O clima de calmaria presente na universidade não condiz com as disputas em jogo atualmente nas diversas instâncias formais e espaços informais. Parece haver pouco incômodo com o marasmo proveniente de entidades representativas que não polemizam e nem se posicionam, uma reitoria medrosa e completamente infiel às próprias promessas e também da ausência de agitos organizados e que pautem com a devida radicalidade estes momentos. A autonomia universitária continua em xeque.
A cada ano que passa, nosso governo precariza cada vez mais nossos direitos e os distribui para os setores do empresariado brasileiro “cuidarem”, especialmente no que concerne ao setor de serviços. Dentre as diversas decorrências disso, ocorre a sobreposição do privado sobre o público, levando a uma perversão completa no que tange à educação pública. No caso da universidade, temos vivido a criação de mecanismos travestidos de “parceria” e “amparo”, se articulando por motes e conceitos muito semelhantes, quando não iguais: dinamismo, eficiência e eficácia, aproximação com o mercado, empreendimentos, empreendedorismo, produtividade, excelência, ampliação de recursos etc…
Além da aproximação por conceitos, é fato que fundações de amparo à pesquisa e as empresas juniores, assim como também programas como a Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) e o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) tenham ganhado força no período que perpassa os governos de FHC e Lula/Dilma. Também é neste contexto que vivemos a implementação cada vez mais forçada da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) dentro das universidades federais. A proximidade temporal entre todos estes programas e criações pode ser considerada algo casual? Cremos que não! Bem da verdade, com exceção do PROUNI que se trata de um desvio direto do recurso público para o privado através de bolsas, e do REUNI, que é a expansão sem recursos e precarização, todos estes mecanismos cumprem funções semelhantes. Estas podem ser tranquilamente taxadas como liberais, pois estes mecanismos cumprem, economicamente e politicamente a desresponsabilização do Estado de fiscalizar e garantir direitos de sua incumbência. No entanto, este processo de privatização não acontece da forma “clássica” tida no imaginário do senso comum, onde simplesmente se venderiam as instituições. Em nosso caso, este processo ocorre de forma perversa e parasitária, uma vez que o que os caracteriza enquanto privatização não é exatamente sua implementação, mas os processos que elas desencadeiam na medida em que permanecem no e necessitam do público para existirem. Como assim?
A universidade pública é regida pelo conceito de autonomia, ou seja: à universidade, enquanto instituição, está garantida a autodeterminação e autorregulação, contanto que dentro dos limites fixados pelos poderes que a instituem, no caso, o governo federal. Isto significa que ela deve cumprir sua missão didático-científica dentro destes limites, modificando-se e produzindo de acordo com aquilo que se faz fundamental ao país, extrapolando os anseios individuais de sujeitos ou grupos que a compõe (professores, alunos e técnicos). Contrapostos a isto, a perversão e o parasitismo acontecem dentro das soluções aqui criticadas na medida em que se inserem nas IFES e se tornam núcleos permanentes onde o privado pode definir das mais diversas formas as atividades didático-científicas das universidades. No caso das fundações, para que estas realizem seus cursos, extensões e pesquisas, precisam destes quadros para trabalhar e qualificarem eles com o selo de “Universidade Federal”, dedicando energias a isso. Já a EBSERH além de ganhar toda uma estrutura levantada com dinheiro público, absorve estagiários, professores e trabalhadores para a lógica que institui livremente dentro do Hospital, pautada sob os motes da “eficiência e eficácia”, produtividade e dinamismo e não da qualidade e universalidade do atendimento, fundamentais ao Sistema Único de Saúde (SUS); o que nos leva a afirmar que se o que pauta a empresa serão metas numéricas, nada impede ela de negar ou encurtar atendimentos e internações. Além disso, abre brechas para, mediante convênios, angariar recursos através cessão de espaços para universidades ou empresas privadas realizarem suas atividades, inclusive de pesquisa (já imaginou grandes empresas pautando a pesquisa em saúde usando professores universitários?). Por fim, as EJs são formadas por estudantes (apenas os “bons” selecionados) mais os professores que orientam seus projetos, de forma que todos passam a trabalhar dentro dos ditames do empreendedorismo e do cumprimento de ações pontuais e específicas que surgem de demandas individuais do mercado. Em todos os casos, recursos, currículos, estrutura, docentes, discentes e servidores são direcionados a atuar de acordo com marcos privados e não de acordo com determinantes da própria instituição, muitas vezes indo diretamente contra reformas curriculares e diretrizes de ensino-pesquisa-extensão que a universidade possui.
A universidade não pode mais se calar diante disto! Não deve vestir as roupagens do “pluralismo democrático” achando que pode conciliar interesses de mercado com interesses nacionais, tratando-os como “bons amigos”. Deve, antes de tudo, servir e trabalhar para questionar esta relação e, principalmente, suas causas e sua história para que jamais venha a reproduzir tanto sua própria deturpação quanto à do próprio país. É inadmissível que uma reitoria aceite até hoje a coexistência e muitas vezes a sobreposição privado/público! Pior ainda é o movimento estudantil que se curva amedrontado diante da necessidade de colocar aos estudantes estas contradições! É necessário evidenciar os conflitos para que as pessoas se impliquem neles!