse o reitor chamar o CONSUNI, isso foi na semana antes do retorno das aulas e ainda estamos esperando uma decisão.

Além da volta apressada e atropelando todo mundo, segundo o levantamento da reitoria, os estudantes do CEART seriam os que teriam mais dificuldade de atender às aulas, pois é o centro que tem mais gente sem condições financeiras, mas pouco foi feito. Foi oferecido um auxílio inclusão digital, que serviria para pagar internet, com um valor de 80 reais, que não paga internet em lugar nenhum. Foi feita uma normativa para emprestar computadores e outros materiais. Estávamos bem ansiosos para isso, seria uma coisa muito boa, mas quando foi publicada a normativa vimos que seria somente para os estudantes que já participam do Programa de Auxílio Financeiro aos Estudantes em Situação de Vulnerabilidade Socioeconômica (PRAFE) e para os estudantes do grupo de risco. Isso deixa muitos estudantes de fora, pois a UDESC tem mais de 12 mil estudantes e o PRAFE deve cobrir umas 600 pessoas, que é um pouco mais de 5% do corpo discente da UDESC. Entre os extremamente vulneráveis e os que realmente têm condições ainda existe uma faixa muito grande de gente excluída. Ainda mais nesse momento de pandemia que sabemos que a condição financeira de muita gente piorou.

Isso deixa muitos estudantes de fora, pois a UDESC tem mais de 12 mil estudantes e o PRAFE deve cobrir umas 600 pessoas, que é um pouco mais de 5% do corpo discente da UDESC.

Inclusive assim que começou a pandemia o Conselho de Entidades de Base (CEB) enviou uma comunicação interna para a reitoria pedindo um aumento do valor do auxílio e do número de bolsas, pois sabemos que muitas pessoas que estavam trabalhando perderam o emprego, entre outras situações, mas a UDESC não nos deu nenhuma resposta, nem um “recebido”.

Estamos entrando com um processo judicial no Ministério Público contra a reitoria para questionar o retorno às aulas por meios antidemocráticos do reitor e falando da situação dos auxílios estudantis, que a UDESC não está fazendo nada para garantir que os estudantes consigam participar das aulas. Simplesmente querem voltar, como se aparentasse uma normalidade.

UFSC à Esquerda Como surgiu a ideia do boicote e como está sendo a receptividade dos estudantes? O que tem dado certo e o que não tem dado certo?

Mariah Fizemos uma assembleia estudantil no sábado (20) para repassar aos estudantes tudo que estava acontecendo, porque a galera estava bem confusa, já que começou-se a discutir o retorno e de repente já havia data marcada. Já estávamos conversando em alguns grupos sobre a ideia do boicote, mas ficamos surpresos pois na assembleia antes do centro acadêmico propor o boicote, outros estudantes falaram e propuseram, pois estavam todos muito incomodados com tudo que estava acontecendo.

A assembleia teve participação de 40 pessoas, considerando que nosso curso é pequeno, de somente 210 estudantes e que cerca da metade não tem acesso adequado à internet, consideramos que foi uma participação bastante alta. Dos presentes, 36 votaram a favor do boicote e 4 se abstiveram. Decidimos pelo boicote até o próximo CONSUNI. Exigindo uma ampla participação na discussão sobre o retorno, que fosse votada a proposta da APRUDESC e exigindo melhora nos auxílios, para os estudantes que queiram, poderem continuar o semestre.

Nesse final de semana os cursos de Artes Visuais, Música e Moda deliberaram pelo boicote às aulas. Depois o Centro de Ciências da Saúde e do Esporte (CEFID) [cursos de Educação Física e Fisioterapia] também aderiu. Esperamos que mais cursos participem do boicote e ajudem a fazer pressão para um CONSUNI extraordinário.

Temos entrado nas aulas para conversar com as professoras e com as turmas sobre esse processo, conversar com quem não estava na assembleia. No geral tem sido uma recepção muito boa. O pessoal quer entender o que tá acontecendo, foi uma coisa muito estranha esse processo.

No geral tem sido uma recepção muito boa. O pessoal quer entender o que tá acontecendo, foi uma coisa muito estranha esse processo.

O pessoal que mais se posicionou contra é quem está para se formar, mas após conversas essas pessoas também entenderam e aceitaram, então a receptividade e adesão nas artes visuais está bem grande.

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UFSC à Esquerda Qual tem sido a posição dos professores a respeito do boicote?

Assim que decidimos pelo boicote foi enviado um e-mail a todas as professoras e a reunião do colegiado foi adiantada para essa questão ser discutida. Elas se mostraram preocupadas principalmente com a situação dos professores substitutos, por isso decidimos não nos desmatricular das disciplinas, pois não está claro na resolução o que aconteceria com os professores se todos os estudantes se desmatriculassem das disciplinas. As nossas professoras substitutas dão muitas aulas práticas, então se todo mundo decidisse que não quer fazer escultura à distância, essa professora seria demitida? Ela não vai ter carga horária. Também ficamos receosos que isso acontecesse, por isso nos mantivemos matriculados, mas ninguém iria a aula ou só iria para discutir o boicote, isso faria com que elas também fossem obrigadas a passar a ideia a diante, pressionar a direção, pressionar a reitoria.

Elas foram muito tranquilas, algumas mostraram outras preocupações, principalmente sobre a fragilidade dos cursos de arte. No geral nosso departamento apoiou bastante e não penalizarão os estudantes que estão participando dos boicotes. Se comprometeram a pressionar a direção para tomar uma posição.

Combinamos que na pior das hipóteses, que seria o CONSUNI ser realizado e decidir pela continuidade das aulas remotas dessa forma, que elas aceitassem os trabalhos atrasados dos estudantes que participaram do boicote e quiserem concluir o semestre.

Eu tenho aula praticamente só com professoras substitutas, somente uma professora efetiva. Conversamos bastante com elas e elas falaram muito sobre esse medo de perder o emprego, mas demonstraram apoio ao movimento, estão felizes que estamos fazendo isso. Não estamos fazendo só por nós, mas pela qualidade do ensino e tipo de formação que a UDESC se propõe a fornecer, que é muito prática.

Não estamos fazendo só por nós, mas pela qualidade do ensino e tipo de formação que a UDESC se propõe a fornecer, que é muito prática.

A reitoria mandou no início do mês um calendário que previa o retorno às aulas presenciais em agosto. Ficamos muito assustados com isso. Alguns dias depois eles perceberam o erro que tinham cometido e mudaram o calendário, alegando que foi devido ao novo decreto de fechamento do comércio. Eles publicaram que não seria possível retornar em agosto, mas que querem retornar o quanto antes. Já estavam falando em abrir laboratórios para turmas reduzidas, para aulas práticas, laboratórios de informática para os estudantes acessarem a internet. Mas nós questionamos com que segurança os estudantes irão até a UDESC. A maioria depende dos ônibus, muitas pessoas voltaram a casa dos pais agora na pandemia por diversos motivos. Algumas pessoas ainda estão pagando aluguel do apartamento em Florianópolis por causa da incerteza do retorno.

Eu acho interessante voltar esse vínculo, as atividades, mas não precisaria ser o nosso semestre normal, como se nada estivesse acontecendo. Poderíamos adaptar algumas matérias, outras não tem como. Poderíamos estar focando em projetos de pesquisa e extensão, como a Universidade de Brasília está fazendo. O retorno é importante para quem pode e precisa manter a cabeça ocupada, não perder o vínculo, continuar pesquisando a área. Mas é importante que o pessoal que não tem condições psicológicas ou não consegue se focar na universidade neste momento, pois estamos passando por uma pandemia, que essas pessoas não sejam penalizadas.

É importante podermos debater outras ideias, outras possibilidades para a universidade, que não seja só aula, aula, aula. E ainda por cima um modelo específico de aula, a transmissão de conhecimento, que na própria licenciatura nós questionamos sempre. Queremos manter a qualidade de ensino, não estamos aqui para cumprir tabela de mercado, não é esse o papel da universidade pública.

Queremos manter a qualidade de ensino, não estamos aqui para cumprir tabela de mercado, não é esse o papel da universidade pública.

Mariah pediu ainda que lembrássemos que o Centro Acadêmico de Artes Visuais é autogestionado, ou seja, não tem chapa eleita, participa quem tem interesse e tem outras estudantes que assim como ela, estão desde o começo e construindo o CAAV.

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